Foto da professora Bruna Real (identificada na peça integrante na edição de Maio da revista portuguesa Playboy como Xana Ferreira), com 27 anos de idade.
Foi em 1922 que o jornalista norte-americano Walter Lippmann usou uma palavra que, até então, era coutada exclusiva dos historiadores de arte para designar aquilo que ele considerava ser um modo de pensar muito especial, relacionado com o preconceito: estereótipo.
Em artes gráficas, um estereótipo é a chapa matriz que serve para imprimir diversas cópias de um documento. No livro Public Opinion, Lippmann escreveu que «(...)modern life is hurried and multifarious (...) There is neither time nor opportunity for intimate acquaintance. We notice a trait that marks a well known type, and fill in the rest of the picture by means of the stereotypes we carry about in our heads» (Dover, 2004. Pág. 49).
Mais extraordinário que já se pensar que a vida era apressada e complicada em 1922 é constatar a intuição de que existem várias personalidades típicas e que toda a gente pode ser catalogada a priori dessa forma. Entre os exemplos que Lippmann oferece no seu livro encontramos o estereótipo do Agitador, do Plutocrata, do Intelectual e do Sul Americano. Consistem em generalizações simples para serem aplicadas aos indivíduos pertencentes a qualquer grupo ou associação. «The stereotype not only saves time in a busy life and is a defense of our position in society, but tends to preserve us from all the bewildering effects of trying to see the world steadily and see it whole» (Dover, 2004. Pág. 63). A analogia entre a chapa matriz usada para imprimir milhares de cópias de um jornal e as multiplicidades de indivíduos que podem ser catalogados de acordo com os mais variados estereótipos inventados pelos sociólogos, psicólogos ou homens comuns é evidente, mas será que, tal como Lippmann acreditava, o estereótipo é uma ferramenta útil para compreendermos comportamentos?
Outro livro, mais recente, que discorre com discernimento sobre o fenómeno dos estereótipos é Us and Them: Understanding Your Tribal Mind de David Berreby (Hutchinson, 2006). Entre vários argumentos expostos neste título sobre comportamentos de grupo, Berreby avança com a ideia de que os estereótipos não se relacionam de modo directo nem com os estereotipados nem com os estereotipadores, mas com as diferentes relações que existem entre eles. Essa será uma das razões pelas quais as pessoas, muitas vezes, continuam a achar que determinado estereótipo é verdadeiro: porque mesmo que percebam que um estereotipado, em especial, não se encaixa no perfil imaginado, a relação que mantém com ele não mudou. «Once you see that stereotypes depend on perceived relationships among different human kinds, the question of how objectively accurate they are disappears. We think the human-kind code is based on facts about people. Instead, it's based on facts about how we relate to those people at the moment we categorize them - what we want, or expect, or fear from them. Mental codes interpret human kinds as if they were things that have dimensions and persist through time. But the information that makes the codes work is not about things. It's about actions - what we're doing and planning to do as they relate to waht other people are doing. (...) To this day, most public thinking about human kinds and human-kind emotions focuses on the stereotyper and the stereotypee, ignoring the third, defining variable: the relation that makes them see one another in the first place» (Hutchinson, 2006. Pág. 166).
Com base na informação disponível sobre o caso, toda a gente pode comprovar, no minimo suspeitar, que a professora Bruna Real, que leccionava a disciplina de Actividades Extra Curriculares no liceu de Mirandela até ser afastada do cargo por descobrir-se que posara nua para a edição de Maio da revista Playboy, teve azar em encaixar-se num estereótipo conhecido: aquele que diz que as mulheres sexualmente atraentes não são mulheres de grande probidade. Aparentemente, uma professora sexualmente atraente, e que ainda por cima aparece nua nas páginas de uma revista para homens (logo, um corpo de desejo que pode - ou não - servir de combustível fantasista para a masturbação) não corresponde à chapa matriz das mulheres inteligentes, honradas e capazes de dar aulas com diligência.
