Salò, o le 120 Giornate di Sodoma, filme realizado por Pier Paolo Pasolini, é uma obra dessa estirpe.
A natureza da arte é criar beleza; e o cinema, como a fotografia, fá-lo de um modo descomplexado, inclusive quando a matéria apresentada prima por um insustentável grau de violência (
Witkin,
Peckimpah,
Verhoeven). Quer se trate de instantâneos capturados no campo de batalha ou cenas gravadas numa cela escura de uma instituição punitiva existe sempre uma composição vestigial mecanizada pelo fotógrafo ou pelo cineasta, uma certa direcção artística. Mas em
Salò não existe nenhuma beleza; no mínimo, beleza envernizada. As imagens do filme são baças e estáticas. Sobretudo não indicam um juízo de valor e isso é confuso o suficiente, pois essa nudez quasi-documental faz do espectador um cúmplice.
Num pequeno documentário que integra os extras da edição em DVD da Costa do Castelo Filmes, a realizadora de
Romance, Catherine Breilat, diz que
Salò é uma obra cinematográfica que oferece uma experiência impossível de ser alcançada ou ultrapassada pela leitura. Sinto-me inclinado a concordar, pois considero que a imaginação individual é, por vezes, demasiado pobre em experiências alarmantes para fabricar imagens que consigam evocar sentimentos semelhantes aqueles que assolam o espírito e o corpo diante de obras como
Salò.
Não obstante, discordo, de igual modo, de Breilat, porque o filme de Pasolini é, na sua máxima espessura, uma obra literária.
O realizador da
Trilogia da Vida é, acima de tudo, um escritor e os filmes que nos deixou, mais que imagens sobre enredos, são contos ilustrados por imagens animadas. Esta desventura que nos conta a história de quatro italianos, pertencentes à elite fascista, que decidem acabar os seus dias numa propriedade isolada de modo a dedicarem-se a ininterruptos exercícios de crueldade é toda contada em pequenos episódios, seja pelas prostitutas incumbidas de abrir as sessões orgiásticas com relatos titilantes ou por farrapos que parecem ter caído de um caderno de apontamentos como são exemplo os diálogos delirantes entre os velhos pederastas. É uma espécie de
A Grande Farra às avessas.
Acredito que as alacridades perpetradas pelos carcereiros são comentários aos contos das prostitutas: a personagem interpretada por
Umberto Paolo Quintavalle, ele próprio um escritor sem experiência de representação e convidado por Pasolini em virtude da compleição doentia, interrompe o relato da primeira prostituta e exige que ela seja pródiga em pormenores. Só dessa forma, explica, pode ele, e os colegas, retirar o combustível necessário às diabruras.
«É aceite entre os verdadeiros libertinos que as sensações comunicadas pelo ouvido são as mais vivas.»(1)
O conto de prostíbulo é a
primeira obra e a sevícia imaginada em seguimento é, dessa forma, o
comentário - o segundo texto. O homem que corrompe o corpo do adolescente que escolheu para vítima é, apenas, um
crítico, um teórico que intenta complemetar o opúsculo original e explorar as possibilidades gramaticais que este deixou em aberto.
Acentuei gramaticais e não semânticas, pois as brincadeiras ofensivas não visam a pessoalidade da vítima nem a intimidade que poderia ter-se desenvolvido entre ela e o carrasco. A violência dirige-se ao corpo; e ao corpo enquanto aparelho composto de peças (mãos, boca, órgãos genitais) que podem ser substituídas por outras se manifestarem defeito. Um bom exemplo dessa lógica industrialista é uma cena iniciática na qual um dos fascistas recusa uma rapariga durante uma mostra porque lhe descobre um dente cariado. Não existe qualquer desejo em
Salò e nenhum ódio. Existe
burocracia.
Uma vontade de parar o tempo histórico exterior aos muros da propriedade tornada campo de concentração e que anuncia a capitulação do fascismo que protege a República de Salò criada por Mussolini. O que os quatro fascistas tentam fazer é cristalizar o fluxo; ou melhor, fazê-lo circular como o tempo vivido pelas sociedades primitivas. Justifica-se, assim, a escolha do calendário dantesco (os Círculos das Manias, da Merda e do Sangue) que orienta os dias deles de volta ao primeiro instante - à inauguração: a esse momento recheado de novas possibilidades e novos corpos prontos a ser abraçados. Os fascistas de
Salò não temem o tédio, pois sabem que tudo irá recomeçar: o tempo é o seu palimpsesto.
«Belo e certo céu, vê-me a ser diferente! Após tanto orgulho, tanto e estranho ócio, carregado embora de estranhos poderes, faço a minha entrega ao espaço brilhante, sobre o lar dos mortos corre a minha sombra (…)»(2)
O Mal que respira em
Salò - e argumentar que conceitos de Bem e de Mal não se aplicam a este filme é falacioso - é um terror despersonalizado; no sentido da não-encarnação. É um ectoplasma indistinto que voga sobre os indivíduos, moldando-lhes o comportamento, como o clima. É o mesmo tipo de mal que encontro nos aparelhos punitivos das histórias de Kafka e nas figuras intersticiais dos Ringwraiths de
O Senhor dos Anéis, de
Tolkien: uma presença que mais que testemunhada é sentida.
