Há quatro anos, noutro dia vinte e cinco, mas de Maio, durante a visita que efectuou a uma paróquia de imigrantes no Norte de Roma, o Papa Bento XVI estendeu os braços ao alto, como um prestidigitador, mostrando aos religiosos receosos que não tinha nada escondido nas mangas, e revelou-lhes um segredo sinistro: «O Inferno existe – e é eterno!»
Essa declaração consistiu numa constatação mais audaz que aquela que ele redigira no livro Introduzione al Cristianesimo, publicado trinta e nove anos antes, no qual descreveu, de forma elíptica, o Inferno como sendo «a solidão que o amor é impotente para alcançar». Dirigindo-se à grei filipina imigrada na capital italiana, Joseph Ratzinger, o ex-terceiro prefeito da Sacra Congregação para a Doutrina da Fé, que já se chamara Sacra Congregação do Santo Ofício, que, por sua vez, já fora a velha Santa Inquisição, a mais antiga das nove congregações da cúria romana e órgão responsável por roubar, torturar e matar milhões de indivíduos, acrescentou com parcimónia que «só o amor infinito de Deus nos liberta do pecado, que é a raiz de todo o mal.» Desdobrando os dedos em preces precipitadas, os tontos tagalos, baptizados com o nome de um rei castelhano que tanto medo tinha da morte que todos os fins-de-semana treinava o derradeiro sono naquele que viria a ser o seu caixão no mausoléu do Escorial, cochicharam entre si na língua-mãe e interrogaram os seus corações; quebraram-nos, tal como os miúdos partem porquinhos-mealheiros, mas para encontrar tostões de pecado que pudessem trocar rapidamente por quantias mais elevadas de indulgências.
Estas são as franjas da fé no início deste ainda infante século XXI: usura mascarada de urgência; crendice mascarada de cânone; pignoratícia proveitosa mascarada de misericórdia. Nada de novo debaixo do Sol: continuamos a pagar com os nossos erros a entrada nos exclusivos grémios dos eternos. De preferência, para o andar de cima.
Porém, de que tipo de erros estamos a falar?
Não de supostos erros de perspectiva, como aqueles que se podem ver no quadro Maisons à L’Estaque, pintado pelo artista francês George Braque, que inspirou o crítico de arte Louis Vauxcelles a inventar o nome depreciativo cubismo. Afinal de contas, a apocalíptica Jerusalém Celeste, a proverbial e luminosa antítese do Inferno, é cúbica – tal como a sua análoga Golgonooza, a cidade da Arte e da Imaginação, fundada pelo visionário inglês William Blake.
A identidade dos erros só pode ser etológica.
Um engano moral. Uma incorrecção religiosa…
Em síntese, um pecado – que, como disse Pantocrátor Ratzinger aos infelizes filipinos, é a raiz de todo o mal.
O que é um pecado?
A palavra pecado tem como étimo o nome latino peccatu, que denota «erro», mas também «delito» ou «falta». O verbo latino peccare ainda possui a curiosa designação de «falhar o alvo»; e, com efeito, quando os catacúmbicos cristãos ciciavam, cabisbaixos, para eles próprios, que tinham pecado, era esse o sentido com que queriam caracterizar a confissão: o de que tinham falhado em comportar-se de acordo com as suas rígidas regras religiosas.
No entanto, talvez por exagerada pantofobia, uma variante medieval portuguesa de verbalizar o vocábulo pecado foi esquecida: essa Palavra Perdida é mal-pecado. Foi uma infelicidade que, sacudida pela sucessão dos séculos, esta belíssima palavra composta tenha perdido o elemento de composição. Desagregado do hífen, como uma desavinda placa continental desbaratada da Pangeia para tornar-se uma minúscula peregrina no oceano do oblívio, o nome mal levou com ele a ressonância telúrica com que comunicava com o mundo inferior, pois uma das suas mais populares consubstanciações é o Inferno, do qual Satã é o enfiteuta.
