terça-feira, 6 de outubro de 2009

Crítica a "2666"

«Acordai, pecadores, acordai, não durmais mais; Olhai que estão ardendo em chamas as almas dos vossos pais que vos deixaram os bens e vós deles não vos lembrais.»
(Cantiga de "Encomenda de Almas", típica de Miranda do Douro)

«The analogy between ancient practice and modern pantomime is often stirking in the extreme. From the myth of Lityerses as sung by the Phrygian harvesters, it can be deduced that it was once the custom to seize a stranger who happened to pass a cornfield and to put him to death as a human embodiment of the corn spirit. The mythical Lityerses used to regale the passing stranger with food and drink, then take him to the cornfields on the banks of the Meander and compel him to reap with him. Lastly he would wrap the stranger in a sheaf, cut off his head with a sickle and carry away his body awathed in corn stalks. At Carnival time in the Vinhais district of Trás-os-Montes, young men disguised as Death or as the Devil seize any passing stranger and make him kneel on the bare earth while the assembled multitude cry "Death!
(Rodney Gallop, Portugal: A Book of Folk Ways)

«"Do you think," asked Afanasievna, "that the dead feel sexual desire?"»
(Roberto Bolaño, 2666)


Talvez não seja uma coincidência que tenha acabado de ler o romance 2666, de Roberto Bolaño, nesta altura do ano, em que o cadáver do Verão ainda está morno, para lá de qualquer expectativa; o calor que se desprende das ossadas do estio está longe do vigor fastígio dessa estação, mas, mesmo assim, pode escaldar se nos mantivermos muito tempo na sua proximidade. Nesse sentido, recheado de panoramas áridos, setentrionais, 2666 queima, não como o Sol do zénite, o que seria de esperar, mas de mansinho, quase docemente. É um calor corrupto que, passando despercebido ao longo de centenas de páginas, vai fritando por dentro.

O hype que a publicação do romance provocou por todo o lado é perfeitamente compreensível: 2666 é muitíssimo bom.
É, também, muitíssimo bom poder falar bem de um livro que está na moda, já que é raro um grande fenómeno de popularidade construir-se à conta de uma obra desta monumentalidade. Não acho que seja um romance genial. Ou melhor: que seja tão bom quanto já o descreveram, mas reparem que, na minha opinião, isso só é assim porque já li outros livros que me impressionaram mais. Até hoje li muitos livros bons (felizmente) e há poucos que considero verdadeiramente geniais. Darconville's Cat é um deles. Com efeito, pouquíssimos romances conseguem alcançar as alturas a que chegou Alexander Theroux (irmão do escritor Paul Theroux) com a escrita desse título magnificente que (até agora) considero o romance mais genial que li. O livro de Theroux é prodigioso. 2666 é "apenas" muitíssimo bom... Mas quão muitíssmo bom ele é!...

Ombreia com monstros literários sem que estes lhes façam sombra; e, contudo, imiscui-se nesse panteão de uma maneira mansa. Uma mansidão que nada tem a ver com tibieza, mas com o tal calor sorrateiro que mencionei no início.
Bolaño quer transmutar-nos: pôr-nos a ferver para, sob a forma de vapor, ascendermos a outros estádios de consciência. Afinal de contas, esse é o objectivo de qualquer obra artística que se leve a sério: operar mudanças - e, de acordo com essa premissa, 2666 é um êxito da mesma ordem que o sucesso crítico que recolheu. Operará é mudanças lentas. Tão lentas quanto as espreguiçadelas das camadas estratigráficas da terra. Não estaremos vivos para ver os efeitos que irão provocar, mas é bom que possamos testemunhar as primeiras fissuras.

Li um exemplar traduzido por Natasha Wimmer, porque tive dúvidas se iria ser capaz de compreender o original de língua espanhola. Como não estou habituado a ler nesse idioma preferi não arriscar e comprei a versão em inglês para não perder informação (a versão portuguesa ainda não tinha sido publicada). Por conseguinte, a minha avaliação de 2666 é feita sobre a tradução inglesa.