A
burocratização do mal, epígona da metade do século XX, não é fruto da hierarquia que se instaura no interior da propriedade, e que rege tanto o escritório como o excretório, mas, possivelmente, contingência de um fenómeno mais antigo: o advento do Iluminismo e a cessação das meta-narrativas (mitos) de ordem religiosa.
Com efeito, a imagem analógica do campo de concentração endémico do período da Segunda Grande Guerra é o Inferno.
«Tem-se falado muito da solidão e da desorientação do homem desde a época em que o Paraíso deixou de ser objecto de uma crença activa. Conhecemos o vazio neutro dos céus e o seu terror. Mas talvez a perda do Inferno tenha sido mais devastadora ainda. Talvez a transformação do Inferno em pura metáfora tenha deixado uma lacuna formidável nas coordenadas do reconhecimento espacial e psicológico do espírito do Ocidente. A ausência dos condenados familiares escavou um vórtice que o Estado totalitário contemporâneo terá vindo preencher. Não temos Paraíso nem Inferno é ficarmos intoleravelmente despojados e sós num mundo sem espessura. Dos dois reinos perdidos, verificou-se que era o Inferno o mais fácil de recriar. (As suas descrições tinham desde sempre sido mais precisas.)»(3)
A casa de
Salò é um Inferno miniaturizado e as quatro personagens que a governam são embaixadores dos poderes institucionais: temos um juiz, um bispo, um duque e um político. Todos eles casados com as filhas uns dos outros, como que para sublinhar o pacto - a consanguinidade - entre os departamentos. A fenomenologia da hierarquia é a dominância, claro, mas mais que o simples jugo dos indivíduos, sob graus de exigências, é a domesticação do desconhecido. Numa hierarquia cada um tem o seu lugar cativo e as relações entre constituintes cumprem-se pela correspondência. Ora, o Homem hierarquizou o Inferno - em círculos, em diversos níveis de torturas para os pecados mais exóticos, regidos por castas demoníacas de diferentes importâncias - para o conhecer: para negociar com o Inominável.
O Diabo que atende o sacrifício do nobre é superior ao Familiar que auxilia a bruxa, e assim cada qual controla o seu medo do desconhecido com um sistema de correspondências que não assusta ninguém pois reproduz o modelo feudal terreno. A perda de todo esse sistema deixou, com toda a certeza, cicatrizes profundas no nosso tecido cultural. A transcrição de
George Steiner aponta um efeito dessa queda, mas haverá outros.
Baseado no livro homónimo escrito pelo Marquês de Sade,
Salò suplanta esse trabalho literário e apresenta-se como um objecto mais lúcido: o humor do filme é sempre acidental, inversamente ao humor de Sade que procura ser constante. Pasolini cita
Pierre Klossowsky, irmão de
Balthus Klossowsky, e o seu
Sade, Mon Prochain (título que evoca S. Bento Labre que comia as lombrigas expulsas nas próprias fezes),
Roland Barthes e
Sade, Fourier e Loyola, entre outros autores. Curiosamente, olvidou, intencionalmente ou não, o ensaio de
Bataille em
La Littérature et le Mal. O enredo de Salò pode ser entendido como uma sátira (grotesca) à erotização da relação que se estabelece entre professor e aluno. Como se os assassinos procurassem discípulos dignos entre as vítimas e as torturas fossem uma correspondência desproporcional com os ritos de passagem arquetípicos que os neófitos precisam cumprir para ganharem a confiança dos Mestres e garantir o treino intelectual ou físico. A ir por esse caminho, também ele legítimo, encontro nesta transcrição de
Yukio Mishima o exemplo perfeito dessa premissa:
«Ele é o homem mais livre do mundo... Ele acumula o Mal e ergue-se sobre ele. Se quisesse, poderia tocar a Eternidade com as pontas dos dedos levantados. Ele que fez santidade da imundice.»(4)
Os celerados de
Salò afundam-se na bebida e em acesas discussões filosóficas sobre a natureza do Mal. É preciso não esquecer que são eles a elite do seu país: aqueles que lêem e têm acesso à cultura estrangeira alvo da censura imposta pelo regime. Assistimos à aniquilação da civilidade do Homem de Cultura, pois ele não previne a barbárie e acaba, enfim, por se perder em prejuízo de rituais sem sentido que têm como objectivo iluminar o seu espírito sobre um conhecimento mais elevado, mais transcendental. Sob a égide de que nada deve ser proibido se for excessivo, os fascistas de
Salò almejam a ascese, mas o próprio movimento circular em que estão imersos regurgita-os sempre à ignorância. O Homem Clássico foi, em certa medida, um felizardo, pois nunca travou conhecimento com a face mais desumana do seu descendente.
Salò pertence a uma escola de cinema que se extinguiu. O
casting de Pasolini é correctíssimo: as composições dos quatro fascistas são verdadeiramente repulsivas. Neste filme tudo é feio – até atonal.
No cinema, o texto literário é, cada vez mais, somente uma legenda para a imagem projectada. Em
Salò as imagens ferem, é certo, mas quem deixa marcas é a palavra.
Mandatório. Nem que seja visto só uma vez.
(1) Marquês de Sade, Os Cento e Vinte Dias de Sodoma.
(2) Paul Valéry, O Cemitério Marinho.
(3) George Steiner, No Castelo do Barba Azul: Algumas Notas Para a Redefinição da Cultura.
(4) Yukio Mishima, Madame de Sade.