segunda-feira, 1 de abril de 2013

Tese sobre «Lisboa Triunfante»

(«Como a Morte se Tornou Perpétua», ilustração de Ana Maria Baptista para o capítulo «A Terra das Serpentes» do romance Lisboa Triunfante.) 

O ano passado fui contactado por Ana Maria Baptista, aluna do curso de Ilustração Artística promovido pelo Departamento de Artes Visuais da Universidade de Évora e pelo Departamento de Artes Gráficas do ISEC - Instituto Superior de Educação e Ciências, e por ela entrevistado sobre o meu romance Lisboa Triunfante (Saída de Emergência, 2008), no âmbito da realização da sua tese de mestrado de ilustração artística sobre esse livro. Fiquei muito satisfeito pelo seu interesse em escolher uma obra minha para fazer a tese de mestrado e, evidentemente, respondi às perguntas. Entretanto, a tese, intitulada O Imaginário Gótico na obra literária Lisboa Triunfante de David Soares, foi defendida e a Ana já é mestra: parabéns, Ana, pela conclusão do teu mestrado - que o olhar companheiro da Raposa siga, protector, o teu percurso!

Graças à generosidade da Ana, que me deixou partilhar convosco as perguntas que me fez, aqui fica a entrevista para vossa leitura e apreciação.

Entrevista a David Soares

Ana Maria Baptista - Se te apresentasses a alguém como escritor, mas que não tivesse conhecimento sobre a tua obra, o que dirias?

David Soares - Diria que escrevo romances meticulosamente pesquisados e complexos, que versam sobre temas históricos e ocultismo, cujo universo autoral se inclui no mundo do Fantástico, porque escrevo sobre assuntos que são invisíveis e inacessíveis para a dita realidade que vemos todos os dias. Mas não me encaixilho em nenhuns formatos de género pertencentes ao Fantástico. Eu estou no Fantástico em virtude do meu universo autoral.

AMB - Qual foi a obra que mais gostaste de escrever?

DS - Todos os livros me dão o mesmo gosto a escrever, mas, neste momento, o meu preferido é Batalha, porque encerra com elegância as minhas premissas autorais: uma narrativa complexa, com muitos níveis de leitura; linguagem luxuriante e desafiante; a influência do oculto e do hermetismo; e a busca pela transcendência. Também gosto muito de Lisboa Triunfante, porque ainda mantenho a crença de que ao escrevê-lo contactei mesmo com "algo" misterioso. Aliás, já várias vezes pensei em voltar ao universo de Lisboa Triunfante, porque ainda tenho muito que contar em relação a ele.

AMB - Qual/is o(s) livro(s) que mais gostaste de ler?

DS - O meu livro preferido - e aquele que considero o melhor livro do mundo - é Darconville's Cat de Alexander Theroux. Que um escritor seja capaz de ler Theroux, em especial este título, e ter coragem para continuar a escrever é uma grande prova de coragem e de talento, porque é um romance praticamente inultrapassável. Nos Estados Unidos, em 1981, quando foi editado, vendeu cerca de quinze mil exemplares e foi considerado um fracasso de vendas, embora tenha sido nomeado para o National Book Award. É a diferença entre o mercado norte-americano e o nosso: lá, quinze mil exemplares são um fracasso de vendas, um número residual; cá, seria como ganhar o Euromilhões. Nesse sentido, como é possível um autor português, que, em média, vende cerca de três mil exemplares, usar os seus números para impressionar um editor estrangeiro? 

AMB - Qual o teu método preferido para começares a escrever um livro?

DS - Não tenho método. As ideias, ou melhor, as premissas das ideias, surgem-me já formadas na cabeça; e quando são boas o suficiente para serem desenvolvidas, decido que, muito bem!, tenho livro. Em essência, as ideias têm origem na ruminação e no cruzamento das minhas diversas leituras: livros de história, de divulgação científica, filosofia, ensaio, etc., e, depois, vou rodando-as na cabeça, adicionando-lhes material que pode ou não ser adequado, e, em seguida, quando já tenho uma história sólida em mente, com um enredo definido, dactilografo-a. De maneira geral, a escrita de um romance passa por dois períodos: o da investigação sobre o assunto e a da escrita. A da escrita é mais rápida, porque só começo a escrever quando tenho tudo muito bem estruturado e delineado. Não gosto de improvisar, porque, na maioria das vezes, o improviso é sempre mau. De qualquer das formas, se decidir improvisar, tenho uma rede de segurança muito forte que me impede de fazer asneira. Em síntese, na fase da escrita, escrevo o dia inteiro e só paro para comer e dormir; depois, no dia seguinte, releio o que escrevi e faço cortes e mudo o que me parece mau. Os cortes que faço têm como objectivo manter íntegro o tom da história: o tom da história é muito importante para mim, porque é a alma do livro. Cada livro tem um tom diferente e enquanto se escreve o tom tem de ser constantemente corrigido para garantir que o livro mantém uma identidade própria. O tom do livro relaciona-se com a voz autoral, mas é uma coisa diferente. A voz autoral é aquilo que agarra o leitor: o leitor quer ler uma determinada voz autoral e é por isso que gosta mais de uns autores do que outros, mas o tom é diferente. O tom de Lisboa Triunfante é diferente do tom de Batalha, por exemplo, mas a voz autoral é a mesma, com as mesmas preocupações, as mesmas interrogações.