Segundo as antigas cosmologias, o Inferno é a parte subtérrea do mundo e, para muitas culturas, a morada dos mortos; independentemente deles terem sido bem ou mal comportados em vida. Um bom exemplo dessa premissa é o sheol dos primitivos israelitas, uma concepção mais parecida com um vulgar abismo que com um Inferno ortodoxo e que apenas por contaminação com o virulento zoroastrismo se converteu na geena do Novo Testamento, um lugar horroroso de retribuição e de padecimento. Numa fantasmagoria profética, o vaticinador Isaías descreveu um proto-Inferno em que não há Diabo: «é o Senhor em força que vem de longe, a sua cólera é ardente como incêndio violento, os seus lábios respiram furor, a sua língua é um fogo abrasador (…)» No Museu da Arte Antiga de Lisboa podemos observar o quadro quinhentista O Inferno, pintado por um mestre português desconhecido, que oferece outro ponto de vista.
Nessa tela terrível, uma súcia de demonetes tortura os infelizes, de acordo com, lá está, os seus pecados. Um demónio espinhoso, que parece feminino, obriga um avaro a engolir ferventes cruzados manuelinos, enquanto um diabrete, parecido com um bode, constrange um guloso a tragar ininterruptos odres de vinho. Os luxuriosos e os fornicadores, enlaçados pelos braços e pelos pescoços, são sovados à forquilhada por um mafarrico marrom e ao centro, içado sobre uma fogueira, verdadeiro “Ponto G” destes perversos prazeres, encontra-se um colossal caldeirão onde cozem cinco clérigos cobiçosos. Enaltecido num trono altivo, um Satã emplumado, híbrido de careto transmontano e feiticeiro amazónico, regozija-se com o bom funcionamento do seu local de trabalho e, como um bom patrão, alenta os subalternos com tristes toques de trombeta.
Talvez seja falta de fantasia os artistas retratarem o Inferno colocando a tónica nos suplícios moralizantes, que espelham, de modo grotesco, os Sete Pecados Capitais, e, em especial, o fogo, elevadas labaredas que tudo e todos calcinam, mas apesar desses modi operandi existem visões mais heterogéneas.
Na Commedia do exilado florentino Dante Alighieri, que o edematoso Giovanni Boccaccio baptizou de Divina, o Inferno é um local intestino e concêntrico que alberga nove níveis circulares de sofrimento. No onfalo enregelado deste Inferno hierarquizado, que mima os famigerados modelos medievais, Satã encontra-se trincafiado no Cocito, o principal rio subterrâneo da mitologia clássica grega, aqui convertido num desmesurado lago de gelo: «Imperador do reino em dor tamanho / saía a meio peito ao gelo baço (…)» A interinação de Satanás nesse círculo reservado aos traidores é uma escolha autoral que os leitores do século XIV entendiam sem explicações, pois todos estavam familiarizados com a história da sua revolta contra Deus e da resultante expulsão do Empíreo.
Três séculos mais tarde, o poeta inglês John Milton versejou a versão mais vitoriosa dessa saída forçada, no poema em prosa Paradise Lost, publicado em 1667 – quem sabe se a intenção original não seria publicá-lo no ano de 1666, enquanto Londres era consumida pelo resplendor de um verdadeiro Inferno à superfície? Embora o anjo caído miltoniano, de cabelos encaracolados e carranca esparciata, não seja um titã tricéfalo, como o de Dante, nem o âmago infernal em que constrói o capitólio chamado Pandemónio, seja um poço de gelo, é esta obra que, pela primeira vez, apresenta o adjectivo satânico, com o significado de «relativo a Satanás», e descreve o Príncipe das Mentiras como sendo um rebelde romântico; referências que transpuseram esse tempo e permeiam a nossa cultura popular.
O nudista avant la lettre Billy Blake, que também gostava de vestir-se de mulher, de cavaquear com celestiais co-locutores angélicos durante horas a fio e cuja mente tanto perseguia imagens de trevas como de luz, igualou Satanás à opacidade: uma barreira fotófuga que, em conjunção com a condensação da matéria, representada por Adão, impedia os homens de ver a verdadeira natureza infinita do mundo. Uma observação atenta à representação ígnea que este puro tolo pintou do cósmico Ovo de Los, do qual, a partir do Caos, desabrocha o espaço tridimensional e ilusório em que todos estamos inseridos, revela que ele se assemelha muitíssimo aos diagramas ópticos de Isaac Newton. De acordo com o seu poema épico Milton, os olhos são opacos «como seixos negros numa baía revolvida».
