quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Entrevista com António de Macedo: 1ª Parte


Eis a primeira parte de uma entrevista exclusiva e extensiva que fiz ao cineasta e escritor António de Macedo. Uma conversa diferente, de autor para autor, de amigo para amigo, na qual se fala da obra cinematográfica, literária e ensaística de Macedo, além de muitos outros temas, de ordem histórica, esotérica e filosófica, sempre em jeito de puro desafio intelectual, pura descoberta, puro deleite. Meu e do António, obviamente, e, a partir de agora, também vosso. Desfrutem.


Entrevista com António de Macedo – 1ª Parte
 
David Soares – O António diz que o cinema deve servir para filmar aquilo que o olho não vê. Outro cineasta, também dedicado ao universo do Fantástico, o David Cronenberg, disse no início da carreira dele que queria filmar o infilmável…

António de Macedo – É curioso. Eu não conhecia essa frase do Cronenberg, mas, de facto, de certa maneira…

DS – A minha pergunta é a seguinte: eu acho que tanto uma intenção como a outra caminham no mesmo sentido…

AdM – Sim, senhor…

DS – …ou seja, filmar algo que não se vê todos os dias…

AdM – Algo que não é facilmente captável pelo quotidiano, exactamente.

DS – Filmar o infilmável e o invisível…

AdM – Exacto.

DS – É curioso, porque a abordagem de cada um é completamente diferente. O Cronenberg é um ateu confesso, não acredita no sobrenatural, não acredita em Deus nem na alma, e, pela obra do António, eu intuo que consigo passa-se o contrário. O António não é ateu…

AdM – Não, não sou ateu. Eu costumo dizer que sou um céptico místico. Ou seja… A minha crença não é uma crença cega, é uma crença crítica. Portanto, sou um céptico místico e por uma razão muito simples, até por simples ignorância… Ou seja, existe um certo número de coisas que a ciência vai descobrindo, a pouco e pouco, e isso é bem visível. Vai desvendando coisas que não eram desvendáveis e que, antes de não serem desvendáveis, eram consideradas como magia ou sobrenaturais, e que, a pouco e pouco, vão deixando de o ser. Mas nunca deixam de ser: isso é que é interessante. Há sempre um resíduo e é esse resíduo que me faz ser um místico, mas, por outro lado, sou um céptico, precisamente devido à minha formação científica, de arquitectura, de matemática… No tempo em que estudei arquitectura tive de estudar matemática a sério, como se dizia na altura, matemática superior… cálculo infinitesimal, matrizes, cálculo integral e diferencial… derivadas e integrais… menos, claro, as matemáticas que surgiram depois, a teoria do caos, por exemplo, que no meu tempo ainda não se dava. Portanto, tenho uma formação matemática e científica que, de certa maneira, me leva ao cepticismo, mas, por outro lado, reconheço que há um resíduo… Vai ficando sempre um resíduo… E é esse resíduo que, para mim, é o mistério. Portanto, não posso ser ateu, porque o ateu é um crente, isto é: acredita que Deus não existe. Eu não acredito que Deus não existe e também não acredito que Deus existe, porque, sendo posições de crença, para mim não significam nada. Isto é: ou consigo demonstrar ou não consigo. Se consigo demonstrar, perfeito, está demonstrado. Se não consigo demonstrar ou se a própria ciência, no estado a que chegou, não consegue demonstrar… ou, como querem os mais cépticos, “ainda” não consegue demonstrar… é porque estamos num terreno “de crença” que só compromete o próprio que por ele envereda ou que o adopta. Eu não discuto essa diferença subtil… Isso significa que continua a haver um resíduo. Até que ponto é que esse resíduo se vai estreitando, até eventualmente desaparecer um dia, é muito difícil de dizer. É como aquelas curvas matemáticas e geométricas representáveis em coordenadas cartesianas, as assimptotas, que se aproximam infinitamente uma da outra mas que nunca se chegam a tocar, porque há sempre um resíduo de intocabilidade. Portanto, é esse resíduo de intocabilidade que, para mim, é o mistério. É isso que o meu cinema, e não só, a minha literatura, os meus estudos e investigações, procuram penetrar… Nesse impenetrável interstício, nesse mistério. Daí eu dizer que não sou, exactamente, ateu… Acabo por não saber bem o que é que isso quer dizer, porque ser ateu é uma coisa definida. Pronto, uma pessoa diz “sou ateu”, que confortável… Eu não sou ateu nem “teu”, nem “desateu”.

