Escrever
é uma arte feita de liberdade absoluta, na qual, de facto, a imaginação
é o limite; mesmo assim, não falta quem se sinta confortável em
adstringir-se com os rudes espartilhos veiculados nos conselhos dos
cesaropapistas da "escrita criativa" (haverá outra?). Um desses
ensinamentos mais tóxicos - sobretudo para principiantes - é o de que se
deve "mostrar em vez de contar". Ora, "mostrar em vez
de contar" é um critério pescado à escrita de ficção para cinema e
televisão e não deveria ser aplicado em literatura, porque escrever um
texto literário é muito diferente de escrever um argumento
cinematográfico ou televisivo. E, assim, por culpa deste desastrado
ensinamento, as livrarias enchem-se de falsos livros, cuja única
desculpa para existirem parece ser a de que consistem em meros esboços
das futuras adaptações cinematográficas e televisivas que farão deles.
O espírito neo-romano que embebe a actualidade, sobrevalorizante do mais elementar carácter utilitarista das pessoas e das artes, influencia a criação de obras literárias cada vez mais homeopáticas; ou seja, obras em que o princípio activo literário está muitíssimo diluído em água - tanto que, na maioria das vezes, é inexistente. Desapareceu, pois, o discurso indirecto; desapareceu, também, a adjectivação - desapareceu, enfim, tudo aquilo que impede a personagem X de ir ter com a personagem Y no menor número possível de páginas. Os poucos romances que ainda se apresentam como herdeiros de uma tradição verdadeiramente literária, em todas as acepções dessa designação, são desconsiderados pela crítica como sendo bizantinos, no sentido pejorativo. Mas quem sabe a sério de história não esquece que foi em Bizâncio que, a partir de finais do século III, se conservaram os modos e a cultura clássicos, em oposição ao barbarismo que medrou na metade ocidental do império romano. É uma alegoria simples de entender, até por quem não sabe ler.
E, na verdade, há muitos leitores que não sabem ler: sabem ver filmes de papel. Se lhes dessem um livro autêntico para as mãos não saberiam o que fazer com ele.