«Dentro da caixa aberta sobre a mesa do escritório, a pedra começou a intrigar Paula cada vez mais; deixando os envelopes com os postais de lado ela ligou-se à Internet e procurou “pedras com buraquinhos” com a ajuda do Google. Não encontrou nada que se relacionasse com a pedra que comprara. Coçou a cabeça e fez uma nova busca por “pedras com covinhas”. Passou os olhos pelos resultados (1 – 10 de cerca de 7.810 para pedras com covinhas – 0,17 segundos) e carregou num novo separador a primeira página que lhe era aconselhada: um site sobre monumentos megalíticos. Surpreendida, procurou no texto as palavras que usara para proceder à pesquisa e que a aplicação Google Toolbar pintara de amarelo. Leu: «Conhecem-se igualmente cerca de uma centena de pedras com covinhas, monumentos misteriosos certamente relacionados com o megalitismo; com efeito, as covinhas surgem, frequentemente, gravadas nos próprios monumentos megalíticos.» Confusa, regressou à página dos resultados da pesquisa e procurou outro site que a pudesse esclarecer. Escolheu um link pertencente ao Instituto Português de Arqueologia e carregou um documento em formato pdf sobre monumentos pré-históricos. Observou as fotografias a preto e branco de menires e pedras com covinhas: numa das páginas encontrou uma imagem de uma peça como aquela que tinha a seu lado. Riu. Seria possível que tivesse comprado um artefacto pré-histórico por cento e cinquenta euros?
Comparou as duas pedras: a sua era mais estreita e mais pequena; as covinhas, também chamadas de pocinhas, espalhavam-se pela superfície negra num padrão mais intrincado e com variadas ligações entre elas feitas por sulcos finos e grossos. Paula passou o dedo pelas pocinhas e arregalou os olhos. Nunca tinha tocado em nada tão antigo, mas sentiu algo semelhante àquilo que experimentara há anos quando pegara ao colo o sobrinho acabado de nascer.
Que iria fazer?
Conservaria a pedra ou entregá-la-ia ao instituto?
Retirou-a da caixa com cuidado e estudou-a. Teria mesmo pertencido a Aquilino? Como é que ele ficara na posse de uma coisa daquelas?
Pousou a pedra no colo e procurou o significado das pocinhas. Descobriu que tinham muitos nomes: pocinhas, covinhas, buraquinhos, pucarinhos, cantinhos, malguinhas. Suspeitava-se que tivessem algum sentido religioso, mas, até à data, permaneciam um mistério. Guardou a pedra na caixa com reverência e ficou a olhar para ela, meditando no destino a dar ao artefacto. Não chegou a conclusão nenhuma e voltou a sentar-se para consultar as contas nos fóruns.
(...)
Quando olhou para os pés da cama viu que a Raposa ainda lá estava e gemeu. Começou a sentir medo. A Raposa apercebeu-se da perturbação dela e disse:
‘Não precisas de ter medo, Paula. Eu digo-te o que quero.’
A mulher ergueu a cabeça e abraçou-se; começou a esfregar as mãos nos braços como se estivesse com frio.
‘Tu tens uma coisa que é minha’, continuou a Raposa. ‘Eu preciso dela.’
‘O que é que eu tenho?’, balbuciou. Sentia a boca seca. Sentia vontade de ir à casa-de-banho.
‘A pedra das pocinhas’, disse a Raposa. ‘A minha pedra das pocinhas.’
‘Mas…’
‘Vai buscá-la.’
Paula levantou-se devagar e saiu do quarto. Demorou uns instantes e regressou amedrontada com a caixa nas mãos.
‘Muito bem’, disse a Raposa, caminhando em duas patas ao encontro dela. Paula parou com medo e, gritando, deu um passo atrás. ‘Não tenhas medo. Põe a caixa no chão e abre-a.’
Ela obedeceu e retrocedeu temerosa para dar espaço à Raposa. A criatura debruçou-se sobre a caixa aberta e retirou a pedra das pocinhas. Deu uma gargalhada vulpina e abanou a cauda.
‘Obrigado.’ Piscou o olho a Paula e sorriu até às pontas das orelhas.
‘O que é isso?’, perguntou ela.
‘Isto?’ Mostrou-lhe a pedra e agarrou-a debaixo do braço. ‘É uma cópia muito, muito antiga de uma coisa que me roubaram há muito, muito tempo.’ Fez uma pausa e concluiu: ‘É um mapa.’
‘Um m-mapa?...’ A curiosidade sobrepôs-se ao medo. ‘Um mapa de quê?’
‘De tudo aquilo que existe?...’, comentou a Raposa. Olhando embevecida para a pedra, respondeu: ‘De todos os mundos que existem.’
‘Todos… Todos os mundos?!...’
‘Todos, todos não!…’, disse a Raposa com ironia. ‘Alguns dos que aqui estão já não existem. Também faltam uns novos que, entretanto, eclodiram… Mas é um bom mapa.’
‘Isto…’ Paula sentou-se no chão e encostou-se à parede. Faltava-lhe o ar e sentia-se tonta. ‘Isto é demais para mim…’
‘Estas pocinhas, estás a vê-las?’
Aproximou-se indiferente à indisposição da mulher e mostrou-lhe a pedra; ela ficou chocada com o cheiro pungente da Raposa: cheirava como um animal verdadeiro.
‘São mundos. Universos… O que eu faço é usar este mapa para saltar de um mundo para outro mundo. Salto pocinhas!’
Paula lembrou-se do nome da raposa de O Romance da Raposa.
Salta-Pocinhas.
«E se te disser que… que a Salta-Pocinhas me vem visitar… hoje?»
O medo começou a abandoná-la.
«A raposa das tretas.»
‘Onde… Onde é que está este mundo?’, perguntou Paula à Salta-Pocinhas.
«O mundo é feito de “tretas”. De sonhos e de mistérios. Cada coisa tem dentro dela um conto de fadas.»
‘Este universo?’ A Raposa meteu-lhe a pedra debaixo do nariz. ‘Ora… É esta pocinha aqui.’ Apontou com um dedo para um buraco minúsculo que estava ligado por um sulco fininho a outro muito maior.
Paula olhou para a pedra e não pôde deixar de sorrir; um sorriso ainda assustadiço.
‘É um universo tão pequenino…’
‘Ah! Tão pequeno quanto o segundo que demora a tirar uma fotografia? Muito bem visto!’»