DS – Mas também não é um céptico no sentido pirrónico?

AdM – Não, no sentido pirrónico, não.

DS – Não?

AdM - De maneira nenhuma. O céptico pirrónico é aquele que…

DS – Que é um relativista, que diz que não é possível saber nada.

AdM – Não, pode-se sempre e a prova disso é que a ciência vai progredindo. As assimptotas vão-se aproximando uma da outra. Mas nunca se tocam ou tocam-se no infinito, como se diz em linguagem matemática, mas o tocar-se no infinito, para nós, que sentido terá? Nós não vivemos infinitamente. Serão triliões de anos? Não sei… E é esse resíduo, esse misterioso resíduo intersticial, que eu acho que é fascinante explorar, seja em cinema, seja na literatura, seja nos ensaios.

DS – A minha pergunta ia nesse sentido: como é que tanto uma postura como a outra influi na criação dos universos invisíveis, nos universos fantásticos? Ou seja, o que é que têm essas posturas, de crente e não-crente, em relação à criação de um universo que é, por si próprio…

AdM – Incaptável…

DS – Sim. Ou fantástico ou maravilhoso…

AdM – Exactamente.

DS – Era nesse sentido, mas já percebi, pela resposta que deu, como é que isso se processa.

AdM – Como se processa em relação a mim. Em relação ao Cronenberg não sei. O tipo de abordagem que eu faço… Cá está, a zona de investigação quer dele, quer minha, será semelhante, as nossas abordagens é que serão diferentes, eventualmente. E a minha abordagem é sempre no sentido de deixar uma porta aberta para um certo optimismo, apesar de tudo.

DS – Então, o António, apesar de não ser um não-crente, ou de ser um céptico místico, não descura a ciência e daí, nas suas abordagens à ficção científica, ter uma base científica rigorosa..

AdM – Absolutamente. Até porque a ciência é fundamental e ainda bem que existe ciência que investiga e vai cada vez mais longe. Provavelmente, nunca chegará lá ao… Nunca chegará a Deus, suponho, seja lá o que isso queira dizer. Não sei, nem me preocupo… Mas isso é fundamental. Realmente, a própria natureza do ser humano é investigar e descobrir.

DS – Até que ponto é que os seus filmes, que têm um universo muito próprio, intenções muito pessoais… Eu considero o cinema do António como sendo cinema de autor, independentemente dos filmes, isoladamente, se poderem inscrever na ficção científica, no policial ou até no chamado “cinema novo”, mas… Até que ponto é que os críticos estão errados no seu preconceito contra a chamada ficção de género, quando assumem que, por ser ficção de género, as obras têm de seguir uma fórmula fixa, o que não é verdade…

AdM – Não é verdade.

DS – …porque pouquíssimos autores, autores com “A” grande, que trabalham naquilo que é suposto convencionar-se como sendo ficções de género, seguem fórmulas. Eles criam universos autorais, por mérito próprio.

AdM – Absolutamente. Estou perfeitamente de acordo.

DS – Como é que o António lidou com o facto de estar a construir um cinema autoral, com imagens próprias, que depois vai explorando nos seus filmes, e com a postura da nossa crítica que desdenha da chamada ficção de género? Como é que se consegue chegar a estas pessoas, como é que se consegue transmitir a mensagem?

