Porventura, uma ajustada – autêntica – definição de Arte poderá ser a
seguinte: Arte é a essência congénita, fundamental, de uma espécie
peculiar de objectos capazes de crescer para além dos crisóis
mecânico-tecnológicos que lhes serviram de ventres. Assim, um objecto
artístico é gerado de modo artificial, mas depois de nascer está apto a
amadurecer organicamente, como se fosse provido de vida.
No fundo, a Arte não imita a vida, como, por vezes, veicula esse vulgar
adágio, aludindo a costumes, automatismos, e à transitoriedade que lhes
subjaz – antes, é uma circunstante imitação da mecânica e da química
dos bioprocessos.
Um objecto de arte comporta-se como um ser
vivo — isto é, sem flebotologias ou outros vasos comunicantes que o
interliguem ao útero artificial do qual efluiu e que abandonou por não
precisar mais dele. Arte é a qualidade predominante, distintiva, desse
objecto/organismo – criação capaz de jejuar décadas até ao momento em
que se nutre de chofre num encontro com um leitor ou observador. Nesse
momento, a Arte refulge: adquire em nós uma consciência de si.
Os livros, tomemo-los como modelos, são objectos de arte, mas a Arte,
evidentemente, é a literatura. No seu comportamento de
objectos/organismos perfeitos, os livros internalizaram em elegante
ancilose toda a sua tecnologia genésica – desde a paginação, até à
impressão e à encadernação – tal qual os fetos mantêm placenta e útero
num primevo período gestativo. Uma vez concluído, o livro desentrega-se
de toda e qualquer tecnologia, do mesmo modo que um recém-nascido
abandona sem saudades as vísceras em que coalesceu.
Sobejos
objectos tecnológicos dissimulam-se enquanto objectos/organismos,
arengando prodígios e prometendo maravilhas, mas, no fundo, são
incapazes de libertar-se da tecnologia — com efeito, não passam de
cadáveres sem ela; não têm aptidão de transcender a materialidade que os
opera. Porém, um quadro, uma escultura, um instrumento musical, um
livro, uma fotografia — todos estas espécies diferentes de
objectos/organismos feitos de materiais autónomos, como papel, pedra,
metais, madeira, compartilham da beleza perspicaz que é a sua essencial
emancipação em relação aos alvéolos oficinais que os caldearam. São,
pois, objectos/organismos em virtude de se metamorfosearem num dado
momento da sua materialização – de romperem a doce dependência do casulo
tecnológico.
De serem capazes de existir, verdadeiramente, não
só como ideias ou como eternos embriões acoplados a tecnológicos sacos
vitelinos, mas como amadurecidas entidades; em suma, como possuidores de
mensagens.
(Imagem: gelo quebrando-se na superfície de um lago, por Maruyama Okyo, séc. XVIII.)