quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Novo livro de contos de horror


«Quando a luz dos faróis dos automóveis incidia na fachada do hospital criava a ilusão de que as janelas eram olhos que piscavam aos condutores; como se a casa dos doentes fosse uma prostituta que procurasse clientes, à beira da estrada. Elevando-se pela encosta, a estrada encaracolava até ao cume, antes de endereçar-se até à vila mais próxima, entornando-se como enol entre os edifícios. Em andamento, atravessava um apoucado arvoredo que sulcava um septo entre o desusado sepulcrário e o aquartelamento abandonado: no Verão era vulgar ver joggers a correr entre ambas as ruínas, quais formigas farejando feromonas.
O sistema imunológico do hospital defendia-o das doenças dos acamados e apenas a ferrugem, que brotava nas articulações antigas, consumia-o em acerbas dentadas; às vezes com violência, mormente quando o metabolismo de madeira e betão agia como um antídoto contra a moléstia que feria o ferro. Caibros tortos, rombos pelo peso, suportavam as camas e as salas de intervenção cirúrgica. Os elevadores tossiam gotas de óleo tão espessas como banha. Na morgue, cujo cheiro dos cadáveres nos gavetões refrigerados fazia lembrar o do taboulé, a tinta descascava-se das paredes em pétalas sarapintadas de humidade. No telhado, um ninho abandonado de cegonha sacrificava raminhos ao vento – ex-votos secos.
Deitado, Fortunato olhou para o saco de soro que comunicava com ele através de um cateter. Abanou o braço e a bolsa balouçou, como um cacho de pérolas, iluminada pela luz dos faróis que era empurrada pelas frestas das persianas e fazia feridas douradas na parede à sua frente. Estava sozinho num quarto com seis camas, oculto por uma cortina que não o deixava ver a porta. Mas por mais eficaz que aquele biombo fosse, não seria impermeável à morte e Fortunato sabia que ela estava a caminho. Talvez já estivesse escondida, à espera do momento certo para romper a cortina e mostrar-lhe o sorriso escaveirado que iria sugar-lhe a vida. Ou talvez a morte estivesse dentro dele, aninhada na concha escura que era a sua mente, envenenando-o com pesadelos. O homem virou a cabeça para o outro lado da cama e esticou o braço para agarrar um copo de água. Passou a vista pelas sombras: não sabia onde a morte estava, mas sabia que não tardava.
Por acidente, observou o seu reflexo no espelho que tinha na mesa-de-cabeceira e não se reconheceu. Não tinha dado conta que o horror se apoderara dele: as pupilas eram poças baças e os olhos pareciam escoar para dentro da cabeça. Os pulsos tremiam-lhe, criando cordilheiras de suor no lençol; ouviu o tubo do soro bater repetidas vezes no suporte de aço inoxidável, como se fosse um código do Inferno. Há quantas horas estaria assim? Desde aquela noite em África, de certeza, mas só o compreendeu naquele momento: a doença, como ácido precipitado sobre uma placa de cobre, derretera o supérfluo – a esperança – e depurado o essencial – o desespero –, criando-lhe uma tremenda máscara de medo na cara.
Pensou em estrelas e em fagulhas cuspidas de uma fogueira, nadando no éter como girinos incendiados. Ouviu latidos guturais que soavam como se tivessem sido ladrados por lobos, mas que saíram das gargantas de crianças. A Lua estava vermelha e inchada, como um planeta cheio de sangue. Morria de calor. Agarrou um gafanhoto que lhe subia pelo pescoço e espremeu-lhe as tripas. Olhou para a palma da mão. Estava limpa. O quarto pareceu-lhe mais pequeno. Só existia a sua cama. A cama e a janela. Uma silhueta infame floresceu nas feridas luminosas na parede.
Ele vem a caminho, pensou, rangendo os dentes. Vem mesmo.
E a certeza foi seguida por uma dúvida: se ele vem, será que eles também vêm?»

O texto reproduzido acima é um excerto do novo livro de contos de horror que irei lançar, pela Saída de Emergência, em exclusivo no próximo Fórum Fantástico.

Mais novidades em breve.

(Imagem: Têtes de Suppliciês, Théodore Géricault.)