segunda-feira, 24 de maio de 2010

A falácia do ateísmo genocida


Descobri que no passado dia 20 de Maio, no Salão de Alunos da Faculdade de Medicina do Porto, realizou-se um debate subordinado ao tema Religião e Ateísmo. Como se percebe, mediante a leitura do cartaz anunciador do evento moderado pelo jornalista Carlos Magno, os participantes foram o Dr. Ludwig Krippahl, vice-presidente da Associação Ateísta Portuguesa, e o padre católico José Nuno. Este, ao que parece, disse durante o debate que «os maiores genocídios do século XX foram perpetrados por ideólogos ateístas: nazis e comunistas». Trata-se, como é evidente, de uma afirmação errada.

Em primeiro lugar, dá a entender que os ateus são perversos e não partilham do mesmo sistema de valores dos crentes numa determinada religião (neste caso a católica). Aliás, de acordo com a declaração do padre José Nuno, tão péssimas qualidades morais têm os ateus que, vejam bem!, até foram responsáveis pelos «maiores genocídios do século XX». Ao contrário dos crentes, que (presume-se) são seres pacíficos, os ateus só pensam em eliminar os seus semelhantes - e isso é uma consequência de viverem sem Deus, está visto. Por aqui reverberam as palavras que o cardeal patriarca de Lisboa D. José Policarpo proferiu na homilia de Natal de 2007: «Todas as formas de ateísmo, todas as formas existenciais de negação ou esquecimento de Deus, continuam a ser o maior drama da humanidade». O que inflama esta visão dos assuntos humanos é a noção de que existem duas espécies diferentes de homens (os ateus e os crentes) e que apenas a segunda, por "conhecer Deus", possui verdadeiros valores morais, que são apanágio da religião.
Inversamente àquilo que a maioria dos indivíduos pensa, grande parte dos verdadeiros valores morais ocidentais não provém de nenhuma religião, mas são conceitos que poderíamos chamar de "leis naturais"; como a famosa regra de ouro que expressa "Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti". Os valores propostos pelas religiões são, pela sua própria natureza, sectários e intolerantes: consistem em proibições e prescrições punitivas que se encontram relacionadas com as suas culturas de origem e pouco, ou mesmo nada, têm a ver com o contexto actual em que são aplicadas. Só sobrevivem por força do simples proselitismo inquestionado, que os transmite de geração em geração, pois não enriquecem as vidas de ninguém, por oposição aos valores humanistas que, como todos sabem, são uma conquista da sociedade científica e ateia. Compreende-se que o propósito da declaração do padre José Nuno é angariar simpatia pela religião, denegrindo a imagem dos ateus ao chamar-lhes genocidas: não só é uma retórica de mau gosto, como é falhada porque nem sequer se suporta em nenhum facto, como iremos ver em seguida.

A palavra genocídio foi inventada pelo jurista polaco Raphaël Lemkin, que procurava uma definição para os crimes de guerra que os nazis empreenderam contra os judeus, antes e durante a Segunda Grande Guerra; ele também conhecia os crimes que o Império Otomano cometera contra os Arménios, durante e depois da Primeira Grande Guerra, e achava que ambos tinham características semelhantes. Para o efeito, criou o neologismo genocídio unindo a palavra genos (povo) ao sufixo latino cide que significa assassinato. Usou-o, pela primeira vez, no ensaio Axis Rule in Occupied Europe: Laws of Occupation, Analysis of Government, Proposals for Redress, publicado em 1944. No capítulo IX desse trabalho, Lemkin explica as suas escolhas da seguinte forma: «New conceptions require new terms. By "genocide" we mean the destruction of a nation or a ethnic group» (Lawbook Exchange, 2005. Pág. 79). As Nações Unidas adoptaram a nova palavra com a Convenção Para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, em 9 de Dezembro de 1948, estipulando que o crime de genocídio define-se como a «intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso» (em A Century of Genocide: Utopias of Race and Nation de Eric D. Weitz. Princeton University Press, 2003. Pág. 9).

