Se, a título identificativo, ainda se pode observar diferenças entre as chamadas culturas erudita e popular, por vezes diferenças irreconciliáveis, talvez já não se possa dizer com igual certeza que a primeira se compõe sempre de obras de excelentes qualidades e valores estéticos, enquanto a segunda serve de válvula de escape a ambições e desejos inferiores. Com efeito, a dita cultura popular (no sentido de cultura de carácter provisório [ou descartável] para as massas e não no da aplicação descontextualizada de blocos de construção cultural) é cada vez mais mimética da cultura erudita (não no sentido de veículo de conhecimentos profundos, mas no de uma cultura cumulativa que se dirige a uma minoria sofisticada), em principal na colagem que faz à prática de referenciar os seus clássicos; e sob a nomenclatura de "popular", que vale o que vale, apresenta ao seu público, e não só, obras de qualidade inegável, feitas com sentido artístico e crítico. Existem exemplos em todas as áreas de criação - às vezes nos mais insuspeitos - e a hibridação entre "popular" e "erudito" não é novidade. Com as devidas distâncias, já os dadaístas se muniam do popular, do boçal, do refugo e do lixo para criar arte.
Na maioria das vezes, a literatura popular é considerada como sendo a dos géneros, mas essa visão é redutora, pois, por mais que os detractores da "literatura de género" advoguem que ela é lixo (como aquele que os dadaístas buscavam), determinadas obras conseguem prolongar o impacto da sua recepção e mostrar a sua pertinência, sendo até, aliquid latens, adoptadas (ou absorvidas) pelo cânone da "literatura erudita". É verdade que grande parte da literatura fantástica (de género, lá está) publicada no nosso tempo é lixo, mas a mesma conclusão tem uma medida que serve à maioria da literatura tout court: em suma, a qualidade de uma obra literária, seja ela qual for, encontra-se cada vez mais apartada da dicotomia de códigos, referências ou moldes que existe entre cultura erudita e popular e, felizmente, mais próxima - anexa - do talento dos autores.
Para o bem ou para o mal, hoje todos os modelos narrativos estão mais ou menos extenuados (alguns até já se extinguiram, o que não deixa de ser natural, pelas mais variadas razões - algumas de ordem social, outras comerciais): as epopeias, o fresco de época, as sagas de família, os manifestos, o rebelde registo intimista e até o automatismo autobiográfico feito com o registo do quotidiano mais elementar. Na literatura fantástica, por exemplo, assiste-se a uma desorientação que, por enquanto, ainda não é preocupante, mas que devia ser motivo de meditação de quem a trabalha.
O Fantástico (designação que não é consensual, mas que utilizo para englobar um conjunto de géneros ou modos heterogéneos de narrar, na falta de melhor nomenclatura) é, por excelência, um campo muito permeável e, por culpa disso, deixa-se contaminar por agentes que nada têm de fantástico. Quantas vezes não serve somente para dar uma pátina de exótico ou de insólito a algo que, escamoteada essa película, demonstra ser completamente banal? Quantas vezes não existe apenas a similitude de Fantástico, já translúcida por culpa da filtragem operada por inúmeros outros mimetismos? São, entre outras coisas, reflexos do imediatismo em que a literatura foi imergida. Mas, de maneira geral, será o imediatismo uma tendência ou uma moldura de referência?
Nessa óptica, não compreendo o fascínio provocado pelas chamadas micro-ficções, por exemplo. Não tenho nada contra elas, com toda a sinceridade, mas custa-me a ver a vantagem que "histórias" contadas em duas ou três frases possam trazer para a literatura. Dir-se-ia que sempre é melhor escrever duas ou três frases que não escrever nada, mas... Será o suficiente?
Acho que precisamos é de mais macro-ficções.
À semelhança dos grandes livros de Cervantes, Sterne, Joyce, Pynchon, Barth ou Gaddis.
Posso estar a ser injusto, mas, à excepção de Les Bienveillantes de Jonathan Littell, publicado em 2006, onde estão os grandes romances - em ideias e em tamanho - deste início de século? O mercado concorre para que sejam raros, porque vivemos num período hostil à reflexão e à leitura e, sendo assim, hesita-se em publicar e em escrever livros de grande envergadura que possam assustar os leitores; infelizmente cada vez mais habituados ao formato elíptico das narrativas sintéticas.
Nesse sentido, e para concluir esta breve reflexão que prometo enriquecer num texto de maiores dimensões, e com um pensamento mais estruturado, avanço com a ideia principal de que só as palavras podem "salvar" a literatura, erudita ou popular, da mediocridade.
Inversamente às ideias, as palavras, em abundância e em qualidade, em riqueza de sonoridades e formas, (ainda) não entraram em insolvência.