AdM – Não se consegue. Não se consegue, até porque há um preconceito, da parte desses críticos, chamemos-lhe assim, que é um preconceito que os cega. Há uma cegueira, há uma incapacidade de ver, ou de querer ver… E não é, vamos lá a ver, não é fácil fazer chegar essa mensagem. Não é fácil… Provavelmente, nem será desejável, não sei… Em dado momento, ao principio, quando era cineasta jovem, isto é, no meu primeiro filme, o «Domingo à Tarde», no segundo, no terceiro…

DS – Que já contém alguns elementos que, na minha opinião, irão reverberar na sua obra mais à frente…

AdM – Absolutamente, absolutamente. O «Sete Balas Para Selma», que é um filme policial, “policiário”, como diria o Fernando Pessoa, já tem ficção científica lá pelo meio, também, pronto, há umas passagens… Mas eu ainda me preocupava com aquilo que os críticos diziam… E diziam sempre muito mal, curiosamente, por qualquer razão misteriosa, os críticos cinematográficos dessa época, na sua maioria, sempre me tiveram uma raiva muito grande. Eu suspeito que tenha a ver com isso, com o facto de eu nunca esconder o que penso e dizer sempre claramente o que eu achava… Por exemplo, da tal nouvelle vague, muito prezada pelos tais críticos, e que para mim era um movimento mais cosmético do que de conteúdos, que se servia duma estética muito interessante para escamotear um gigantesco vazio de ideias… embora os meus primeiros filmes, ao principio, se pudessem, de certa maneira… confundir-se com algumas propostas visuais da nouvelle vague, mas não era bem inserirem-se na nouvelle vague, era mais num outro tipo de “cinema novo”.

DS – Quanto muito, tinham uma personalidade “nouvelle vaguesca”, se calhar…

AdM – Vagamente… Era, vagamente, uma estética que existia naquela altura, mas contra a qual eu lutei e, apesar de tudo, procurei… Embora, em alguns dos filmes, como o «Domingo à Tarde», possa dar essa aparência… Mas não completamente, porque eu, recordo-me, até disse numa entrevista, já não me lembro onde… Por exemplo, o Elso Roque, director de fotografia do «Domingo à Tarde», teve grande parte da sua formação profissional na escola estilística do Raoul Coutard, de quem foi assistente, e o estilo do Coutard, um dos grande nomes da fotografia cinematográfica dessa época, que fotografou filmes do Truffaut, do Godard, do Jacques Demy… o estilo nouvelle vague do Coutard, dizia eu, era fazer uma fotografia em preto e branco com uns cinzentos luminosos, muito algodoada e delicodoce, ou de cores muito simples e muito suaves, e o meu cinema era do tipo germânico, como eu costumava dizer na altura… Era mais a tonalidade telúrica do Fritz Lang, do Murnau, do Wegener… ou as óperas do Wagner, que não era cineasta nem expressionista mas já trazia a semente… Eram os Nibelungos… Depois o Bergman, e também o Sjöström, aquele cinema… A «Carroça Fantasma»… Felizmente o Elso Roque compreendeu e aceitou muito bem a diferença e o «Domingo à Tarde» ficou como eu queria, mais germânico do que francês… Todo aquele universo nórdico ou germânico, lunar, embora eu reconhecesse que a minha, como é que eu hei de dizer?, a minha postura, até de pesquisa, era mais solar. Que é a tal história… Nós vivemos aqui numa zona que é solar e daí as dificuldades em haver um fantástico português, como há o fantástico germânico, o inglês, francês, o expressionismo e até o gótico. Em Portugal, o gótico pegou mal, tem pegado mal, embora eu próprio tenha feito coisas, os contos neo-góticos, por exemplo, mas, realmente, há essa diferença. Mas lidar com os críticos, era a pergunta…

DS – Não tanto com os críticos como com a crítica, em geral.

