quinta-feira, 16 de maio de 2013

A Fatrasia

Hugo Ball, criador do Cabaret Voltaire, vestido com um fato dadaísta feito de cartão

Em meados da Primeira Grande Guerra, no ano de 1916, nasceu em Zurique no clube nocturno Cabaret Voltaire um movimento artístico que se internacionalizou com grande popularidade: o Dadaísmo, criação do poeta e músico romeno Tristan Tzara e do poeta alemão Hugo Ball (fundador e dono do Cabaret Voltaire). Buscando aleatoriamente o nome à palavra francesa para “cavalinho-de-balouço” (embora também possa ter originado de uma conhecida marca homónima de loção para o cabelo), o movimento artístico Dada pretendia romper com os códigos culturais e os valores da sua época, considerados culpados pelo conflito mundial, imprimindo para efeito sanatório uma receita exclusiva de exposição ao absurdo, através de obras de estética revolucionária – colagens de diversos materiais e também engenhosas fotomontagens –, mas, em principal, improvisadas interpretações de poesia e música absurdas que chocavam os espectadores. Importa reter que a premissa dadaísta mais apurada por cultores como o artista francês Marcel Duchamp e pela poetisa e artista germano-americana Elsa von Freytag-Loringhoven (a verdadeira criadora da famosa “fonte” feita com um urinol atribuída a Duchamp) foi o constante recurso ao refugo – ao lixo – para fazer arte. Foi por essa via que se criou o conceito de “descontextualização”, posteriormente adoptado pela Pop Art, pelo Surrealismo e pelo Pós-Modernismo. Porém, a noção de respigar refugo para fazer arte é mais antiga do que Tzara ou Ball talvez pensassem e esteve na génese de um famoso género literário medieval: a Fatrasia.

La Farce de Maistre Pierre Pathelin
O étimo de Fatrasia provém do occitano (língua medieval, falada no Sul de França e na Catalunha, derivada do latim, que esteve na origem do fenómeno trovadoresco e que possui no catalão hodierno o seu descendente directo) e consiste na palavra fatras que significa farrapo ou refugo. Nesse feitio, a Fatrasia foi um novo estilo poético que, através da reunião de referências populares (o refugo), sem sofisticação e, sobretudo, sem relação entre si (uma manta de farrapos, lá está!), apresentava histórias de forte componente absurda (por exemplo, a peça quatrocentista La Farce de Maistre Pierre Pathelin, de autor anónimo). Não eram obras moralistas, como as fábulas ou os exemplos, mas exercícios que, hoje, só podem ser baptizados de puro nonsense. Na própria província da Langue d’oc, não raro se declamavam Fatrasias musicadas, enquanto se dançava cabriolescamente com acrobacias de inspiração árabe que se aproximavam muitíssimo da breakdance contemporânea: em suma, era puro dadaísmo avant la lettre.

Breakdance medieval
Creio que a Fatrasia foi, certamente, seminal para o desenvolvimento de outro género, com cujo nome rima: a Fantasia – que, até à data, não existia, fora da hegemonia mitológico-religiosa, enquanto família de narrativas auto-coerentes, algo que só se cristalizou a partir do século XVIII. O conceito de “fantasia” enquanto modo fantástico de narrar ainda não tinha, sequer, sido fixado: na Península Ibérica medieval, assim como no Norte de África e no Próximo Oriente, chamava-se fantaziiâ, que é um nome árabe, aos exercícios equestres de corrida e destreza cavaleiresca, por exemplo, não havendo relação particular nem especial entre essa palavra (que provém do étimo grego phantasia, com o significado de aparição e ilusão) e o mundo literário coevo. Contudo, a partir do século XVI já se encontram obras que, na esteira dos cânones da Fatrasia (usando temas “popularuchos” – o refugo: humor grotesco e crítica ao clero e à nobreza), se assumem, declaradamente, como autênticas Fantasias (mas mais ou menos alegóricas, não apresentando, ainda, mundos fantásticos auto-contidos), como o inaugural diptíco de François Rabelais, Pantagruel (1532) e Gargantua (1534), e os influentes Don Quixote de Miguel de Cervantes (1605 e 1615) e Gulliver’s Travels de Jonathan Swift (1726).

Gargantua, em bebé, por Gustave Doré
Tenho defendido que o Fantástico foi (continua a ser?) uma importante arma de contestação social, uma literatura de ruptura com o sistema, e a Fatrasia medieval contribuiu, decididamente, com a injecção do absurdo, do delírio mais desbragado que – isto é importante – não precisava de arreigar-se rigidamente às referências clássicas, nem às hagiológicas. Contribuiu, pois, com esse hibridismo característico de caldear o absurdo (o impossível) com o real, que foi redescoberto pelos dadaístas e, a partir deles, contaminou a literatura pós-moderna e até o chamado “realismo mágico”.

Mas existe outra afinidade entre a Fatrasia, a Fantasia e o Dadaísmo: a guerra.

A cruzada sangrenta que o papa Inocêncio III instigou contra os heréticos cátaros da região da Langue d’oc coincidiu com o período áureo do fenómeno trovadoresco e da Fatrasia. As reinvenções ocidentais da Fantasia ocorreram em força nos períodos subsequentes às duas Grandes Guerras. E o Dadaísmo foi uma consequência directa da frustração cultural e artística sentida durante a Primeira Grande Guerra. Vale a pena reflectir sobre estas coincidências. No fundo, o que elas nos mostram é a profunda inquietação da imaginação humana, a recusa da barbárie e do fratricídio e a busca dessa qualidade redentora, tão luminosa, que somente o sonho pode oferecer com generosidade. A verdade é que hoje, como ontem, somente a Fantasia, em tudo aquilo que ela encerra, é capaz de nos salvar.

Representação de época de um comum teatro medieval de rua, em que as peças eram improvisadas pelos actores, mas também pelo público - todos mascarados, porque o anonimato era a regra de ouro nestas interpretações vadias, feitas de canções, poemas e improvisos variados, sempre com o absurdo em mente. Dadaísmo ducentista, portanto.