terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Com dor de barriga no Presépio

 
As origens da noélica tradição catalã (e não só) que consiste em introduzir de modo escondido no presépio a figura de um camponês agachado a defecar, denominado de El Caganer, estão longe do esclarecimento, mas admitindo que ela poderá comunicar com múltiplas aportações, a maioria provavelmente perdidas, dá espaço à minha especulação que essa personagem, na qual, com latitude exagerada, alguns intentam explicar como sendo uma alegoria da fertilidade, se poderá relacionar — de modo directo, o que é mais tentador, ainda — com imagens da estirpe que aqui publico em anexo e que representam exemplos morais ou críticas de maus comportamentos; neste caso, a estultícia do pecador e os vícios que vai alimentando.

Não obstante essas incertezas, o significado que subjaz a esta prática popular vestir-se-á de grande beleza, em profundo contraste com o aspecto escatológico pelo qual é reconhecida: Cristo é presença sobrenatural, mas oferecida de modo orgânico e material ao mundo — a este mundo também orgânico e material —, sem que exista, para o efeito, um momento particularmente especial ou singularmente mais dignificante; assim, a presença de um homem que defeca no exacto instante em que Deus feito carne é trazido à Terra na sua vizinhança representa a generosidade imensa dessa mitologia fundacional do cristianismo, segundo a qual a divindade vai verdadeiramente ao encontro da humanidade, em todos os aspectos corpóreos, imperfeitos, vergônteos que a caracterizam — pois se é de assumir que no momento em um indivíduo morre, outro está a nascer, outros poderão estar a fazer amor, outros a comer e outros a defecar, por que razão seria diferente para um deus tornado ser humano, que tem como missão, precisamente, crescer e morrer como um deles, de molde a que o inefável aprenda o que isso é? El Caganer, personagem boçal, cruenta, de opaca organicidade, ensina-nos que todos os instantes são dignos o suficiente para que um deus decida nascer. Tudo é Criação. Tudo é perfeito. Qualquer hesitação é apenas vaidade.