Uma das melhores – e insuspeitas – histórias de ficção científica foi escrita por Geoffrey Chaucer em The Canterbury Tales: intitulada The Squire’s Tale é, por razões estilísticas, um relato inacabado de como o rei Cambiuskan, da Tartária (espécie de avatar chauceriano para Gengis Khan), recebe no seu aniversário a visita de um enigmático cavaleiro que se apresenta como rei da Arábia e da Índia; esta personagem traz alguns presentes espantosos, como um teletransportador cavalo de ferro – controlado por joystick – e um espelho cujos molde e propriedades antecipam os dos actuais ecrãs de toque. Porém, o anel que o cavaleiro-rei oferece a Canacee, filha de Cambiuskan – uma admirável jóia que obsequia ao proprietário o condão de falar na orfeica linguagem dos pássaros (e, ainda, conhecer os atributos de todas as plantas medicinais) – é que se relaciona directamente com estas linhas. Mais à frente, Canacee e seis damas de companhia encontram uma aflita falcoa ferida; auxiliada pelo poder do anel, a princesa descobre que a ave padece de amor atraiçoado, sangrando de própria iniciativa. De facto, a falcoa aquiesce em contar-lhe as mágoas, para que estas sirvam de exemplo, evidenciando que os grandes devem aprender com o mal dos pequenos – e para o efeito serve-se de uma singular expressão: «as by the whelp is chasted the leoun / right for that cause and that conclusioun, / whil that I have a leiser and a space, / min harm I wol confessen, er I pace». Ou seja: a falcoa arroga tempo e ocasião para, antes de finar-se, concretizar o intento de instruir com a sua desventura a princesa, tal como um leão aprende com o castigo dado ao cão.
Este vetusto provérbio, que põe o ferocíssimo leão a temer antecipadamente castigos corporais, pela prévia exibição de força sobre o frouxo cão, não se aplica a outra história que também possui esses dois animais como protagonistas. Pintada em 1502 pelo artista veneziano Vittore Carpaccio, a tela Santo Agostinho no seu Estúdio, só pode ser decifrada na sua elíptica composição por quem conhece a vida desse doutor da Igreja: rodeado de livros, de instrumentos científicos e alfaias eclesiásticas, numa demonstração soberana do espírito humanista da Renascença que Carpaccio quis manifestar, um varonil Santo Agostinho interrompe a escrita de uma carta endereçada a São Jerónimo para mirar, de repente, pela janela; ainda temulento pelo lavor intelectual, Agostinho semicerra o olhar para melhor indagar o que se desdobra diante de si, capacitando-se nesse instante que se trata de uma visão do seu destinatário, que veio comunicar-lhe a sua morte, em Belém, e consequente ascensão ao empíreo. A luz tornada rarefacta pela peneira da vidraça faz lembrar o que Dante escreveu no início do segundo canto do Purgatório: «E eis como já, no amanhecer vizinho, / em vapor grosso Marte ruboreja / e a oeste vai, sobre o solo marinho, / tal me aparece, que inda agora o veja, / lume veloz que pelo mar desata, / e a voo algum o seu mover inveja». Não é líquido, pois, que Agostinho veja Jerónimo pela janela, como um «lume veloz» que «a voo algum o seu mover inveja», ou se o o dom do fogo é contemplado somente na mente. Um imprevisível elemento pintado na tela provoca esta leitura: é um pequeno cão, situado à esquerda e numa cota inferior às de Agostinho e da sua estupenda esfera armilar.
O filósofo Wittgenstein escreveu que as cores são formas – e, com efeito, este cachorro, este volpino, nome de raça que se traduz por “raposinho”, é pura cor branca esculpida: somente pela aproximação obsessiva do olhar ele robustece em delicada musculatura, estofada de espontâneos enchumaços de pêlo crespo. A sua expressividade, plasmada com perícia por um brilho prudente na pupila, é mais cautelar que desconfiada; suavemente reclinado, num apontamento de hesitação, dir-se-ia que o cão de Agostinho foi, na verdade, o primeiro a chegar à cena: aquele cujo faro ou audição aguçados detectou a chegada da sobrenatural correspondência entre dono e moribundo. É uma suposição credível, pois no décimo quinto capítulo do terceiro livro de A Cidade de Deus, Agostinho já questionara qual seria o homem capaz de superiorizar-se aos cães no sentido do olfacto.