Porque é que Satanás é igualado à opacidade?
Porque é que os nossos olhos não deixam passar a luz?
Será de propósito que sejam opacos, tal como os olhos inúteis do cego Milton, o Homero londrino, de cuja musa o bardo de Lambeth Road acreditava ser herdeiro? Mesmo assim, já o polímate persa Avicena, que, na viragem do século X para o XI, com apenas dezassete anos de idade, teve o olho de abrir uma clínica com a qual fez fama e fortuna, sabia que o centro dos olhos era formado por fluído glaciar!… São demasiadas cabeças a pensar da mesma forma. Tem que existir outra conexão entre estes conceitos, que não a evidente inspiração artística.
Qual fenómeno temperatural é responsável por gelar tanto o Inferno como a íris?
Que conformidade prófuga existe entre ele e estes capitães diabólicos, desterrados do tão cobiçado andar de cima do cosmos?
Poderá ser o tal conceito de pecado?
Nesse caso, qual deles?
Poderá ser o pecado da traição?
Uma insídia da mesma ordem que aquela que levou Deus a expulsar Lúcifer, o “portador da luz”, do orbe celestial? No limite, uma perfídia análoga à de Cristóvão de Moura, o “demónio do meio-dia”, que traiu os pretendentes portugueses ao trono, em benefício de Filipe II de Espanha, sepultado no mausoléu do Escorial? Um rei necrófilo por um cardeal caducado – um anjo caído em vez de um Deus entronizado?
A etimologia da palavra traidor é a latina traditore, que, surpreendentemente, não possuía a definição moderna de «aquele que é desleal», mas a de «aquele que ensina». Um traidor já foi considerado um professor – um mestre – e talvez essa interpretação, quase occipital, de tão recuada que se encontra, esteja na origem dos mitos sobre os desobedientes maldosos que roubaram o fogo aos deuses todo-poderosos para o mostrar aos homens – talvez tivesse sido esse o verdadeiro papel desempenhado pelos prometeicos portadores das luzes, condenados a terem os seus fígados devorados todos os dias ou a sofrerem as dentadas frias do gelo nos antros tenebrosos da Terra. Não é, pois, instintivo que numa sociedade impregnada pela ideia instituída da soberania de Deus os indivíduos inconformados considerem que a refutação mais natural seja adoptar, em alternativa, o seu antagonista, o Diabo? Ele, o epítome da desordem. Do mal.
Mas o que é o mal?
Todas as definições consensuais e imparciais são unânimes em explicá-lo como sendo o oposto do bem, tal como a morte é o oposto da vida e a escuridão é o oposto da luz, mas tudo isso é relativo, porque nós gostamos de pensar sobre as coisas em relações de contraposição.
A vida, por exemplo, não é um ingrediente mágico, polvilhado na matéria para fazê-la respirar: é, apenas, um nome cunhado para definir um processo complexo que se desenrola em contínuo nos sistemas orgânicos. Sim, estamos vivos, em oposição a estarmos mortos, mas a chamada centelha ou sopro de vida não é algo que esteja dentro de nós. Temos três milhões de biliões de células e cerca de 90% delas nem sequer são humanas: são microrganismos variados – bactérias, vírus e fungos. A maioria dos constituintes que nos tornam humanos nada tem de humano. De um ponto de vista científico, é mais correcto dizer que somos nós que estamos dentro da vida. Nascemos neste mundo, sem ter a certeza que existem outros, e, ao crescermos, modificamo-lo – o estudo dos organismos é, também, o das interacções que eles cumprem com o ambiente circundante: em suma, a biologia é, ao mesmo tempo que o estudo das leis naturais que regem os seres vivos, o estudo das suas ideias.
