quinta-feira, 7 de junho de 2018

Ler para os meus mortos


Hoje, sem quaisquer presságios ou sintomas que a anunciassem, senti uma vontade profunda de ler para os meus mortos. Uma vontade fina e funda como uma agulha introduzida no peito.
Ler apazigua, porque não pede nem obriga à resposta. Os mortos não respondem. Mas poderão ouvir? Só quem já não tem vivos compreende a inutilidade daquele perfunctório vento a que chamamos diálogo, palavras em refluxo, cuja caligrafia se apaga da memória a cada terrível e rutilante passagem. Pode-se falar na escuridão, mas só pode ler-se à luz: essa luz em flor, formidável, tão translúcida quanto celofane, que serve de farol para os nossos mortos, agora naturais de um mundo feito de silêncio. Linguagens sem tradução: a luz da nossa leitura; o frígido silêncio do seu consentimento.

(Ilustração: Eric Lacan.)