A prosa de Bolaño (consequência dessa versão?) é simples, apesar de nada ter de simplório. Somente não contém nenhuns florilégios, daqueles que levantam obstáculos à leitura quando o autor não é hábil o suficiente para os domar. Falei em Theroux e ele é o melhor exemplo que eu conheço de um escritor que é capaz de escrever um romance inteiro com neologismos e florilégios variados sem prejudicar o todo. Na literatura fantástica também existem excelentes exemplos desse tipo de labores ecléticos: Riddley Walker de Russel Hoban ou até mesmo Shardik de Richard Adams. Todavia isso não significa que outros tenham de seguir esse caminho. Bolaño não o segue, de todo. Aliás, "todo" é mesmo o substantivo que serve de mote à minha apreciação: o escritor chileno é um artesão do todo e não do particular - como podia ele perder tempo com minudências soltas se o romance inteiro é imaginado como peça única com tanta escrupulosidade?

Dividido em cinco capítulos (A Parte Sobre os Críticos, A Parte Sobre Amalfitano, A Parte Sobre Fate, A Parte Sobre os Crimes e A Parte Sobre Archimboldi), pode dizer-se que 2666 orbita em volta de dois eixos, torcido como uma Faixa de Möbius: o primeiro é a história de vida do arisco escritor alemão Benno von Archimboldi, nom de plume de Hans Reiter, que, aparentemente, perambula algures no México, na vizinhança da cidade de Santa Teresa (na fronteira com os Estados Unidos), afastado das lides literárias europeias que, volta e meia, o nomeiam para o prémio Nobel da Literatura. É neste contexto de demanda quase espiritual pelo paradeiro desta personagem que quatro académicos viajam para Santa Teresa em busca do seu escritor preferido.

O outro ponto principal são os crimes violentos que vitimam as mulheres de Santa Teresa: centenas de cadáveres são descobertos mensalmente, durante vários anos, sem que qualquer pista sobre o assassino, ou assassinos, seja descortinada. Não deixa de ser sob um clima de apatia que estas mortes ocorrem em catadupa - como se a vida de todos os dias fosse desse jaez. Mas, no final de 2666, percebemos que a verdade é outra; se bem que de modo enviusado... Não há desfecho nenhum.
No mínimo, um desfecho esclarecedor.
É uma obra aberta, mas que também não é elusiva. Talvez dimane do facto do livro ser, bem vistas as coisas, um trabalho incompleto? (Bolaño morreu enquanto trabalhava nele.) Porém não foi esse tipo de interrupção que senti e é bem possível que a versão publicada de 2666 seja muitíssimo próxima daquilo que o autor idealizou. (Ou talvez não, porque ao que parece existe um possível sexto capítulo que não foi compilado. Iremos ter outra edição? Seja como for, não se pode falar daquilo que está ausente. É provável que, caso venha a ser publicada outra versão, muita coisa que se escreveu sobre ele seja rectificada. Incluindo esta apreciação. À vista disso, e para usar uma alegoria, talvez seja mais correcto dizer que a conclusão de 2666 não é, de facto, inconclusiva: é absoluta.)

Tão absoluta quanto o horizonte observado no deserto: sabemos que a paisagem não é infinita, mas lá que parece, parece. Penso que se trata de uma obra que convida à releitura. Finnegans Wake de James Joyce, por exemplo, é infinito, pois o final é o início, mas a releitura que (também) exige é da mesma estirpe. Bolaño não é Joyce e nem 2666 consiste num manual de ocultismo disfarçado de romance quebra-cabeças como é Finnegans Wake. A ser alguma coisa mais classificável, por mais curioso que isso possa parecer, será um livro policial. Na verdade, o quarto capítulo lê-se como um, e apesar de ser o pior (de um ponto de vista formal) contém algumas das melhores passagens. Entre as páginas 427 e 437 (Picador, 2009) lemos a estreia televisiva da vidente Florita Almada, personagem que tem visões sobres os terríveis crimes de Santa Teresa e que, às tantas, discorre sobre a Lua de um modo que invoca o poema Endymion de John Keats, usando o governador mexicano Benito Juárez como pastor.