Isto lembrou-me, de imediato, a actriz austríaca Hedy Lamarr (1914-2000): a primeira a aparecer totalmente nua num filme mainstream (não-pornográfico). O filme, realizado por Gustav Machatý, chama-se Extase e foi estreado em 1933. Da noite para o dia, Lamarr passou a ser sinónimo de sexualidade luxuriante; a imagem ideal de uma mulher despudorada. Um estereótipo que nunca iríamos associar a alguém de grande inteligência, mas é aqui que as chapas matrizes descombinam: com um talento inato para a matemática e para a engenharia, Lamarr foi uma das mulheres mais inteligentes do mundo. Na verdade, já é mítico o episódio em que ela, durante um cocktail, usou um guardanapo para traçar o diagrama para aquilo que viria a ser o sistema FHSS (ou frequency-hopping spread spectrum) usado pelo exército norte-americano e que ainda hoje é empregue nas transmissões de rotina de uma grande diversidade de aparelhos electrónicos.
Talvez, num futuro próximo, venhamos a saber que a professora Bruna é tão ou mais inteligente que a Hedy Lamarr e que a escola e a câmara de Mirandela erraram em afastar uma pessoa desse calibre.
Retórica à parte, duvido que isso aconteça, mas o QI de Bruna (ou de Lamarr) não interessa: o que interessa é compreender que as pessoas são fins em si mesmas e, por conseguinte, não se encaixam nos estereótipos que imaginamos. Principalmente, quando a capacidade de imaginar não é muita.
Bem vistas as coisas, a Bruna não foi afastada por mostrar a sua nudez na Playboy. Qualquer aluno de Mirandela com acesso à Internet ou com TV Cabo já viu cenas de maior conteúdo pornográfico que a sessão fotográfica que originou esta patética polémica. Pese o estereótipo de que as mulheres sexualmente atraentes não são mulheres de grande probidade, ela também não foi afastada por causa desse preconceito. Eu acho que ela foi afastada porque cometeu um grande pecado: mostrar que é possível quebrar as regras.
Uma professora que se despe numa revista erótica é uma criatura exótica: tanto quanto um estrumpfe amarelo. Não se encaixa num modelo uniforme de sociedade, sob o qual as pessoas, desde a mais pequena idade, aprendem quais são as regras e a respeitá-las. A última coisa que os reguladores de uma sociedade deste género querem é que apareça alguém para quem as regras não se aplicam. Ou pior: que mostre aos restantes que, se calhar, as regras também não se aplicam a eles!... Que as tais regras são, em última análise, uma convenção e que é sempre possível mudá-las para melhor. O afastamento de Bruna Real das funções de docente é mais um caso de luta de classes entre a casta dominante e o elemento inferior desconforme que um imbróglio moralista sobre sexo.
Em artes gráficas, um estereótipo é a chapa matriz que serve para imprimir diversas cópias de um documento. No livro Public Opinion, Lippmann escreveu que «(...)modern life is hurried and multifarious (...) There is neither time nor opportunity for intimate acquaintance. We notice a trait that marks a well known type, and fill in the rest of the picture by means of the stereotypes we carry about in our heads» (Dover, 2004. Pág. 49).
Mais extraordinário que já se pensar que a vida era apressada e complicada em 1922 é constatar a intuição de que existem várias personalidades típicas e que toda a gente pode ser catalogada a priori dessa forma. Entre os exemplos que Lippmann oferece no seu livro encontramos o estereótipo do Agitador, do Plutocrata, do Intelectual e do Sul Americano. Consistem em generalizações simples para serem aplicadas aos indivíduos pertencentes a qualquer grupo ou associação. «The stereotype not only saves time in a busy life and is a defense of our position in society, but tends to preserve us from all the bewildering effects of trying to see the world steadily and see it whole» (Dover, 2004. Pág. 63). A analogia entre a chapa matriz usada para imprimir milhares de cópias de um jornal e as multiplicidades de indivíduos que podem ser catalogados de acordo com os mais variados estereótipos inventados pelos sociólogos, psicólogos ou homens comuns é evidente, mas será que, tal como Lippmann acreditava, o estereótipo é uma ferramenta útil para compreendermos comportamentos?
Outro livro, mais recente, que discorre com discernimento sobre o fenómeno dos estereótipos é Us and Them: Understanding Your Tribal Mind de David Berreby (Hutchinson, 2006). Entre vários argumentos expostos neste título sobre comportamentos de grupo, Berreby avança com a ideia de que os estereótipos não se relacionam de modo directo nem com os estereotipados nem com os estereotipadores, mas com as diferentes relações que existem entre eles. Essa será uma das razões pelas quais as pessoas, muitas vezes, continuam a achar que determinado estereótipo é verdadeiro: porque mesmo que percebam que um estereotipado, em especial, não se encaixa no perfil imaginado, a relação que mantém com ele não mudou. «Once you see that stereotypes depend on perceived relationships among different human kinds, the question of how objectively accurate they are disappears. We think the human-kind code is based on facts about people. Instead, it's based on facts about how we relate to those people at the moment we categorize them - what we want, or expect, or fear from them. Mental codes interpret human kinds as if they were things that have dimensions and persist through time. But the information that makes the codes work is not about things. It's about actions - what we're doing and planning to do as they relate to waht other people are doing. (...) To this day, most public thinking about human kinds and human-kind emotions focuses on the stereotyper and the stereotypee, ignoring the third, defining variable: the relation that makes them see one another in the first place» (Hutchinson, 2006. Pág. 166).