Talvez o mal seja apenas um comportamento ou um “desejo mau”, no clássico sentido peripatético. Ao contrário das necessidades, como as de abrigo, alimento e sexo, que, por acudirem à própria manutenção dos organismos, são sempre benignas, os desejos, por vezes supérfluos, podem ser maus. Este argumento aristotélico avança contra a abstinência, outro conceito clássico grego, porque se é mau desejar-se muito, então desejar-se pouco também é indesejável.
Na prática, sob uma observação superficial, o nosso mundo parece possuir bem e mal numa conformidade de percentagens de 50% para cada um, mas e se os números fossem diferentes? Quão difícil seria teorizar sobre o bem e o mal, se vivêssemos num mundo em que o primeiro existisse numa porção de 20%, em relação ao segundo? Ou 80%?... A romancista norte-americana Jane Jensen reflectiu sobre esta questão no livro Dante’s Equation, no qual um grupo de personagens descobre uma lei que regula as percentagens de bem e de mal nos diversos universos e, numa jornada inter-dimensional por diferentes sefiras num multiverso de estrutura cabalística, descobre que, afinal de contas, o nosso mundo, regulado por percentagens idênticas de bem e mal, é o mais equilibrado.
O mago inglês Aleister Crowley, baptizado pela imprensa com o epíteto de “homem mais diabólico do mundo”, embora longe de sê-lo, chegara a essa conclusão quando, ao criar o brilhante baralho de Tarot de Thoth, pintado pela lasciva e geriátrica Lady Frieda Harris, teve o discernimento perspicaz de substituir o arcano maior Justiça pelo arcano maior Ajustamento. O velho Crowley sabia, tal como os sufis sabiam, que o nosso mundo não é justo, mas é equilibrado. Então, pode ser que o mal seja apenas um desequilíbrio? Uma desproporção que pode ser ajustada? Na pintura harmoniosa e gélida, colorida com tons friíssimos, do arcano maior Ajustamento vê-se uma personagem austera que agarra uma espada e uma balança: os pratos desta estão em equilíbrio, mas basta um insignificante movimento para que um deles prolapse e rompa a euritmia existente. Esta é, também, uma conhecida concepção do mal: a Queda.
Na tradição da Ordem Hermética da Aurora Dourada, da qual Crowley fez parte, a Queda é equivalente à aquisição do “conhecimento de si”: a conquista da consciência, proporcionada pela tomada do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, que provoca a queda de Adão. Nas glosas gnósticas, a serpente que seduziu Eva e Adão a comerem o fruto proibido é laureada como sendo uma entidade resgatadora que decompôs o entorpecimento hipnótico em que o casal primitivo estava embebido. Todavia, nenhum deus, seja ele qual for, tolera competição vinda das suas próprias criações. A única coisa que nós, miseráveis marionetas de argila, devemos aos deuses que nos fizeram é vassalagem. Inferioridade. Os atrozes altíssimos pré-colombianos atiravam areia aos olhos dos homens que aprendiam a ver para lá do horizonte; as traiçoeiras divindades gregas cegaram Fineu, o rei de Salmidesso, na Trácia oriental, quando descobriram que ele era capaz de ver o futuro; Jeová castigou os obreiros da Torre de Babel, pela audácia de quererem alcançar o Céu, baralhando-lhe as línguas para que se desequilibrassem e caíssem dos toscos andaimes de madeira. E, no entanto… Nós continuamos a tentar!...
Tal como o cubista George Braque, na Primeira Guerra Mundial, caído na terra de ninguém, de cabeça fendida por um estilhaço de morteiro numa hora maldita, tentou levantar-se sem saber se iria voltar a pintar. Tal como William Blake, caído no leito de morte, tentando terminar deitado a série de pinturas para a edição ilustrada da Divina Commedia de Dante que pretendia publicar até ao final desse ano. Tal como o próprio Dante, uma das três fontes do Renascimento, proibido de regressar a Florença e atirado à cama pela malária, agarrando-se às memórias mais vívidas para não derrapar tão depressa para a morte. Tal como o cego John Milton, revolucionador da língua inglesa, delirando os últimos e incompreensíveis versos por culpa do colapso renal, caindo num negro abismo de esgotamento. Nós tentamos! Nós tentamos ficar de pé. E para isso precisamos de encontrar equilíbrio. De encontrar simetria.