Contudo, a sua amabilidade para com os cães extingue-se nessa sugestão, considerando que cada vez que fala neles utiliza-os como péssimos exemplos: seja para empossar a doutrina dos filósofos caninos, ou cínicos, com maiores graus de imundice e imprudência, como no vigésimo capítulo do décimo quarto livro; ou como alegoria do desgosto de confraternizar com um estrangeiro, cuja língua não se entende, alegando que se sente mais satisfação em estar com o cão, segundo o sétimo capítulo do décimo nono livro. No entanto, em oposição ao que Carpaccio pintou, nunca se leu em nenhum testemunho – nem mesmo na carta agostinha apócrifa, publicada no final do século XV, onde surge pela primeira vez a lenda da hieronimofania – que Santo Agostinho tivesse tido um cão. Nas suas Confissões lemos no décimo capítulo que costumava ir ao circo (romano) para assistir aos cães perseguirem as lebres, mas não nos diz nada sobre sua raça. O mais coerente é que seriam lebréus – galgos –, dos quais o espanhol, da cor da espelta e da textura da estopa, sugere maior sanguinidade com os cães coevos de Agostinho – este galgo peninsular é a espécie profetizada por Dante no primeiro canto do Inferno como sendo o mensageiro da paz: «A muitos animais dá coito hirsuto / e mais serão ainda, té o Lebréu / chegar que a vai fazer morrer de luto. / Não sendo estanho ou terra o cibo seu, / sapiência será, e amor, virtude, / e seu país será de céu a céu». Por outro lado, poderiam ser molossos, robustas feras de caça, metidas também nos circos para debulharem com as suas presas ursos e touros. Pese a falta de informação sobre o facto, é lícito pensar que o cão que o anfitrião novo-rico Trimalquião manda trazer efusivamente à sala de jantar, durante o capítulo do seu banquete no livro Satíricon de Petrónio, é um molosso desse género: desmedido, pesado, mas desastrado e desanimado. A chegada deste brutamontes (baptizado de Scylax, nome que significa “cachorrinho”), aferrolhado ao pescoço por uma pesadíssima corrente, lembra-me sempre o 'leitmotiv' com que Fafner e Fasolt são apresentados em O Ouro do Reno, primeira parte da tetralogia O Anel dos Nibelungos, de Wagner: um compasso falsamente majestático, que evoca bárbara força física, mas exiguidade de espírito – decalque impresso com maior propriedade ao desfecho em que Scylax faz em fanicos um perro obeso que lhe foi atiçado, arrojando na conturbação uma candeia ao chão e aspergindo de azeite fervente alguns dos convidados do banquete.
Falando em ópera, o apelido Carpaccio (anexado desafortunadamente a uma estafada especialidade de gastropub, inventada nos passados anos sessenta por Giuseppe Cipriani, proprietário do Harry’s Bar de Veneza) soa desarticulado da realidade, circunjacente à galeria de pérfidos protagonistas de palco, como Spoletta, Sciarrone e Scarpia, todos da Tosca, de Puccini. Ainda assim, tanto o prato como o nome mantêm na sonoridade uma inelutável e profunda conexão sinestética à cor vermelha: vermelha é a identidade cromática dos quadros do pintor que deu o nome às vermelhas e finíssimas fatias de carne de vaca polvilhadas de lascas de parmesão. E vermelhas são as almofadas dos assentos e cadeiras dos grandes teatros de ópera europeus – só para não deixar órfã a minha associação operática explanada atrás. A gradação de vermelhos das telas de Carpaccio tem a suavidade e o deslustre das excêntricas porcelanas sang de boeuf – aplicando a máxima wittgensteiniana, o vermelho carpacciano, é um objecto por mérito próprio, tão oxigenado e heliófilo quanto o ocre ferro de uma ponte suspensa.
Em excepção, a sua obra da qual os vermelhos conspicuamente se ausentam é São Jerónimo e o Leão, segundo episódio de uma série de pinturas dedicadas à vida do santo: nesse quadro, um venerável e paternal Jerónimo debuta em Belém o seu querido leão domesticado, mas os monges aos quais a fera mansa é apresentada chispam apavorados. A composição fervilha de pathos humorístico: o leão faz um flagrante e humano esgar de desprezo pela fuga dos monges cobardes, enquanto Jerónimo exibe estupefacção; um dos monges fugitivos ainda calca, digitígrado, o primeiro plano da cena, mas o resto do corpo já se baldou para uma perspectiva mais afastada, em típica encenação looneytoonesca, de inteira velocidade e anedota.