Com base na informação disponível sobre o caso, toda a gente pode comprovar, no minimo suspeitar, que a professora Bruna Real, que leccionava a disciplina de Actividades Extra Curriculares no liceu de Mirandela até ser afastada do cargo por descobrir-se que posara nua para a edição de Maio da revista Playboy, teve azar em encaixar-se num estereótipo conhecido: aquele que diz que as mulheres sexualmente atraentes não são mulheres de grande probidade. Aparentemente, uma professora sexualmente atraente, e que ainda por cima aparece nua nas páginas de uma revista para homens (logo, um corpo de desejo que pode - ou não - servir de combustível fantasista para a masturbação) não corresponde à chapa matriz das mulheres inteligentes, honradas e capazes de dar aulas com diligência.
Cena do filme Extase de Gustav Machatý (1933), que tornou a actriz Hedy Lamarr famosa por ser uma das primeiras a apresentar-se totalmente nua num filme mainstream e a primeira a simular um orgasmo numa pioneira cena de sexo. Ela tinha 28 anos de idade.
Isto lembrou-me, de imediato, a actriz austríaca Hedy Lamarr (1914-2000): a primeira a aparecer totalmente nua num filme mainstream (não-pornográfico). O filme, realizado por Gustav Machatý, chama-se Extase e foi estreado em 1933. Da noite para o dia, Lamarr passou a ser sinónimo de sexualidade luxuriante; a imagem ideal de uma mulher despudorada. Um estereótipo que nunca iríamos associar a alguém de grande inteligência, mas é aqui que as chapas matrizes descombinam: com um talento inato para a matemática e para a engenharia, Lamarr foi uma das mulheres mais inteligentes do mundo. Na verdade, já é mítico o episódio em que ela, durante um cocktail, usou um guardanapo para traçar o diagrama para aquilo que viria a ser o sistema FHSS (ou frequency-hopping spread spectrum) usado pelo exército norte-americano e que ainda hoje é empregue nas transmissões de rotina de uma grande diversidade de aparelhos electrónicos.
Talvez, num futuro próximo, venhamos a saber que a professora Bruna é tão ou mais inteligente que a Hedy Lamarr e que a escola e a câmara de Mirandela erraram em afastar uma pessoa desse calibre.
Retórica à parte, duvido que isso aconteça, mas o QI de Bruna (ou de Lamarr) não interessa: o que interessa é compreender que as pessoas são fins em si mesmas e, por conseguinte, não se encaixam nos estereótipos que imaginamos. Principalmente, quando a capacidade de imaginar não é muita.
Bem vistas as coisas, a Bruna não foi afastada por mostrar a sua nudez na Playboy. Qualquer aluno de Mirandela com acesso à Internet ou com TV Cabo já viu cenas de maior conteúdo pornográfico que a sessão fotográfica que originou esta patética polémica. Pese o estereótipo de que as mulheres sexualmente atraentes não são mulheres de grande probidade, ela também não foi afastada por causa desse preconceito. Eu acho que ela foi afastada porque cometeu um grande pecado: mostrar que é possível quebrar as regras.
Uma professora que se despe numa revista erótica é uma criatura exótica: tanto quanto um estrumpfe amarelo. Não se encaixa num modelo uniforme de sociedade, sob o qual as pessoas, desde a mais pequena idade, aprendem quais são as regras e a respeitá-las. A última coisa que os reguladores de uma sociedade deste género querem é que apareça alguém para quem as regras não se aplicam. Ou pior: que mostre aos restantes que, se calhar, as regras também não se aplicam a eles!... Que as tais regras são, em última análise, uma convenção e que é sempre possível mudá-las para melhor. O afastamento de Bruna Real das funções de docente é mais um caso de luta de classes entre a casta dominante e o elemento inferior desconforme que um imbróglio moralista sobre sexo.