AdM – Esse tipo de pensamento, digamos assim, estava subjacente. Embora os meus primeiros filmes já prenunciassem um universo fantástico, evidentemente, eu, com a crítica, comecei a aprender, ao longo dos anos… Fiz cinema desde os anos sessenta, e até aos anos noventas e tais foram trinta e muitos anos a fazer cinema, portanto tive muitas críticas… Sempre filmei o que eu queria e não o que os críticos gostariam que eu filmasse, e isso irritava-os… Algumas críticas — poucas — até diziam bem, curiosamente, de vez em quando lá vinha uma… E eu comecei a perceber que havia um fenómeno que era interessante e que era o seguinte: às vezes o mesmo filme (e quem diz filme diz livro, diz uma peça, um objecto artístico qualquer) suscita críticas até bastante opostas. Como é que é possível o mesmo objecto suscitar reacções tão diferentes? E então veio-me à ideia uma coisa… Quando estava a estudar o curso de arquitectura, como nessa época já havia desemprego, como se diz agora… Já nos anos quarenta ou cinquenta, quando eu fiz o curso, havia desemprego e um jovem arquitecto acabado de se formar tinha muita dificuldade em arranjar emprego. Eu consegui arranjar emprego na Câmara [Municipal de Lisboa], mas era difícil, geralmente arranjava-se emprego como professor, e nesse tempo, em que o Salazar ainda estava vivinho da costa, ele obrigava a que, para se poder ser professor, tinha de se tirar um curso de Ciências Pedagógicas, chamava-se assim. Era um curso de dois anos, que era dado na Faculdade de Letras. E eu tirei esse curso. Portanto, em paralelo com o curso de arquitectura, fui para a Faculdade de Letras, frequentei lá aquilo… Não concluí, mas frequentei o curso. Não era uma licenciatura de quatro anos ou cinco, como eram as outras, era de dois anos e tínhamos de ter esse diploma para sermos professores. Além do diploma da especialidade, engenheiro, arquitecto, médico, não importa o quê… Letras, matemática… Tinha de ter o diploma do curso de ciências pedagógicas para exercer pedagogicamente a actividade, para se ser professor. E esse curso ensinou-me muita coisa porque tive professores excelentes, na Faculdade de Letras, como por exemplo o filósofo e investigador Delfim Santos, o Artur Moreira de Sá, professor de filosofia e de psicologia aplicada, o Edmundo Curvelo, professor de Lógica moderna… Era o mais avançado da lógica booleana e daquela lógica moderna que havia na altura… um dos grandes nomes do pensamento português… E outros professores, nomes que, depois, se tornaram conhecidos na ensaística… E uma das cadeiras que nós tínhamos chamava-se Psicotécnica, que ensinava a estudar as reacções psicológicas das pessoas, dos alunos, e isso ensinou-me muita coisa, curiosamente… Foi aí que aprendi o famoso Teste de Szondi, para se descobrir a verdadeira personalidade de uma pessoa. Esse Teste de Szondi é muito interessante: tira-se uma fotografia a uma pessoa, de frente; depois pega-se nessa fotografia e corta-se ao meio; depois pega-se na metade direita e duplica-se, invertendo-a, como num espelho, e forma-se uma cara inteira feita com as duas metades simétricas “direitas”. Em seguida repete-se o processo com a metade esquerda e obtém-se uma nova cara feita com as duas metades simétricas “esquerdas”. Obtêm-se assim duas fotografias da mesma cara completamente diferentes, e quando olhamos para elas… ficamos horrorizados porque vemos numa delas o Dr. Jekyll e na outra o Mr. Hyde! Todas as pessoas têm isso. Ficamos a ver o lado bom e o lado mau da pessoa. É horrível, horrivelmente fascinante… Nós ainda aprendemos uma série de coisas, além de outros testes… Um outro foi o famoso Teste de Rorschach, o das manchas de tinta… O Teste de Rorschach é fascinante e é composto por dez manchas… O que é estranho é que a gente mostra uma mancha de Rorschach a uma pessoa… “O que é que isto lhe parece?”. Uma diz: “Isto parece uma borboleta.” Depois mostra-se a mesma mancha a outra pessoa e ela diz: “Isto parece uma caveira.” Isto fazia-me confusão à cabeça… Interessante como uma olha para a mancha e diz que lhe parece uma borboleta e outra olha para a mesma mancha e diz que lhe parece uma caveira… De repente, fez-se luz no meu espírito: “espera lá, já percebi o segredo da crítica, sobretudo da crítica portuguesa…” A tal crítica que é impressionista, não da crítica estrangeira que é mais científica. Não se presta a isto que vou dizer agora. A crítica portuguesa, de livros, de filmes, do que quiser, é impressionista, vive mais de impressões fugazes do que de critérios, e, então, o que é que verificamos? O que é que eu descobri? Por que é que há umas críticas, em relação ao mesmo filme ou ao mesmo livro, em que uma diz maravilhas e outra diz horrores?  Porque é assim… A crítica em Portugal não faz a análise do objecto criticado: faz a psicanálise do crítico. Repare bem na diferença. Você começa a ler as críticas que se escrevem aí e consegue fazer a psicanálise de quem escreveu a crítica. A crítica portuguesa, na maior parte dos casos, age por impressões e não por análise objectiva. Fazer uma análise objectiva de uma obra de arte poderá ser um contra-senso, reconheço isso. Há sempre uma carga de subjectividade na crítica, por muito científica que seja, é evidente. Agora… Há certas regras e certos critérios que já vêm de longe, e que começaram por ser estabelecidos no século XVI pelo dominicano português Frei Francisco Foreiro, com as suas famosas dez regras de exame e avaliação de livros, para uso dos censores da Inquisição, e que o papa ordenou que fossem de norma para toda a Igreja… Como eu costumo dizer, a crítica portuguesa aproveitou do Foreiro o seu pior lado, que é o lado censório, e esqueceu do Foreiro o seu melhor lado, que é o lado científico.