Quando Bolaño referencia outros autores e livros, em momentos que não concorrem para o desenvolvimento da narrativa, fá-lo de modo indirecto - miragens no seu deserto. Existe também nesse capítulo um pequeno episódio cheio de humor que conta a história de um emigrante falhado que passou toda a vida a ser capturado nos Estados Unidos e a ser repatriado para o México. Já idoso, o homem porfia em fugir para a América e os coyotes (nome pelo qual são conhecidos os agentes que transportam os clandestinos para solo norte-americano) levam-no de borla porque ele já não tem dinheiro para lhes pagar e porque, como escreve Bolaño: «after the fiftieth deportation the polleros and coyotes brought him along out of friendship, and after the hundredth they probably felt sorry for him, he thought. Now, he said to the Tijuana talk show host, they brought him as a good-luck charm, because his presence in some way relieved the stress for everyone else: if anyone was caught that someone would be him, not the others, at least if they knew to steer clear of him once they had crossed the border. Put it this way: he had become the marked card, the marked bill, as he said himself» (pg. 567).

O segundo capítulo (o mais curto) agarra numa personagem algo clownesca do capítulo anterior, o professor de filosofia Oscar Amalfitano, e oferece-lhe uma inesperada dimensão trágica. A transformação desta personagem é um dos momentos mais poderosos do romance e assistir aos receios dela é comovente. À guisa de talismã contra o mal que permeia Santa Teresa, Amalfitano pendura um livro aberto no varal de secar a roupa: trata-se do Testamento Geometrico escrito pelo galego Rafael Dieste. Achado de modo acidental nas caixas de livros que ele expediu de Barcelona quando se mudou para o México, é um título de que Amalfitano não tem recordação e, assim, é encarado como sendo um mau presságio. Inspirado por uma ideia do artista surrealista francês Marcel Duchamp, que consiste em pendurar um livro de geometria num estendal para que o mesmo possa aprender sobre a vida comum, o professor assim faz, esperando, ao mesmo tempo, que o mal fique preso e não lhe roube a filha, Rosa, que anda em muito más companhias; e cuja história é narrada em A Parte Sobre Fate, na qual a rapariga se envolve com um jornalista negro, correspondente de uma revista anacrónica, que aparece de repente na vida dela em jeito de cavaleiro branco. Entretanto, no segundo capítulo, os diagramas que Amalfitano passa a desenhar de forma quase automática, com formas geométricas e nomes de intelectuais (uns mais ilustres que outros), cifram-se numa ideia que não se encontra desenvolvida da melhor forma, talvez porque Bolaño não nutrisse um interesse genuíno pelas discipinas ocultas - e é uma pena porque muito sumo se poderia espremer dessas enigmáticas construções geogramágicas. Como tantas outras coisas em 2666, ficam para o leitor dar continuidade com a sua imaginação.

O capítulo inaugural tem algo dos dramas amorosos de Éric Rohmer, mas um Éric Rohmer que bebe mezcal como se não houvesse amanhã: a desilusão, o engodo e a mise en scène rohmerianos estão lá (tudo em A Parte Sobre os Críticos se lê em "grande angular", sem grande proximidade entre o leitor e o texto - retenham as descrições dos espelhos no quarto da académica Liz Norton), mas fortalecidos por uma lógica de embuste e, claro, personagens de uma faixa etária que são alheias à sensibilidade do realizador de Contes des Quatre Saisons. Também se pode dizer que passam por aqui influências de Jorge Luis Borges, mas será que passam ou fica-se com essa ideia porque se fala muito de livros fictícios e escritores desavindos? É possível que seja um capítulo borgiano, mas "honorário".

A Parte Sobre Archimboldi consiste num belo final para o romance; mas um final "permissivo", como já referi, com tudo o que de bom e de mau daí emana. Esta omissão, não de oferecer explicaçõezinhas para tudo o que foi deixado em aberto, o que até seria patético (à maneira dos piores filmes de Hollywood), mas a de não fazer da última parte um aglutinador das diferentes densidades que compõem o romance é aquilo que me impede de achar 2666 um livro verdadeiramente genial. Aliás, tanto nesta omissão, como nas descrições geográficas (reais) que nos vai mostrando, é muito parecido com o livro The Seven Who Fled de Frederic Prokosh, um título que, como este de Bolaño, vai acumulando locais (imaginários) e personagens para nos dar um desfecho que não é desfecho nenhum. Chega-se ao final de ambos com a sensação que foi derramada qualquer coisa e que o jarro ficou vazio. Bem, no caso de 2666 foi mesmo derramada uma coisa: a vida do autor.