Outra ausência é a do leão no quadro da visão de Agostinho: tudo leva a crer que quem lá chegou primeiro e compreendeu a situação foi o cão, inversamente à moral do provérbio de Chaucer. Aliás, o mesmo cão também aparece, imperturbável, numa gôndola no quadro O Milagre da Cruz em Rialto, à direita de um gondoleiro negro: mais um branco-objecto que perluz numa intrincada colgadura de carmins, escarlates e encarnados, sobre a qual impera uma densa massa de caliginosas chaminés; e, aproximando as margens do Grande Canal, uma ponte de Rialto em madeira – sem a leveza de brocado da de pedra, engendrada por António da Ponte, no final do século XVI.
Este vetusto provérbio, que põe o ferocíssimo leão a temer antecipadamente castigos corporais, pela prévia exibição de força sobre o frouxo cão, não se aplica a outra história que também possui esses dois animais como protagonistas. Pintada em 1502 pelo artista veneziano Vittore Carpaccio, a tela Santo Agostinho no seu Estúdio, só pode ser decifrada na sua elíptica composição por quem conhece a vida desse doutor da Igreja: rodeado de livros, de instrumentos científicos e alfaias eclesiásticas, numa demonstração soberana do espírito humanista da Renascença que Carpaccio quis manifestar, um varonil Santo Agostinho interrompe a escrita de uma carta endereçada a São Jerónimo para mirar, de repente, pela janela; ainda temulento pelo lavor intelectual, Agostinho semicerra o olhar para melhor indagar o que se desdobra diante de si, capacitando-se nesse instante que se trata de uma visão do seu destinatário, que veio comunicar-lhe a sua morte, em Belém, e consequente ascensão ao empíreo. A luz tornada rarefacta pela peneira da vidraça faz lembrar o que Dante escreveu no início do segundo canto do Purgatório: «E eis como já, no amanhecer vizinho, / em vapor grosso Marte ruboreja / e a oeste vai, sobre o solo marinho, / tal me aparece, que inda agora o veja, / lume veloz que pelo mar desata, / e a voo algum o seu mover inveja». Não é líquido, pois, que Agostinho veja Jerónimo pela janela, como um «lume veloz» que «a voo algum o seu mover inveja», ou se o o dom do fogo é contemplado somente na mente. Um imprevisível elemento pintado na tela provoca esta leitura: é um pequeno cão, situado à esquerda e numa cota inferior às de Agostinho e da sua estupenda esfera armilar.
O filósofo Wittgenstein escreveu que as cores são formas – e, com efeito, este cachorro, este volpino, nome de raça que se traduz por “raposinho”, é pura cor branca esculpida: somente pela aproximação obsessiva do olhar ele robustece em delicada musculatura, estofada de espontâneos enchumaços de pêlo crespo. A sua expressividade, plasmada com perícia por um brilho prudente na pupila, é mais cautelar que desconfiada; suavemente reclinado, num apontamento de hesitação, dir-se-ia que o cão de Agostinho foi, na verdade, o primeiro a chegar à cena: aquele cujo faro ou audição aguçados detectou a chegada da sobrenatural correspondência entre dono e moribundo. É uma suposição credível, pois no décimo quinto capítulo do terceiro livro de A Cidade de Deus, Agostinho já questionara qual seria o homem capaz de superiorizar-se aos cães no sentido do olfacto.
