segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Sobre objectos de arte


 
Porventura, uma ajustada – autêntica – definição de Arte poderá ser a seguinte: Arte é a essência congénita, fundamental, de uma espécie peculiar de objectos capazes de crescer para além dos crisóis mecânico-tecnológicos que lhes serviram de ventres. Assim, um objecto artístico é gerado de modo artificial, mas depois de nascer está apto a amadurecer organicamente, como se fosse provido de vida.

No fundo, a Arte não imita a vida, como, por vezes, veicula esse vulgar adágio, aludindo a costumes, automatismos, e à transitoriedade que lhes subjaz – antes, é uma circunstante imitação da mecânica e da química dos bioprocessos.

Um objecto de arte comporta-se como um ser vivo — isto é, sem flebotologias ou outros vasos comunicantes que o interliguem ao útero artificial do qual efluiu e que abandonou por não precisar mais dele. Arte é a qualidade predominante, distintiva, desse objecto/organismo – criação capaz de jejuar décadas até ao momento em que se nutre de chofre num encontro com um leitor ou observador. Nesse momento, a Arte refulge: adquire em nós uma consciência de si.

Os livros, tomemo-los como modelos, são objectos de arte, mas a Arte, evidentemente, é a literatura. No seu comportamento de objectos/organismos perfeitos, os livros internalizaram em elegante ancilose toda a sua tecnologia genésica – desde a paginação, até à impressão e à encadernação – tal qual os fetos mantêm placenta e útero num primevo período gestativo. Uma vez concluído, o livro desentrega-se de toda e qualquer tecnologia, do mesmo modo que um recém-nascido abandona sem saudades as vísceras em que coalesceu.

Sobejos objectos tecnológicos dissimulam-se enquanto objectos/organismos, arengando prodígios e prometendo maravilhas, mas, no fundo, são incapazes de libertar-se da tecnologia — com efeito, não passam de cadáveres sem ela; não têm aptidão de transcender a materialidade que os opera. Porém, um quadro, uma escultura, um instrumento musical, um livro, uma fotografia — todos estas espécies diferentes de objectos/organismos feitos de materiais autónomos, como papel, pedra, metais, madeira, compartilham da beleza perspicaz que é a sua essencial emancipação em relação aos alvéolos oficinais que os caldearam. São, pois, objectos/organismos em virtude de se metamorfosearem num dado momento da sua materialização – de romperem a doce dependência do casulo tecnológico.

De serem capazes de existir, verdadeiramente, não só como ideias ou como eternos embriões acoplados a tecnológicos sacos vitelinos, mas como amadurecidas entidades; em suma, como possuidores de mensagens.


(Imagem: gelo quebrando-se na superfície de um lago, por Maruyama Okyo, séc. XVIII.)