Extrair a chamada Calçada Portuguesa dos pavimentos públicos pedonais
 de Lisboa com base no argumento de que é legítimo fazê-lo porque ela 
não é tão antiga quanto se pensa, como se apregoa nos meios de 
comunicação, é, com efeito, errado, já que uma maior distância temporal 
que separe um determinado objecto histórico deste momento presente não 
confere nenhuma especial autoridade a esse objecto em relação a outros 
que sejam de lavra mais recente: sobretudo no que concerne à 
transformação do espaço urbano, ao longo das eras, pelos indivíduos que o
 foram habitando – tudo é histórico.
 Por conseguinte, numa 
perspectiva histórica, a oitocentista calçada portuguesa, composta por 
mosaicos decorativos feitos de pedras calcárias pretas e brancas, é tão 
importante quanto o quinhentista Mosteiro dos Jerónimos: monumento cujo 
recorte inconfundível para todos os observadores locais e todos os 
visitantes estrangeiros deve, hoje, muito mais a profundos restauros 
oitocentistas do que ao seu desenho original – assim como a 
acarinhadíssima Torre de Belém, ainda mais totalmente reincorporada de 
elementos decorativos e estruturais oitocentistas que, para a maioria 
dos lisboetas e demais portugueses, são ainda vistos como sendo 
iniciais. Nestes casos, em que pouquíssimo resta de original – leia-se 
quinhentista – nas suas composições, também será legítimo removê-los – o
 Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém – por consistirem em 
recriações recentes (e absolutamente contemporâneas dos primeiros 
assentamentos lisboetas de Calçada Portuguesa)?
 Justificações de 
remoção de um objecto histórico baseadas na suposta autoridade ou 
não-autoridade concedidas pela calandragem do tempo são espúrias. 
Suspeito que o facto de, cada vez mais, existirem pouquíssimos 
calceteiros qualificados para fazer a conservação de um objecto tão 
ornamental e difícil de burilar como a Calçada Portuguesa torne muito 
caro o seu emprego; assim, imagino que cada vez que se rompa um rego na 
Calçada Portuguesa para remendar um cano, ou cada vez que tenha de 
desfazer-se o puzzle da Calçada Portuguesa para obras de natureza 
diversa, seja mais utilitário (vulgo, barato) substitui-la por prosaicos
 pavimentos lisos, de cimento branco.
Soluções rápidas e simples deste jaez quase nunca se relacionam com motivos mais nobres que o elementar economicismo: é este – e não outro – que subjaz à sanha sarcótica de querer remover a Calçada Portuguesa das ruas de Lisboa. Nesta óptica, o tal argumento de que não faz mal que a Calçada Portuguesa desapareça, porque ela não é assim tão antiga quanto isso ainda poderá servir para derrubar o Mosteiro dos Jerónimos ou a Torre de Belém quando os corifeus do economicismo aprenderem um pouco de história e ganharem a noção de que esses monumentos também são reconstruções oitocentistas, coevas das primeiras pavimentações de Calçada Portuguesa em Lisboa.
 Onde se traça, afinal de contas, a 
linha temporal aceitável para que um objecto histórico tenha licença 
para continuar a existir? Aparentemente, nem objectos mais antigos 
escapam à cupidez e à estupidez: basta lembrar que a escadaria 
seiscentista do ducentista Mosteiro de Alcobaça foi quase totalmente 
coberta de cimento quando, há uns anos, se produziu a nova praça que lhe
 é dianteira.
 A beleza da Calçada Portuguesa revela-se com 
deslumbrância quando é contemplada de cima, mas aí reside outro grande 
obstáculo à sua sobrevivência no período que, infelizmente, 
atravessamos: é que gente menor é incapaz de olhar seja o que for de um 
ponto de vista elevado.
 

 