Mas a simetria não é uma qualidade substancial à vida. As nossas moléculas elementares, como os aminoácidos dos quais são feitas as proteínas do nosso ADN, são assimétricas, e as espirais de ácido desoxirribonucleico não são verdadeiramente harmónicas, porque ambas giram para o lado direito. É espantoso como tantos blocos dissimétricos de construção conseguem compor criaturas simétricas, capazes de locomoção, pois é para isso que a simetria serve – se não fôssemos simétricos nunca conseguiríamos sair do mesmo sítio e giraríamos até à extinção num ridículo e orbicular bailado das rosas: «Cinzas! Cinzas! Todos nós caímos.» Sim, todos nós caímos… E, no entanto… Nós tentamos! Tentamos ficar de pé!… Porém, não somos perfeitos na nossa simetria: olhos e orelhas diferem de tamanho e horizontalidade nas mesmas cabeças; os homens têm sempre um testículo maior que o outro, assim como os seios femininos nunca são iguais. Abra-se o abdómen, puxe-se a pele que nem revestimento arruinado pelo desgaste, e descubra-se que o interior da máquina humana nada tem de proporcionado. Na verdade, a simetria perfeita é um sonho irrealizável na natureza, apenas conseguido em revistas e jornais através da manipulação digital de imagens. Nem sequer somos mentalmente simétricos: até aos três meses de idade, usamos, sem discriminação, os dois lados do corpo, mas, que nem átomos desesperados por irresolutas mudanças magnéticas entre os hemisférios do globo, continuamos a ser servos da nossa bipolaridade até estabelecermos qual dos lados do corpo é o nosso preferido, o que só acontece aos oito anos de idade. Não é surpresa nenhuma que assim seja: o oito é o número da harmonia, aquele que simboliza o entrecruzamento do Céu com a Terra; e é na conjunção desses dois círculos, no interior do novo espaço mandorliforme alcunhado de “bexiga de peixe”, que, segundo diversas disciplinas esotéricas, reside o conhecimento de si. O conhecimento simbolizado na queda bíblica da graça. Não é pecado nenhum, afinal de contas: é equilíbrio.
Desde as infinitesimais e incertas afinidades quânticas entre as vibrações das cordas constituintes da matéria e as partículas de maiores dimensões que por elas são formadas, passando pela criação de novos elementos químicos nas fornalhas fundentes que são os estômagos das estrelas, todas as forças físicas do universo procuram o equilíbrio à sua maneira. Este é que é o verdadeiro conflito entre o bem e o mal: os dois pratos na balança do andrógino Ajustamento do arcano maior imaginado por Crowley.
Os mais desatentos poderão ainda não ter percebido que se trata de uma tensão antiga, com cerca de catorze mil milhões de anos de idade, e que começou, instantaneamente, ao grito primevo de “partida”. As quatro forças físicas que regem todo o universo e arredores desentrançaram-se do ponto unidimensional, do cósmico Ovo de Los pintado por Blake, e estabeleceram, de imediato, uma harmonia entre elas, um equilíbrio. Bastava que um prato da balança tivesse ficado mais para cima, ou outro prato mais para baixo, e nada, nada, nada poderia, alguma vez, em que altura fosse, por mais que tentasse, encontrar um ritmo, um balanço, uma cadência, e a matéria nunca viria a existir, ficando o novíssimo universo vazio de conteúdos, a não ser ondas sem mensagens, sem sonhos. Cerca de 90% da matéria constituinte do universo é a chamada Matéria Escura e a força responsável pela sua contínua expansão é a Força Escura; nomes que mais parecem saídos de um filme da série de ficção científica Star Wars, e que remetem, logo, para a satânica opacidade blakeiana, mas que não deixam de ser verdadeiros por culpa disso. Como a rã da fábula de Esopo, invejosa do tamanho do boi que via todos os dias no prado, o universo continuará a inchar até as galáxias congelarem e a matéria se rasgar pelas costuras. Será uma catástrofe estupenda e o mais irónico é que catástrofe significa, literalmente, queda… «Cinzas! Cinzas! Todos nós caímos.» Sim, todos nós caímos… E, no entanto… Nós tentamos! Tentamos ficar de pé. Essa é, afinal de contas, a marca d’água da própria vida: todos somos apenas barro que se ergueu, que se pôs em pé.
