Assistir na televisão a emissões do programa Prós e Contras sobre o tema das touradas já se vai tornando, por mérito próprio, uma espécie de para-tradição; ontem à noite*, mais uma vez os defensores e os opositores da dita festa brava esgrimiram veementemente argumentos antagónicos sem que se chegasse a qualquer tipo de conclusão. Do meu ponto de vista, ambas as trincheiras projectaram metralha: entenda-se, nuvens fragmentárias de munição pulverizada, eficaz em fazer estrago imediato, mas quiçá inútil em ganhar a guerra — que é outra forma de dizer que foram quase sempre argumentos improvisados a partir das palavras dos adversários, em vez de teses bem concertadas e impactantes.
Um dos erros frequentes, nesse debate e não só, é confundir-se constantemente a violência da tourada (no caso português, em menor grau que em outros países também tauróctonos) com um espírito passadista, caquético. Com efeito, o espectáculo da tourada possui muitos elementos anacrónicos e repetitivos, mas a violência não é um deles, pois esta é, em virtude da sua natureza, quase sempre revolucionária. Ou seja, não é pela via da crueldade e da exposição da carne coreotransmutada que a tourada estará ultrapassada. No actual panorama cultural, no nosso particular epocalismo, a violência é ritualizada, higienizada e adstrita a áreas exclusivas — à memória, assoma o trabalho seminal de Norbert Elias, Desporto e Sociedade, entre títulos diferentes de outros autores. Destapada da estanque caixa de Petri em que a enclausuramos, a violência patenteia o seu ethos mercurial, corrosivo e, sobretudo, incontrolável.
O erro de percepção permanece, por exemplo, nas comuns interpretações do fascismo que, nas últimas semanas, têm preenchido as páginas dos jornais e os ecrãs televisivos. Na entrevista que deu na edição do jornal Público do passado dia 5 de Novembro, Madeleine Albright reitera a acepção de que o fascismo é violento, porque é reaccionário, um tipo de retrocesso a um tempo de barbárie, mas se esse binómio pode ser atractivo para alguns leitores, não se sustenta à observação mais rigorosa do carácter revolucionário do fascismo e do projecto fascista de renovação de uma sociedade liberal de entre-guerras considerada fracassada e decadente; assim, a violência no fascismo que Albright traduz sob o signo do atavismo é, na verdade, uma ferramenta transformativa. Em simetria, a mesma lógica se encontra em outros projectos político-messiânicos e revolucionários do século XX, como o comunismo soviético, chinês e cambojano e no nacional-socialismo alemão: a violência ritualizada, mas jactante, abrupta, é, nestes campos, um éter que suporta o espírito de um tempo industrializado, eléctrico, um relâmpago de ruptura.
Ora, a violência na tourada é, também, revolucionária, no sentido transformativo: no livro O Processo Ritual, Victor Turner falava do espectador desta estirpe de espectáculos como um ser liminal, à beira da transformação — e, na verdade, pouco existirá de projecção mútua entre espectador e touro no que concerne aos valores que subjazem à tourada enquanto cápsula do tempo; em suma, só a regeneração catártica da violência se encontra, ainda, operativa. Só ela se afirma, pois as restantes dimensões históricas, até religiosas, quem sabe?, que coalesceram o espectáculo desapareceram.
Para ilustrar essa ideia recupero uma imagem do filme Novecento (1976), de Bernardo Bertolucci, sobre a emergência do fascismo. O filme é politicamente comprometido e o retrato histórico que se quer fidedigno apresenta-se, em demasiados aspectos, caricatural; contudo, lembrei-me dele em virtude da infame cena em que a personagem interpretada por Donald Sutherland, um fascista recém-saído do casulo, pendura num cabide com o auxílio do seu cinto um gato que desfaz com uma cabeçada para mostrar aos seus gemebundos colegas a maneira correcta de lidar com os comunistas. Ignoro o grau de conhecimento histórico que o realizador e argumentistas teriam das tradições populares italianas, mas calculo que entre os espectadores mais idosos tenha existido quem recordasse uma velha tradição italiana que consistia, precisamente, em amarrar gatos a postes ou troncos para, de seguida, cabeceá-los até à morte.
Em determinados períodos, esta prática revestiu-se de contornos de concurso e os participantes, de mãos atadas atrás das costas e cabeças rapadas, tentavam não ser gazofilados pelas garras enquanto procuravam esmagar com a testa os crânios dos gatos. Em tempos mais recuados, usavam capacetes pontiagudos, pelo que pode arguir-se, com cinismo, que o novo figurino, de mãos atadas e cabeças nuas, foi um encontro a uma contenda mais justa, de molde a que os gatos melhor mostrassem a sua bravura. Todavia, o que pretendo reter desta memória histórica — que, certamente, tem passado ao lado de quem viu o filme ou se dedica à sua crítica — é o facto de a violência, mesmo quando irrompe por via do atavismo, que neste caso é a tradição miserável de cabecear gatos, tem como horizonte a transformação, como no caso do fascismo de Novecento. A personagem de Sutherland não se vê como um agente a soldo do passado — pelo contrário, despreza-o e intenta ultrapassá-lo.
Não estou, de modo algum, a criar pontes entre fascismo e tourada: estou, sim, a reforçar a noção que a violência é sempre actual, futurista. Mesmo quando parece prisioneira de velhíssimas tradições rurais. Ao contrário do que pensam os detractores das touradas, é precisamente pela via da violência que esta mantém a sua actualidade.
*Artigo publicado originalmente a 20 de Novembro na minha página de Facebook.