segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Teleplasma

A televisão vem ocupar o lugar vagado pela prática da feitiçaria, assim como a feitiçaria arrogou para si o papel desempenhado pela guerra primitiva.
Segundo Gilles Lipovetsky a feitiçaria é: «a prossecução do imperativo de guerra por outros meios. (...) Toda a desgraça provém de uma violência mágica, de uma guerra perniciosa, de tal maneira que aqui o outro só pode ser amigo ou inimigo segundo um esquema semelhante ao instituído pela guerra e pela troca. Com a regra de reciprocidade, com efeito, ou os homens trocam presentes e são aliados, ou se interrompe o ciclo dos presentes e os homens tornam-se inimigos. A sociedade primitiva que, por um lado, impede o aparecimento da divisão política, gera, por outro lado, a divisão antagónica na representação da relação de homem a homem. Não há indiferença, não há relações neutras como as que irão prevalecer na sociedade individualista. (...) na feitiçaria, uma vez que tudo o que de funesto acontece ao ego se liga necessariamente a um outro. Nos dois casos, os homens não podem pensar-se independentemente uns dos outros; o sortilégio não passa da tradução invertida da dádiva de acordo com a qual o homem só existe numa relação socialmente pré-determinada com outro. (...) não há feitiçaria na sociedade em que o indivíduo só existe para si próprio; o desaparecimento da feitiçaria na vida moderna não pode ser separado de um novo tipo de sociedade em que o outro se torna a pouco e pouco um desconhecido, um estranho à verdade intrínseca do ego.»

E ainda: «Com o Estado centralizado e o mercado, surge o indivíduo moderno, considerando-se a si próprio isoladamente, absorvendo-se na dimensão privada, recusando a submeter-se às regras ancestrais exteriores à sua vontade íntima, não reconhecendo já como lei fundamental senão a sua sobrevivência e interesse próprio.»

Mesmo conhecendo a existência na antiguidade de fenómenos republicanos, mais ou menos oligárquicos, a república moderna só emergiu depois da ruína das instituições monárquicas e com a elaboração de um novíssimo conjunto de princípios, correlacionados com exigências de carácter democrático; doutrina que atinge o ponto de ruptura com os sistemas regentes durante a Revolução Francesa, a partir da qual o sistema republicano se converte no regime predominante em França e em muitos outros países.
O rompimento com as tradições monárquicas e o feudalismo assinala, também, um divórcio com uma visão creacionista do mundo e a influência da igreja sobre a sociedade diminui, contribuindo para isso a propagação da Revolução Industrial e a formação de novíssimos agregados familiares nos quais a hierarquia encabeçada por uma única figura masculina de poder já não se reflecte nas relações entre pais e filhos, fragmentadas pelo mecanismo que os alimenta. Com a revolução industrial surge a necessidade de alfabetizar as classes mais pobres. A dinâmica laboral evolui e o sucesso da sua manutenção depende de trabalhadores cada vez mais especializados que saibam ler instruções e calcular situações rápidas e gradualmente mais complexas. Nasce a chamada Classe Operária.

Mais ou menos contemporânea destas mudanças paradigmáticas, a televisão é fruto de uma série de invenções isoladas que têm início com a criação de um dispositivo para transmitir imagens à distância imaginado pelo físico alemão Paul Nipkow, em 1884, e que culminam em 1934 com a apresentação do iconoscópio de Vladimir Zworykin, aparelho que abre caminho à criação dos primeiros televisores completamente electrónicos. A televisão vem unir os indivíduos alienados por um mundo tornado grande demais de repente e fabricar novas tradições que comunicam com a sua própria difusão: os acontecimentos mais importantes da vida mundial passam a ser vistos por milhões de pessoas através do ecrã da televisão; e, mais que o cinema, a televisão é passível de ser transformada em fétiche só por ser um objecto táctil. A televisão não só é para ver (em alemão, televisão diz-se fresehen; literalmente, olhar à distância) como para mexer e para criar presença.

A televisão passa a ser parte da família: é um elemento que partilha histórias e faz companhia, mas pode revelar-se um elemento castigador ou um poderoso agente de tentação. O olho humano deixa de ser um órgão da visão para ser uma mucosa, como a boca, pela qual os nervos são estimulados - viciados. A hipertrofia da estimulação obriga a doses cada vez maiores de estímulos visuais de maneira a ultrapassar os limites de tolerância criados pelo cérebro; tal como a cera que é segregada pelos ouvidos para proteger os tímpanos de, lá está, noise.

A substância televisiva - teleplasma? - modifica o espectador, aproximando-o de si, ao mesmo tempo que esse mesmo espectador tem um papel decisivo na formatação dos programas. Ele não é hospedeiro da emissão televisiva, mas seu «cúmplice»; citando uma palavra do filósofo brasileiro Moniz Sodré, que se dedica ao estudo dos grandes veículos de comunicação. Vale a pena sublinhar o carácter regulador da televisão, que acaba por funcionar num sistema de punição e recompensa. (E, nesse sentido, semelhante ao fenómeno da feitiçaria estudado por Lipovetsky.) Mas onde na fenomenologia da feitiçaria podemos facilmente detectar os vestígios da acção do pensamento mágico, ou a presença do sobrenatural, no universo telegístico a tarefa não é simples. No mínimo, a um primeiro escrutínio, pois o que fazemos, erradamente, é transferir para o segundo exemplo a crença de que existe algo mais que sensações e prazeres, órgãos e corpos, sistemas e funções. Também na feitiçaria a vontade sobrenatural não existe: existe, sim, um comprimento de onda. Esse comprimento de onda, essa identidade - e como identidade assumo toda a cultura que está na origem do fenómeno da feitiçaria, e, por extensão, do televisivo - é, na realidade, uma espécie de texto: de guião. Mas um guião que é inato. Esse texto é, também, o elemento sobrenatural do fenómeno televisivo.
O binómio Televisão + Feitiçaria faz todo o sentido quando observado à luz da separação de classes.

O chamado telelixo, composto por reality-shows e programas humorísticos de gosto duvidoso cumpre a função de criar sedimentos de diferentes espectadores. As classes carenciadas culturalmente aderem com mais prontidão ao fascínio da feitiçaria e aos mistérios do oculto de pacotilha, porque, paralelamente à religião, lhes oferecem modelos domésticos de controlo fáceis de dominar; e, já que é assim, absorvem com igual prazer o denominador comum mais rasteiro que lhes entra em casa pela televisão. Mas nada disto é novidade: a televisão de grande audiência acaba por ser como o freakshow que atraía as pessoas à praça pública para que escarnecessem dos aleijados e dos anões.

A própria câmara televisiva aproxima-se do kit da feitiçaria porque evoca o símbolo protector usado pelos supersticiosos contra o malocchio: um vítreo olho ciclópico. Contudo, se também o ecrã pode ser um olho será sem dúvida o da Górgona Medusa: a televisão faz estátuas de pedra de todos nós.