Já fomos açúcares à solta no caldo primordial, antes de termos tido a ideia de nos transformarmos em células. Vimos que essa ideia era boa e, então, insatisfeitos, decidimos ver o que acontecia se nos juntássemos a outras células e o resultado que obtemos foi a vida pluricelular que nos deu o impulso necessário para emergir. Para ficar de pé! Esse é o conhecimento de si que a Ordem Hermética da Aurora Dourada faz equivaler à queda: é querer ir mais além das nossas limitações momentâneas, é ousar perguntar “e se?...” E se saíssemos da água para conquistar a terra? E se nos reproduzíssemos de maneira sexuada? E se usássemos uma pedra para afiar outra pedra? E se erguêssemos uma catedral? Ou pintássemos um quadro? Escrevêssemos um livro? Nunca se sabe o que se vai obter dessas interrogações assustadoras – e, nesse sentido, todas as nossas iniciativas mais importantes, aquelas que são capazes de perdurar no tempo e vencer a morte, são saltos no escuro, no abismo: puras quedas. Mas nós tentamos! Tentamos ficar de pé.
Este enérgico jogo de Sempre em Pé entre o bem e o mal, entre equilíbrio e desequilíbrio, está a destruir-nos, mas convém lembrarmo-nos de que não vivemos num mundo justo. Afinal de contas, o mal existe. Sofrimento, morte, desespero. Ódio, angústia, medo. O terror desce frio pela espinha, afiado como a lâmina de uma tesoura, e retalha-nos as entranhas. Ninguém deseja, verdadeiramente, o mal, a não ser que seja tolo ou louco, mas, se é assim, porque é que ele é tão conspícuo? Porque é que o mal é tão atraente?
Pode ser porque somos todos naturalmente maus? Pérfidos e sem redenção, desde a nascença, num cálculo quasi-calvinista?
Ou é o mundo que é mau e contamina-nos com a sua violência, como quem transmite uma gripe?
A verdade é que nós somos criaturas competitivas e agressivas – mais do isso, somos muitíssimo impacientes; uma inclinação perigosa ampliada pelos tempos frenéticos e descartáveis que vivemos, mas essas não são as razões reais pelas quais perpetramos o mal.
Não são.
A resposta é só uma – e muito mais simples.
Fazemos o mal, porque é fácil.
É mais fácil ser-se mau que bom, porque o bem é o estado exemplar da substância e alcançar a excelência, seja em que área for, dá trabalho. Ora, a lei com mais força do universo não é a da gravidade, mas a do menor esforço.
Se assim não fosse, as partículas, os planetas e as galáxias não seriam esféricas, arredondados ou espiraladas, que são as formas que exercem menos tensão em toda a superfície do seu volume, mas talvez piramidais, cúbicos ou octogonais, o que seria um desastre. Se assim não fosse, cair seria mais complicado que ficar de pé. Se assim não fosse, milhões de indivíduos não cairiam, espontaneamente, nas malhas das redes dos piores demagogos da História, dispostos a eliminar os seus semelhantes, como os espanhóis fizeram aos aztecas, os colonos norte-americanos fizeram aos índios, os turcos fizeram aos arménios, os alemães fizeram aos hereros e aos judeus e os sérvios fizeram aos bósnios.
