Na sarcástica letra de uma das canções que
a banda americana Bad Religion gravou em meados dos passados anos noventa, Deus
expressa, contrito, arrependimento à humanidade, que se sente muitíssimo ofendida
por ter sido excluída de opinar sobre a elaboração de uma Criação que considera
politicamente-incorrecta (essas linhas poderiam, com maior propriedade, ter
sido escritas hoje, como corolário do contraditório clima de vigilância da
linguagem que atravessamos). Porém, se este exemplo extirpado da lavra musical
punk/hardcore evidenciar um parentesco demasiado próximo da cultura popular
para o palato de alguns leitores, vale a pena recordar que, em cronologias mais
recuadas, à distância dos nossos dias quase esquecidas no occipício da
história, outras vozes, projectadas de posições sociais mais elevadas, expuseram
idêntico desconforto com a realidade; no caso que se segue, com a realidade enquanto
sinónimo do domínio de um rei, posto que resgato a anedótica declaração de
Afonso X, o Sábio, rei de Leão e Castela, que, desafiado pelos complicados cálculos
exigidos pela leitura da ciência ptolemaica de desencriptação do universo, terá
desejado que o Criador tivesse falado com ele antes de iniciar os trabalhos, de
molde a que ambos chegassem a soluções mais simples.
Em ainda maior retrocesso temporal, encontramos
na literatura mitológica da Antiguidade a ideia de uma reiterada rejeição da celestial
Criação, da parte de agentes terrenos; sejam eles homens ou criaturas ctónicas –
aliás, narrado por Ovídio, é paradigmático o confronto de uma musa anónima que,
provocando Atena/Minerva, lhe entoa em blasfema variegação a primeva desventura
gigantomáquica dos Olímpios, acobardados pela emergência do seu flagelo Tifão, abrolhado
das entranhas do subsolo. Revertendo a representação teriomórfica de Tifão,
exposta originalmente por Hesíodo, a musa ovidiana atribui apanágios animais aos
deuses em fuga para o Egipto, lugar onde assumem diversos zoomorfismos para se
camuflar do carrasco titânico que os persegue, operando a narrativa poética uma
transmigração nos deuses clássicos das hipóstases animais das suas
correspondentes divindades egípcias. O conceito de os deuses serem obrigados pela
violência dos homens a disfarçar-se de bestas foi entendido por David Hume como
alegoria de um vero ateísmo das antigas comunidades humanas, ignaras de um ímpar
princípio divino na criação e administração do mundo.
Na supracitada fuga dos deuses para o
Egipto, Artemisa/Diana metamorfoseia-se em gato. Já Heródoto sinalizara a
paridade absoluta entre Artemisa/Diana e Bubastis/Bastet, a deusa de cabeça de
gato, cujo onfalo cúltico se encontrava no templo de Bubastis, no Baixo-Egipto;
admissivelmente, o maior gatil do mundo antigo, onde miríades de gatos seriam criadas
para serem oferecidas ritualmente, a pedido de peregrinos e também no decurso
do festival dedicado à deusa – nas ruas, uma cadência folclórica de flautas e
matracas sustenta os cânticos ardentes, enquanto no silencioso santuário milhares
de pequenos pescoços são gazofilados por cordas ou, sobriamente, torcidos, para
satisfazer necessidades sacrificiais.
Como fuligem que vai vestindo de preto velhas
dedadas, encontram-se resquícios deteriorados de antiga ailurolatria nos cruéis
jogos populares que os rústicos europeus ainda vão praticando, de modo mais ou
menos clandestino, sob a forma de infames façanhas como as de gatos sovados
dentro de barricas com hulha ou inflamados num pote ou no pêlo – extirpado do
significado do seu nome, o sacrifício, que se traduz por “sacralizar”, ou seja “fazer
sagrado”, é transmutado em tortura, sem outro objectivo a não ser o de recolher
sem sobressaltos o ânimo colectivo da comunidade e exsudá-lo em inócua efluência,
abonando em coreografada catarse a dubiez do tempo próximo.
No entanto, o gato já estava feito antes
de nós – deus ou bobo, não o moldámos. Neoténico por natureza, de infantes
características corpóreas e comportamentais, o gato é e sempre foi um leão
anão, um tigre talismânico; imaginado, talvez, por deuses em fuga ou por outra
qualquer inteligência preternatural que viu com bons olhos a existência de
felinos em ponto pequeno.
Qual especial ausência foi, assim,
colmatada?
Que enigma foi resolvido pela sua vinda ao
mundo?
Construímos a juvenilidade do lobo, no
invólucro do cão, mas o gato tomámo-lo tal como foi descoberto; infantil, impecável
e impoluto desde o dia inaugural – é um anel que nos liga a um território e um
tempo sem os quais contabescemos na mais consumada barbaridade. Precisamos do
gato, em virtude da mesma razão pela qual o mundo o criou. Como observou
Montaigne, é o gato que brinca connosco, em vez de sermos nós a brincar com ele.
Foi para isso que ele foi feito: para o mundo ter com que brincar.