sexta-feira, 6 de junho de 2014

Breve observação sobre a santa que derrubou uma constituição

 
Não se pense que o desgosto pela constituição é um fenómeno contemporâneo. Na realidade, desde que Manuel Fernandes Tomás redigiu a primeira constituição portuguesa, em 1822, que diversas facções direitistas, conservadoras, reaccionárias e tradicionalistas tentaram, unanimemente, por vários meios contra-ideológicos, desde o púlpito aos pasquins de contrafacção política, desacreditar o projecto constitucional e difamar os seus defensores. O que existiu nessa altura é, em suma, aquilo que ainda pode ser observado hoje: um conflito irreconciliável entre duas visões de fazer política, sendo que uma apoia-se na edificação de um estado de direito, no qual o poder político se subordina à lei - e a expressão máxima dessa lei é a constituição -, e outra que crê num neo-absolutismo, legitimado pressurosamente pelo sufrágio democrático, como se a concepção de democracia aí se esgotasse - uma espécie de "democracia possível" (sendo que possível, aqui, deva ser lido à lente do significado que lhe imprimiu Lucien Goldmann) que recua, de imediato, ao mínimo entrechoque com a vontade do poder.

Esse primevo esforço constitucional de oitocentos terminou, em definitivo, com a chamada Vilafrancada, uma insurreição direitista, contra-revolucionária, liderada por D. Miguel, a 27 de Maio de 1823. Porém, cerca de um ano antes, a 28 de Maio de 1822, ocorreu um espaventoso milagre que serviu de rastilho à imaginação popular e fortaleceu muitíssimo a ressonância reaccionária das massas, travejando o terreno para se reerguer o empoeirado absolutismo. Hoje, esse acontecimento está quase esquecido, mas eu venho lembrá-lo, porque considero-o de uma pertinência acutilante. Para comodidade de leitura, abrevio a sequência dos acontecimentos numa linha cronológica simples.
O bispo de Vila Viçosa e o cardeal-patriarca de Lisboa recusaram jurar as bases da novíssima constituição e o segundo calhou a ser deportado para fora do reino por culpa disso; em seguida, numa lapa do chamado Sítio da Rocha (hoje, Linda-a-Pastora, no concelho de Oeiras), à margem do Rio Jamor, foi encontrada uma imagem espectacular da Nossa Senhora da Conceição, entidade que é padroeira de Portugal desde 1646. A descoberta da imagem foi, num ápice, interpretada pelos rústicos e pelos escribas direitistas como sendo um sinal de que a padroeira estava descontente com o desterro do cardeal-patriarca e com o curso das mudanças politico-sociais do seu reino: até porque a imagem original da padroeira encontrava-se (e encontra-se) no santuário de Vila Viçosa; logo, era uma demonstração de santa solidariedade pelas posições políticas do bispo de Vila Viçosa e do cardeal-patriarca de Lisboa. Tanto que a imagem foi transladada da mefítica margem jamoriana para o interior da Sé de Lisboa - não antes da lapa se ter transformado num popular ponto de culto contra-revolucionário: a Nossa Senhora da Conceição da Rocha, como foi cognominada, convertera-se em vera padroeira da contra-revolução, granjeando até a devoção de D. Miguel, cuja mãe, D. Carlota Joaquina, também se recusara (em Outubro de 1822) a jurar a constituição (a imagem que ilustra este artigo mostra-o, mais as irmãs, a rezar à Nossa Senhora da Conceição da Rocha, na Sé de Lisboa).
Este popularíssimo culto religioso contra-revolucionário insuflou velas largas e foi, ao seu advento, descrito e romanceado em dezenas de folhetins e artigos de jornais, consistindo num dos acontecimentos simbólicos que contribuíram com mais importância para a queda do Vintismo. Não é claro de que forma foi forjado este culto, nem por quem, mas, como se costuma dizer, foi a ideia certa no momento certo (infelizmente).

Creio que será prematuro rirmos dos nossos antepassados, que, com diligência, ingenuidade ou manha, acreditaram prontamente neste milagre forjado para fins políticos, instrumentalizando-se para o efeito a superstição e a bisonhice em que os portugueses, exauridos e analfabetos, estavam ensopados. Centro e quatro anos depois, em outro 28 de Maio, outros santos contra-revolucionários (também de inspiração mariana, curiosamente) foram inventados para derrubar o governo republicano presidido por António Maria da Silva, aproveitando, novamente, o misoneísmo dos portugueses. No fundo, os nossos pontuais episódios democráticos costumam ser interrompidos pelo avanço de energias conjuntas de sinal oposto e de maior duração.
Estamos, pois, a pouco mais de uma década de mais um aniversário desta bonita tradição hagiológica que mescla o sagrado de pendor popular e a política de pendor populista - os santos contemporâneos contra-revolucionários que espumam vitupérios contra a obstaculizante constituição estão todos na praça pública a competir pelo altar. Quem sabe qual deles será a nova Nossa Senhora da Conceição da Rocha e quem sabe qual deles será o novo Salazar?