Contudo, a sua amabilidade para com os cães extingue-se nessa sugestão, considerando que cada vez que fala neles utiliza-os como péssimos exemplos: seja para empossar a doutrina dos filósofos caninos, ou cínicos, com maiores graus de imundice e imprudência, como no vigésimo capítulo do décimo quarto livro; ou como alegoria do desgosto de confraternizar com um estrangeiro, cuja língua não se entende, alegando que se sente mais satisfação em estar com o cão, segundo o sétimo capítulo do décimo nono livro. No entanto, em oposição ao que Carpaccio pintou, nunca se leu em nenhum testemunho – nem mesmo na carta agostinha apócrifa, publicada no final do século XV, onde surge pela primeira vez a lenda da hieronimofania – que Santo Agostinho tivesse tido um cão. Nas suas Confissões lemos no décimo capítulo que costumava ir ao circo (romano) para assistir aos cães perseguirem as lebres, mas não nos diz nada sobre sua raça. O mais coerente é que seriam lebréus – galgos –, dos quais o espanhol, da cor da espelta e da textura da estopa, sugere maior sanguinidade com os cães coevos de Agostinho – este galgo peninsular é a espécie profetizada por Dante no primeiro canto do Inferno como sendo o mensageiro da paz: «A muitos animais dá coito hirsuto / e mais serão ainda, té o Lebréu / chegar que a vai fazer morrer de luto. / Não sendo estanho ou terra o cibo seu, / sapiência será, e amor, virtude, / e seu país será de céu a céu». Por outro lado, poderiam ser molossos, robustas feras de caça, metidas também nos circos para debulharem com as suas presas ursos e touros. Pese a falta de informação sobre o facto, é lícito pensar que o cão que o anfitrião novo-rico Trimalquião manda trazer efusivamente à sala de jantar, durante o capítulo do seu banquete no livro Satíricon de Petrónio, é um molosso desse género: desmedido, pesado, mas desastrado e desanimado. A chegada deste brutamontes (baptizado de Scylax, nome que significa “cachorrinho”), aferrolhado ao pescoço por uma pesadíssima corrente, lembra-me sempre o 'leitmotiv' com que Fafner e Fasolt são apresentados em O Ouro do Reno, primeira parte da tetralogia O Anel dos Nibelungos, de Wagner: um compasso falsamente majestático, que evoca bárbara força física, mas exiguidade de espírito – decalque impresso com maior propriedade ao desfecho em que Scylax faz em fanicos um perro obeso que lhe foi atiçado, arrojando na conturbação uma candeia ao chão e aspergindo de azeite fervente alguns dos convidados do banquete.
Falando em ópera, o apelido Carpaccio (anexado desafortunadamente a uma estafada especialidade de gastropub, inventada nos passados anos sessenta por Giuseppe Cipriani, proprietário do Harry’s Bar de Veneza) soa desarticulado da realidade, circunjacente à galeria de pérfidos protagonistas de palco, como Spoletta, Sciarrone e Scarpia, todos da Tosca, de Puccini. Ainda assim, tanto o prato como o nome mantêm na sonoridade uma inelutável e profunda conexão sinestética à cor vermelha: vermelha é a identidade cromática dos quadros do pintor que deu o nome às vermelhas e finíssimas fatias de carne de vaca polvilhadas de lascas de parmesão. E vermelhas são as almofadas dos assentos e cadeiras dos grandes teatros de ópera europeus – só para não deixar órfã a minha associação operática explanada atrás. A gradação de vermelhos das telas de Carpaccio tem a suavidade e o deslustre das excêntricas porcelanas sang de boeuf – aplicando a máxima wittgensteiniana, o vermelho carpacciano, é um objecto por mérito próprio, tão oxigenado e heliófilo quanto o ocre ferro de uma ponte suspensa.
Em excepção, a sua obra da qual os vermelhos conspicuamente se ausentam é São Jerónimo e o Leão, segundo episódio de uma série de pinturas dedicadas à vida do santo: nesse quadro, um venerável e paternal Jerónimo debuta em Belém o seu querido leão domesticado, mas os monges aos quais a fera mansa é apresentada chispam apavorados. A composição fervilha de pathos humorístico: o leão faz um flagrante e humano esgar de desprezo pela fuga dos monges cobardes, enquanto Jerónimo exibe estupefacção; um dos monges fugitivos ainda calca, digitígrado, o primeiro plano da cena, mas o resto do corpo já se baldou para uma perspectiva mais afastada, em típica encenação looneytoonesca, de inteira velocidade e anedota.
Outra ausência é a do leão no quadro da visão de Agostinho: tudo leva a crer que quem lá chegou primeiro e compreendeu a situação foi o cão, inversamente à moral do provérbio de Chaucer. Aliás, o mesmo cão também aparece, imperturbável, numa gôndola no quadro O Milagre da Cruz em Rialto, à direita de um gondoleiro negro: mais um branco-objecto que perluz numa intrincada colgadura de carmins, escarlates e encarnados, sobre a qual impera uma densa massa de caliginosas chaminés; e, aproximando as margens do Grande Canal, uma ponte de Rialto em madeira – sem a leveza de brocado da de pedra, engendrada por António da Ponte, no final do século XVI.