O regime comunista soviético que vigorou sob a liderança dos aparelhos de estado de Lenine e Estaline foi genocida? Se aplicarmos a definição da Convenção Para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio então a resposta é "sim": os soviéticos empreenderam algumas acções de carácter genocida contra diversos grupos e etnias, como os tchetchenos, os tártaros, os coreanos e os ingush, não só perseguindo-os directamente, como criando condições de carestia de vida de modo a liquidar as suas populações. Todavia, a ausência de uma real ideologia racista dentro do Partido Comunista soviético (não havia nenhum ideal de "pureza" racial, já que os indivíduos definiam-se pela sua inclusão numa determinada classe económica), associada à crença na maleabilidade dos homens para se tornarem "bons comunistas" através do trabalho comunitário forçado, evitou o desenvolvimento de um aparato genocida à larga escala, como o do regime nazi. Os soviéticos não tiveram campos de extermínio, como o de Auschwitz, por exemplo, mas milhões de indivíduos morreram em consequência das purgas realizadas pela NKVD e das deportações para os campos de trabalho. Os principais alvos da revolução foram os kulaks (camponeses "ricos" que, de acordo com a propaganda leninista e estalinista, eram vampiros, sanguessugas, aranhas e insectos daninhos) e os lishentsy (uma categoria análoga à dos "anti-sociais" perseguidos pelos nazis e na qual se incluíam intelectuais, clérigos, oficiais czaristas, burgueses e antigos nobres). Qualquer oposição ao regime era suficiente para classificar um indivíduo nestas categorizações. Mas, se é verdade que esse regime soviético foi genocida, será legítimo dizer-se que foi ateísta?

Karl Marx escreveu que «Communism begins where atheism begins, but atheism is at the outset still far from being communism; indeed it is still for the most part an abstraction» ("A Contribution to the Critique of Hegel's Philosophy of Right" em Early Writings. Penguin Classics, 1992. Pág. 349). Outra observação fortalece a ideia de que comunismo e ateísmo são, para Marx, dois conceitos distintos: «Atheism is humanism mediated with itself through the annulment of religion, while communism is humanism mediated with itself through the annulment of private property» (Penguin Classics. Pág. 395). Em suma: na visão de Karl Marx, tanto o comunismo e o ateísmo são variações do humanismo, mas não consistem na mesma coisa.
De facto, o comunismo é anti-clerical, mas apenas porque não tolera que exista um poder maior acima do partido. Uma leitura possível, e em última análise credível, é a de que o comunismo, nos moldes em que foi edificado, enquanto "leninismo" e "estalinismo", se aproxima muitíssimo daquilo a que Jean-Jacques Rousseau definiu no seu Du Contrat Social: Ou Principes do Droit Politique (1762) como sendo uma «religião civil». No Capítulo 8 do Livro IV pode ler-se (sublinhado meu): «Now it is very important to the state that each citizen should have a religion which makes him love his duty, but the dogmas of that religion are of no interest neither to the state nor its members, except in so far as those dogmas concern morals and the duties which everyone who professes that religion is bound to perform towards others. (...) There is thus a profession of faith which is purely civil and of which it is the sovereign's function to determine the articles, not strictly as religious dogmas, but as expressions of social conscience, without which it is impossible to be either a good citizen or a loyal subject. (...) the sovereign can banish from the state anyone who does not believe them; banish him not for impiety but as a antisocial being, as one unable sincerely to love law and justice, or to sacrifice, if need be, his life to his duty» (Penguin Books, 1968. Págs. 185-186). O escritor de divulgação científica Sam Harris, apoiando-se nas leituras de Jonathan Glover (Humanity: A Moral History of the Twentieth Century, Yale University Press, 2001) e Alexander N. Yakovlev (A Century of Violence in Soviet Russia, Yale University Press, 2002) diz algo que vai ao encontro desta ideia: «Consider the millions of people who were killed by Stalin and Mao: although these tyrants paid lip service to rationality, communism was little more than a political religion» (em The End of Faith. W. W. Norton & Company, Inc., 2004. Pág. 79). O próprio Estaline, que estudou num seminário e acreditava que Cristo existira, surpreendeu o exército russo quando, nas vésperas da invasão alemã da União Soviética, apelou ao culto dos mortos para insuflar coragem nas fileiras, arrogando aos soldados para não envergonharem os gloriosos antepassados que os observavam - dificilmente o discurso que se espera de um líder ateu...