AMB - Como começou a tua inspiração para a obra Lisboa Triunfante?

DS - Lisboa Triunfante é um livro muito complexo. Tão complexo que, no início, até pensei em dividi-lo em dois volumes, mas depois achei que isso seria um disparate e percebi que a história podia ser contado num livro só. Em primeiro lugar, quis contar um épico sobre Lisboa, desde as suas origens até à contemporaneidade, e, a outro nível, quis explorar universos que se relacionam com sistemas de crença, como a religião, a política, a dicotomia entre os sexos masculino e feminino... Há capítulos mais políticos do que outros, uns mais religiosos do que outros... As figuras da Raposa e do Lagarto reflectem dois pontos de vista civilizacionais diferentes, um mais atávico, outro mais sofisticado. É um romance no qual a história de Lisboa serve de base para eu falar de muitas coisas diferentes.

AMB - Pode dizer-se que Aquilino Ribeiro é um escritor de referência para a tua obra em geral?

DS - Não. Gosto muito dos seus livros, mas não é uma referência para a minha obra. Porém, admiro muito a sua coragem literária. Lembro-me de ouvir falar dele pela primeira vez no ensino básico e da professora dizer na aula que era um escritor muito difícil, "de dicionário", e que não gostava dele; mais tarde, quando conheci a sua obra, percebi que a professora não tinha razão. Aliás, se um livro não servir para nos desafiar a enriquecer o vocabulário... Há quem prefira textos simples, com palavras que já conhece, mas eu prefiro textos complicados com vocabulário desafiante. Aliás, eu leio dicionários como quem lê romances: começo no A e acabo no Z, por isso... Para mim, são livros apaixonantes. E o Aquilino desafia... Quando se tem cerca de dez ou doze anos de idade, estarmos a ler textos com palavras como "apreensor" e "esfondílio", como A Casa Grande de Romarigães ou As Terras do Demo, isso desafia muitíssimo. De maneira que o amor pelas palavras é uma característica em comum que tenho com ele, mas não vejo isso como uma influência.

AMB - Porquê iniciar a narrativa no Hotel Ritz?

DS - As personagens que aparecem no prólogo, a Paula e o Russel, pertencem a uma classe social alta, com muito dinheiro, e achei que o bar do Hotel Ritz seria um local credível para o encontro deles nessa parte da narrativa. Ambos são coleccionadores de objectos que custam quantias muito elevadas. Conheço pessoas como eles, tanto como a Paula e como o Russel, e penso que o retrato que faço desse mundo, embora ao serviço da narrativa, não deixa de assemelhar-se com aquilo que se passa na realidade dos coleccionadores, dos leilões de livros... Conheço pessoas que, sem serem milionários, como a Paula e o Russel, vão à mesma comer e dormir a sítios muito caros e muito requintados, nem que seja uma única tarde ou uma única noite. São o que eu chamo de coleccionadores de momentos e, à conta deles, tenho ouvido falar de sítios estranhíssimos que nem fazia ideia que existiam. O bar também tem, como é evidente, um significado simbólico, mas, de maneira geral, é um local sofisticado para um encontro de personagens sofisticadas.

AMB - Preferes a Raposa ao Lagarto ou vice-versa?

DS - A Raposa preferiu-me. Desde que escrevi o romance, vejo raposas em todo o lado, todos os dias, quando menos estou à espera. Se fosse crente, diria que despertei a atenção de um arquétipo que me quer fazer seu cronista. Neste momento, escrevo e, na secretária, tenho um pin com uma raposa, que encontrei, por completo acaso, numa barraca de uma feira que visitei este Verão. A Raposa está comigo: não sei se para o bem ou para o mal, mas tive de habituar-me a isso.

AMB - O rapaz que aparece no capítulo «A Terra das Serpentes», e que é tentado pelo mensageiro do Homem Verde a vingar-se da chefe da sua tribo, tem nome?

DS - Não. Às vezes, não gosto de dar nomes às personagens, em principal às dos contos. Torna-as demasiado conspícuas. Existem coisas mais importantes nos livros que os nomes das personagens.