O relato da vida de Hans Reiter (aka Benno von Archimboldi) é do melhor que 2666 tem para oferecer. Depois de passar uma infância feliz, dedicada a mergulhos exploratórios no mar, o anormalmente alto Reiter é engajado na Wehrmacht. Nesse contexto, descobre, num esconderijo oculto dentro de uma lareira, os diários de um judeu comunista que vão ser a sua obra de formação. Graças a essas páginas, Reiter recupera a voz (perdida por culpa de um ferimento de guerra) e adquire inteligência criativa (até essa altura foi criatura insipiente), acabando por tornar-se escritor, alguns anos mais tarde. Para o efeito, quando vai alugar uma máquina de escrever, apresenta-se como Benno von Archimboldi, invocando o pintor preferido do judeu comunista e o mesmo "pastor" de que fala a vidente Almada no programa televisivo.

É como um quadro archimboldiano que 2666 deve ser observado: de forma holística; ou seja, em "grande angular". Contém múltiplas pequenas histórias fascinantes, como aquela que se pode ler no último capítulo (pgs. 710-728) sobre o escritor russo de ficção científica, amigo do judeu comunista, que é morto por suspeitas de ligações trotskistas: «And it was around this time that he met Efraim Ivanov, the science fiction writer, at a literary café (...) Ultimately, thought Ansky, the revolution would abolish death. When Ivanov told him that this was impossible, that death had been with man from time immemorial, Ansky said that was precisely it, the whole point, maybe the only thing that mattered, abolishing death, abolishing it forever, immersing ourselves in the unknown until we found something else. Abolishment, abolishment, abolishment» (pg. 710).

Este capítulo também contém esta curiosa observação sobre o ofício da escrita: «For Ivanov, a real writer, a real artist and creator, was basically a responsible person with a certain level of maturity. A real writer had to know when to listen and when to act. He had to be reasonably enterprising and reasonably learned. Excessive learning aroused jealousy and resentment. Excessive enterprise aroused suspicion. A real writer had to be someone relatively cool-headed, a man with common sense. Someone who didn't talk to loud or start polemics. He had to be reasonably pleasant and he had to know how not to make gratuitous enemies. Above all, he had to keep his voice down, unless everyone else was raising his» (pg. 714).

2666 pertence à classe dos melhores romances, como Gravity's Rainbow de Thomas Pynchon ou The Recognitions de William Gaddis (um excelente romance que não deixa de ter alguns pontos de contacto com o de Bolaño) e encontra-se recheado de personagens e pequenas histórias fascinantes (a do pacto "satânico" com Deus, por exemplo, na página 675).
Como convite à leitura apenas deixo este excerto: «(...) where the Aztec priests or doctors lay their victims before tearing out their hearts. But now comes the part that will really surprise you. This stone bed where the victims were laid was transparent! It was a sacrificial stone chosen and polished in such a way that it was transparent. And the Aztecs inside the pyramid watched the sacrifice was if from within, because, as you'll have guessed, the light from above that illuminated the bowels of the pyramids came from an opening just beneath the sacrifical stone, so that at first the light was black or gray, a dim light in which only the inscrutable silhouettes of the Aztecs inside the pyramids could be seen, but then, as the blood of the new victim spread across the skylight of transparent obsidian, the light turned red and black, a very bright red and a very bright black, and then not only were the silouettes of the Aztecs visible but also their features, features transfigured by the red and black light, as if the light had the power to personalize each man or woman, and that is essentially all, but that can last a long time, that exists outside time, or in some other time, ruled by other laws. When the Aztecs came out of the pyramids, the sunlight disn't hurt them. They behaved as if there were an eclipse of the sun. (...) And above them in the sky there was always an eclipse» (pgs. 698-699).

Isto deu-me que pensar e, reflectindo sobre imensos detalhes da obra que se ligam de modo insuspeito, comecei a achar que talvez o número 2666 não fosse tanto uma data, mas uma espécie de número verde para o qual se pode ligar e evitar, quem sabe, o dia do Juízo Final. É que, com efeito, prevê-se um eclipse do Sol para o ano de 2666.
Trata-se de um eclipse parcial e é apenas um dos muitos que irão ocorrer no século XXVII, mas, entre tantos, o Apocalipse teria de chegar às costas de um, não é verdade?
Talvez os crimes de Santa Teresa, que até parecem ser cometidos por pessoas diferentes, alguns quase por acidente, sejam um atavismo azteca - anticorpos aztecas - para evitar que uma desgraça maior suceda? Será esse o grande mistério de 2666?
O romance é tão generoso que também permite esta leitura.