Apesar de ainda não o ter visto, soube que foi editado há pouco tempo o romance Passageiros da Neblina, da autora espanhola Monserrat Rico Góngora, que, tal como o meu A Conspiração dos Antepassados, fala sobre o encontro de Fernando Pessoa e Aleister Crowley na Lisboa de 1930. Hoje de manhã encontrei na net uma entrevista que essa escritora deu ao Diário de Notícias e fiquei muitíssimo surpreendido: pela negativa.
O problema é meu, porque como levo o ofício da escrita a sério, assumo que a maioria dos escritores também o fazem. Por conseguinte quando Góngora diz na entrevista que «Crowley era uma pessoa depravada, tinha praticado em Itália rituais de canibalismo que resultaram numa ordem de expulsão do próprio Mussolini. Sabe-se que vampirizou pessoas na Índia e esteve ligado a cultos satânicos (...)» e, ao mesmo tempo, afirma numa entrevista ao site Portal de Livros que «técnica e credibilidade obtém-se com anos de esforço e investigação» eu interrogo-me sobre quanto «esforço» e «investigação» é que ela terá dedicado à vida de Aleister Crowley, personagem sobre a qual decidiu escrever.
Não vou calçar luvas de pelica: afirmações deste género só têm o objectivo de titilar os potenciais leitores e não servem em nada para esclarecer as vidas das personagens (reais) que, supostamente, servem de motor à narrativa. Eu li todo o material biográfico relevante disponível sobre Aleister Crowley (assim como o disponível sobre Fernando Pessoa) e não encontrei uma única linha que pudesse corroborar as supracitadas afirmações da escritora espanhola.
Na verdade, Crowley tentou criar uma seita (mais de inspiração literária que verdadeiramente religiosa) em Cefalù, na Sicília, mas não foi expulso por culpa de «rituais de canibalismo» nenhuns, nem sequer foi expulso por culpa da (esta, sim, verdadeira) morte acidental de um discípulo. Crowley foi expulso da Itália por Mussolini porque os fascistas acharam que Crowley estava a criar uma célula comunista à porta da casa deles. Aliás, quando Crowley publicou O Livro da Lei, este foi recebido pela maioria dos leitores como sendo um livro comunista e a aura de simpatizante do regime soviético não o abandonou durante esses anos. Terá até sido essa uma das razões pela qual ele se lembrou de enviar uma cópia d'O Livro da Lei a Hitler, quando este "ganhou" as eleições na Alemanha: para mostrar que não era comunista nenhum.
Mas é claro que dizer isto numa entrevista não é tão titilante como dizer-se que Crowley era satanista (no sentido mais vulgar da palavra) ou canibal. A verdade histórica raras vezes pode ser reduzida a soundbytes desse género.
Não li o livro Passageiros da Neblina, mas se este tipo de «esforço» e «investigação» é aquele que pautou a escrita dele, então dispenso, muito obrigado.
É que levo demasiado a sério o ofício da escrita - e a investigação séria e rigorosa que está por trás desse labor - para, sequer, achar piada a este tipo de "intervenções".
O problema é meu, porque como levo o ofício da escrita a sério, assumo que a maioria dos escritores também o fazem. Por conseguinte quando Góngora diz na entrevista que «Crowley era uma pessoa depravada, tinha praticado em Itália rituais de canibalismo que resultaram numa ordem de expulsão do próprio Mussolini. Sabe-se que vampirizou pessoas na Índia e esteve ligado a cultos satânicos (...)» e, ao mesmo tempo, afirma numa entrevista ao site Portal de Livros que «técnica e credibilidade obtém-se com anos de esforço e investigação» eu interrogo-me sobre quanto «esforço» e «investigação» é que ela terá dedicado à vida de Aleister Crowley, personagem sobre a qual decidiu escrever.
Não vou calçar luvas de pelica: afirmações deste género só têm o objectivo de titilar os potenciais leitores e não servem em nada para esclarecer as vidas das personagens (reais) que, supostamente, servem de motor à narrativa. Eu li todo o material biográfico relevante disponível sobre Aleister Crowley (assim como o disponível sobre Fernando Pessoa) e não encontrei uma única linha que pudesse corroborar as supracitadas afirmações da escritora espanhola.
Na verdade, Crowley tentou criar uma seita (mais de inspiração literária que verdadeiramente religiosa) em Cefalù, na Sicília, mas não foi expulso por culpa de «rituais de canibalismo» nenhuns, nem sequer foi expulso por culpa da (esta, sim, verdadeira) morte acidental de um discípulo. Crowley foi expulso da Itália por Mussolini porque os fascistas acharam que Crowley estava a criar uma célula comunista à porta da casa deles. Aliás, quando Crowley publicou O Livro da Lei, este foi recebido pela maioria dos leitores como sendo um livro comunista e a aura de simpatizante do regime soviético não o abandonou durante esses anos. Terá até sido essa uma das razões pela qual ele se lembrou de enviar uma cópia d'O Livro da Lei a Hitler, quando este "ganhou" as eleições na Alemanha: para mostrar que não era comunista nenhum.
Mas é claro que dizer isto numa entrevista não é tão titilante como dizer-se que Crowley era satanista (no sentido mais vulgar da palavra) ou canibal. A verdade histórica raras vezes pode ser reduzida a soundbytes desse género.
Não li o livro Passageiros da Neblina, mas se este tipo de «esforço» e «investigação» é aquele que pautou a escrita dele, então dispenso, muito obrigado.
É que levo demasiado a sério o ofício da escrita - e a investigação séria e rigorosa que está por trás desse labor - para, sequer, achar piada a este tipo de "intervenções".