AMB - Quanto aos contos e lendas que introduzes em Lisboa Triunfante, por que o fizeste e onde te inspiraste para contar essas histórias?

DS - Tudo aquilo que está em Lisboa Triunfante está ao serviço da história, todas as alegorias, todos os níveis de sentido. Também há espaço para algum humor: com efeito, o romance tem imensas passagens que considero muito irónicas, como a sessão de solfejo no capítulo «O Reino do Sol». Essa passagem é um exemplo de um episódio que tem algum humor, mas que serve um propósito narrativo: reforça a ideia de loucura total que atravessava aquele período da corte joanina. Foi um período muito estranho, muito formal, muito reservado, mas, ao mesmo tempo, um tempo absolutamente descabelado, cheio de personagens excêntricas e episódios extravagantes. Essa mistura de formalismo e loucura é fascinante. Daí que a inclusão de histórias paralelas tem sempre o propósito de reforçar o tom da narrativa principal e de oferecer níveis de leitura mais complexos: são "hiperligações". Mas existem mais apontamentos humorísticos espalhados ao longo do romance, como a presença de Pokémons no rol de diabos no capítulo «Pythonomorpha Pentadactyla». É o humor vulpino, na verdade, o humor da Raposa. O humor traquinas, de pregar a partida sem que o leitor perceba.

AMB - Consideras que o lagarto pode ser entendido como o Homem e a raposa como a Mulher, num sentido simbólico?

DS - Pode ver-se essa questão por esse prisma, mas na minha cabeça o binómio Raposa/Lagarto não funciona assim. A Raposa e o Lagarto são como os degraus de uma escada: há o degrau, propriamente dito, e a face vertical que nos conduz ao degrau seguinte. Essa face vertical chama-se espelho: o degrau é o nome da superfície horizontal. Por isso, subir, ascender, faz-se de verticalidade e horizontalidade, em simultâneo: estabilidade e mudança, se lhe queremos chamar isso. O Lagarto e a Raposa são como o espelho e o degrau, embora, por vezes, durante o livro, não seja claro qual deles significa o quê. Na verdade, ambos têm agendas ocultas e o progresso e estabilidade que vão criando é, de certa maneira, instrumental a essas agendas. Às vezes é a Raposa a querer mudança, às vezes é o Lagarto. Acho que as diferenças estão no seguinte: a Raposa é mais parecida connosco; o Lagarto é mais parecido com o universo. A Raposa percebe-nos melhor, tem mais simpatia por nós, gosta de brincar connosco, de nos ludibriar. O Lagarto é uma força da natureza, como o vento: afecta-nos, mas não age connosco. A não ser em ocasiões especialíssimas, como as descritas e sugeridas no romance. Aliás, uma das angústias a que a religião tenta dar conforto é a de que o universo não nos compreende, a de que o universo não é humano e não nos liga nenhuma.

AMB - Lisboa com certeza é uma cidade com a qual tens uma grande afinidade, visto ser a tua cidade natal. Em três palavras, como a caracterizarias?

DS - A minha relação com Lisboa foi-se tornando numa relação muito mais museológica do que era. Com efeito, desde há três anos, que tenho vindo a "desapaixonar-me", entre aspas, pela cidade. Ou melhor: pela cidade em que moro, porque a Lisboa histórica, ideal, imaginal, cada vez a amo mais e mais. Dói-me muito ver a cidade a transformar-se em algo que me desagrada muitíssimo e a descaracterizar-se, a perder património. Também perdi uma pessoa que era um fortíssimo elo de ligação que me mantinha agarrado a ela e isso concorreu para que me começasse a distanciar, de imediato. Eu faço a minha vida de todos os dias na mesma Lisboa que tu, mas, de facto, vivo em outra, que construo com elementos históricos, com pedaços das minhas criações, com pedaços dos meus sonhos. Sonho quase todas as noites com uma Lisboa histórica diferente da que existe: e sonho com ela muitas vezes. É como se andasse pelo sonho com uma lanterna e, a cada noite, descobrisse mais um pedaço dela. Essa é a Lisboa que me interessa: esse é que é o meu mundo. Cada vez me sinto mais companheiro do histórico, do sonho e do passado.

AMB - Boytac foi um personagem bastante activo e reactivo no teu romance. Além do que leste em Santa Maria de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos, onde ou em quem te inspiraste para a construção do personagem?