«We don't want to educate anyone in atheism.»
A declaração é de Adolf Hitler e foi proferida na noite de 11 de Julho de 1941 (em Hitler's Table Talk, 1941-1944. His Private Conversations. Editado por Hugh R. Trevor-Roper. Phoenix Press, 2002. Pág. 6). No mesmo ano, em 21 de Outubro, por altura do meio-dia, Hitler disse: «Nevertheless, the Galilean, who later was called the Christ, intended something quite different. He must be regarded as a popular leader who took up His position against jewry. (...) For the Galilean's object was to liberate His country from jewish oppression. He set Himself against Jewish capitalism, and that's why the Jews liquidated Him» (ibidem, pág. 76). Anos mais tarde, na noite de 29 de Novembro de 1944, Hitler continuará a pensar da mesma maneira: «Jesus was most certainly not a Jew» (ibidem, pág, 721). Quanto à religião pagã, Hitler disse o seguinte, ao meio-dia de 14 de Outubro de 1941: «It seems to me that nothing would be more foolish than to re-establish the worship of Wotan. Our old mythology had ceased to be viable when Christianity implanted itself» (ibidem, pág. 61).
Por outro lado, apesar de crente em Deus e anti-ateísta, o líder nazi não nutria nenhuma simpatia pela religião organizada. Desconfiava da Igreja Católica Apostólica Romana, enquanto instituição, e declarou diversas vezes que aguardava o momento da sua dissolução. Na tarde de 11 de Novembro de 1941, disse: «The Church's friendship costs too dear. In case of sucess, I can hear myself being told that it's thanks to her. I'd rather she had nothing to do with it, and that I shouldn't be presented with the bill!» (ibidem, pág. 122). Mesmo assim, na mesma conversa, ele declarou que «Russian prayers had less weight than ours» (ibidem, pág. 123).
Não é fácil categorizar o pensamento religioso de Adolf Hitler, porque ele foi um mitómano que mudava de atitude consoante quem estivesse junto dele. Sabe-se que no dia 12 de Abril de 1945, Goebbels resgatou entusiasmado as cartas astrológicas do Führer e da República de Weimar, pois acreditou que continham a "profecia" da morte de Roosevelt, que falecera nesse dia, e a conseguinte vitória da Alemanha em Agosto desse ano (em Hitler: A Study in Tiranny de Alan Bullock. Penguin Books, 1962. Pág. 781), o que não deixa de ser bizarro, porque a 12 de Junho de 1941 mandara prender todos «os astrólogos, magnetopatas, antroposofistas e afins», sublinhando no seu diário, de maneira jocosa, que nenhum dos videntes foi capaz de prever a captura. Sem dúvida que Hess e Himmler foram os líderes nazis responsáveis pela imagem pública, explorada em diversos filmes e livros de entretenimento, de que os nazis foram obcecados pelo ocultismo, mas o próprio Hitler tinha ideias pouco claras sobre esses assuntos. Ao almoço, em 19 de Julho de 1942, ele disse que «Superstition, I think, is a factor one must take into consideration when assessing human conduct, even though one may rise superior to it oneself and laugh at it. It was for this reason, to give you a concrete example, that I once advised the Duce not to initiate a certain action on the thirteenth of the month. (...) The horoscope, in which the Anglo-Saxon in particular have great faith, is another swindle whose significance must not be under-estimated» (Phoenix Press, 2002. Págs. 582-583).
O sentimento religioso de Hitler também se encontra expresso nesta passagem de Mein Kampf, citada por Bullock: «The war of 1914 was certainly not forced on the masses; it was even desired by the whole people. For me these hours came as a deliverance from the distress that had weighed upon me during the days of my youth. I am not ashamed to acknowledge today that I was carried away by the enthusiasm of the moment and that I sank down upon my knees and thanked Heaven out of the fulness of my heart for the favour of having been permited to live in such a time» (Penguin Books, 1962. Pág. 50). A concordata entre a Alemanha nazi e o Vaticano foi assinada a 20 de Julho de 1933. Sete séculos antes, a 19 de Abril de 1215, o Quarto Concílio de Latrão decidiu que os judeus deveriam envergar uma marca amarela distintiva: uma estrela judaica, de seis pontas. Como disse o historiador Raul Hilberg no documentário Shoah de Claude Lanzman (1985), «Many such measures had been worked out over the course of more than a thousand years by authorities of the Church and by secular goverments that followed in that footsteps. From the earliest days... Because from the 4th century, 5th century, 6th century... the missionaries of christianity had said, in effect, to the Jews, "You may not live among us as Jews". The secular rulers who followed them, from the late Middle Ages, had then decided "You may not live among us". The nazis finally decreed "You may not live"».