Embora o ódio pela diferença seja um forte fundamento para os seres humanos se matarem uns aos outros, ele nem sempre é preciso para que o sangue verta. Um quarto de milhão de alemães foram esterilizados pelo regime nazi, entre 1935 e 1939, e setenta mil doentes foram assassinados entre 1940 e 1941; se um rapaz pertencente à juventude hitleriana tivesse o azar de ficar de cama por mais que alguns dias era levado de casa pela máquina do partido para ser eliminado. O general espanhol Francisco Franco, que proibiu o Carnaval, gostava de assinar as sentenças de morte dos revolucionários republicanos enquanto tomava o pequeno-almoço. Obrigava aqueles que ainda não iam morrer a construírem as próprias celas, como as da infame prisão de Carabanchel, em Madrid; quem não morria pelas balas, extenuava pela escravidão. O ditador Rafael Leónidas Trujillo, que era mulato, mas que tentava disfarçá-lo com maquilhagem e tinta capilar, era tão sanguinário que ficou conhecido como “Drácula” nas transmissões secretas dos serviços de espionagem norte-americanos: mais sádico que Sade, cosia as pálpebras dos presos políticos, inseria-lhes cabos eléctricos nas uretras e nos ânus, de maneira a criar arcos voltaicos de temperaturas elevadíssimas entre os orifícios, e foi o proverbial inventor do snuff movie, filmando películas em que crianças abduzidas eram obrigadas a terem contactos sexuais com animais e os homens arrancavam os seios das mulheres. Posteriormente, exibia esses filmes em luxuosas festas privadas, em que abundavam o champanhe e o caviar. «Cinzas! Cinzas! Todos nós caímos.» Sim, é verdade. E, no entanto, tentamos ficar de pé.
Um prisioneiro de um campo de concentração encontra uma beata entre o cascalho e, quando ninguém está a ver, encosta-se à parede para fumar, preenchendo os pulmões com a primeira coisa quente que ingere desde que para ali foi parar, e, olhando para cima, para o céu azul, finge que não está a poucos metros de distância dos fornos crematórios, mas que está na sua rua, na sua casa, com os seus livros, com os seus discos e em paz. À noite, alguém assobia uma canção popular numa prisão espanhola e o preso da cela do lado chora baixinho de alegria, por ter oportunidade de ouvir música antes de morrer fuzilado na manhã seguinte. Existe luz no fundo do poço. Existem flores entre as fezes e a lama, entre o sangue e os urros de aflição, porque, afinal de contas, ninguém deseja, verdadeiramente, o mal, a não ser que seja tolo ou louco. O mal não existe para nos regozijarmos com ele, ou para nos destruirmos uns aos outros, mas para ajudar-nos a criar equilíbrio num mundo desprovido de guião e que gira sem ninguém ao leme. É um prato da balança, que é preciso vigiar com atenção, mas não é a balança.
O mal, como pintou o holandês Hieronymus Bosch, entre 1490 e 1510, na terceira tela do tríptico O Jardim das Delícias Terrenas, são sete lebreiros escanzelados que devoram as tripas do dono, equilibrados sobre a lâmina afiada de um cutelo.
É um homem que defeca moedas de ouro para a mesma fossa em que outro vomita.
É um degolado vendado, ainda com a espada atravessada no pescoço, sovado com um tabuleiro de gamão por um diabrete de semblante ornitoforme.
É fogo que queima, mas que também congela.
São instrumentos musicais que tocam as pessoas que deveriam tocá-los.
São maquinismos, de vários feitios, que controlam os indivíduos que deveriam controlá-los.
São multidões imensas que correm, sem rei-nem-roque, para nenhum lugar.
É toda uma mole de gente que se estorcega, esganiça, encolhe, mas que não comunica.
É medo. Muito medo.
Medo do outro.
Nesta estonteante exposição do Inferno, pintada há seis séculos, o nebuloso Bosch, que não viveu tempo suficiente para ver o início da reforma protestante, contra o pagamento católico das indulgências ratzingerianas, plasmou um cenário ameaçador que o crítico inglês de arte John Peter Berger disse ser «um retrato da globalização». Berger também disse que «nada na Natureza à nossa volta é mau.»
Nisso, estava errado.
O mal não está dentro de nós: nós é que estamos dentro do mal, tal como estamos dentro da vida. É uma das partes naturais mais relevantes e perigosas deste universo. E a razão pela qual é tão difícil de suprimir, de subjugar e de agrilhoar, é simples. Muito evidente.
Só o bem tenta fazê-lo. E o bem, por sê-lo, tem de jogar pelas regras.
O mal pode fazer batota.