DS - A personagem Boytac é o arquétipo do misógino. É uma espécie de São Paulo, para quem as mulheres são a criatura mais desprezível que existe. Na minha cabeça, o Boytac é alguém que está, constantemente, a racionalizar tudo e, pior que isso, é alguém para quem os outros são como grãos de areia, porque, bem vistas as coisas, não lhe chegam aos calcanhares no que diz respeito à cultura e ao intelecto. A única pessoa capaz de se elevar à altura dele é D. Leonor, a viúva de D. João II, e ele não é capaz de suportar isso, não é capaz de suportar que a única pessoa no reino com uma cabeça tão boa como a dele seja uma mulher. Mas à parte da misoginia, a personagem Boytac tem muitas características que eu considero grandes qualidades e, de certa forma, acho que faz muita falta existirem pessoas como ele. Falámos em Aquilino: o Aquilino não tinha pudor nenhum em dar uma chapada a alguém que o ofendesse - mesmo a um amigo. Dava e, depois, a coisa esquecia-se. Hoje, sob a égide do politicamente correcto, vivemos numa sociedade inquinada pela aparência, pela tibiez. Fazem falta homens como o Aquilino e como a personagem Boytac: homens autênticos, fortes no carácter e no intelecto. O Boytac é uma relíquia como o seu mosteiro. Já não se fazem pessoas e edifícios assim.

AMB - Consideras a ilustração fantástica, mais propriamente gótica/de horror, uma boa forma de interpretar esta obra literária?

DS - Provavelmente, será. Nunca imaginei ilustrações para os meus romances, excepto no caso do Batalha que, quando nasceu na minha cabeça, já vinha a pedir para ser ilustrado, à maneira das velhas fábulas. Foi uma excepcionalidade, nesse sentido, mas penso que uma ilustração de estilo gótico, como as dos romances do século XIX, ou até à maneira dos estilos de Arthur Rackham ou de Rien Poortvliet, seria muito interessante. Ver a interpretação que outro artista faz da minha obra é sempre uma honra e uma emoção enorme.

AMB - Caso escolhesses uma banda-sonora para esta obra, qual seria?

DS - Não escolheria.

AMB - Caso escolhesses ser um personagem desta obra, qual seria?

DS - Talvez o Boytac, porque sou muito parecido com ele, excepto no que concerne à misoginia. Baseei a personalidade dele na minha e nos registos históricos que descrevem as suas atitudes. Ele é, também, o enantiomorfo do D. Nuno de Ataíde, o inquisidor-mor do capítulo anterior: ambos têm um grande ódio de estimação; no caso do Boytac são as mulheres, no caso do Ataíde são os judeus, mas o Boytac nunca se torna maníaco, porque tudo nele encerra um elevadíssimo sentido do dever. É uma personagem que, para o bem ou para o mal, é incorruptível, é totalmente obcecado pelo seu código moral e intelectual sobre como deve ser um homem. O D. Nuno, não. É um obcecado pelo poder, é um esbirro do poder, e, nesse sentido, não tem espinha, não tem carácter. Para ele, o poder é um fim em si mesmo e não uma ferramenta para chegar a algo. É isso que faz do Boytac um homem superior: ele está-se nas tintas para o poder, porque para ele o poder é apenas uma ferramenta para chegar à obra. A obra é que fica para sempre.

AMB - Que conselho darias a um escritor de fantasia?

DS - Seja de fantasia ou não, o meu conselho é sempre ler muito, porque é a única escola de escrita que existe. Ler muito e aprender bem as regras da gramática, chamemos-lhes isso. Um escritor tem de ser erudito. Se não for assim, não vale a pena escrever, porque só vai escrever obras menores. Como em qualquer arte, a personalidade criadora, a voz, vai de dentro para fora. Quando se é mesmo artista, isso rompe, mostra-se. O resto é polimento, é refinamento, é desenvolvimento. De facto, tem de ser-se, já, artista. Os artistas nunca se fazem: já o são. Um indivíduo pode matar-se a trabalhar, a aprender a ser muito bom, mas se não for, de facto, artista, isso vai notar-se sempre, vai ser sempre uma sombra que ofusca o que ele cria. Hoje, existe uma fronteira muito ténue entre o autor e o público, porque é o público que compra a obra, logo o mercado obriga a essa proximidade, mas isso é muito destrutivo porque os indivíduos acham que a arte tem de estar ao nível deles, quando são eles que têm de pôr-se ao nível da arte. Há poucas dezenas de anos, um tipo entrava numa galeria e até tinha vergonha de admitir que não percebia um fiapo de arte: hoje, pelo contrário, diz-se que a arte é má se não for compreendida à primeira olhadela. Há uma grande tirania do público que está a matar a arte. Não tenho nenhum hábito de citar Nietzsche, mas ele, no Para Além do Bem e do Mal, tem um aforismo certeiro sobre isto: «-Não gosto. - Porquê? -Porque não estou à altura. Alguma vez alguém pensou assim?» Os artistas precisam de recuperar inacessibilidade, ascetismo. Precisam de recuperar mistério, por que não?