DS – Aproveitou só as metades esquerdas do Foreiro.

AdM – Ora exactamente. A partir daí, fiquei descansado: está bem, os críticos podem dizer o que quiserem. No fundo, o que escrevem é sobre eles próprios e não sobre o que eu fiz, não há problema nenhum. O que eu fiz é apenas uma mancha de Rorschach. É um pretexto… Eles agora olham e vêem uma borboleta ou vêem uma caveira, mas o problema é deles, não é meu.

DS – Há pouco falávamos que em Portugal… E esta é uma temática que nós, enfim, discutimos muitas vezes… A de que Portugal é um país em que o Fantástico, nas suas mais variadas vertentes, não medra… Haverá várias circunstâncias para que isso aconteça, mas, por outro lado, tenho intuído… E este é um raciocínio que tenho formulado algumas vezes… Até que ponto é que Portugal não é um falso país meridional? No sentido em que é muito mais atlântico e, talvez, até muito mais setentrional do que Espanha ou do que Itália…

AdM – Os países mediterrânicos, exactamente.

DS – Acho que nós… Não sei se será em virtude do modo como o país foi formado no século XII, por elites vindas do Norte da Europa, é sempre um pouco abstracto fazer estas análises, mas até que ponto é que Portugal, apesar de ser um país que ainda sofre muito por ter tido um peso inquisitorial muito forte, uma disciplina católica muito rígida, ao fim e ao cabo, não tem, também, a contradição de ser um falso país meridional? Porque não vejo aqui a mesma matriz que vejo, por exemplo, em Espanha…

AdM – Isso é profundamente verdade.

DS – Não é contrasensual que, assim sendo, e ao mesmo tempo, o Fantástico não tenha medrado? Aqui?

AdM – Isso é interessantíssimo, o que acaba de dizer, porque põe o dedo na ferida. Repare, Portugal deve ser, provavelmente, de todos os países mediterrânicos, entre aspas… Portugal é um país atlântico, mas ainda tem uns eflúvios mediterrânicos… É um país que sofreu, não podemos esquecer, duas grandes invasões… Para além das etnias que já cá existiam quando chegaram os Romanos… Os Cempsos, os Cynetes, os Sepes, os Lusis, ou Lusitanos, toda uma série de etnias que existiam por cá, de origem celta que se instalaram na Ibéria e passaram a chamar-se celtiberos, povos indo-europeus que vieram de outras zonas e se instalaram por aqui e os Lusitanos eram um deles… Os Sepes, por exemplo, tinham como símbolo a serpente… Há uma série deles, ainda há vestígios arqueológicos disso. Depois vieram os Romanos, que se instalaram aqui, mas não foram os Romanos no sentido “romano” do termo, o que é interessante… Quem se instalou aqui foi a soldadesca e foram os comerciantes, portanto o português é uma língua que vem da soldadesca e dos comerciantes, não é o latim falado pelas elites, enfim, se calhar por isso é que o português tem estes problemas todos que a gente sabe.

DS – Parte desses colonos eram romanizados e não “verdadeiros” romanos, eram etnias que foram sendo romanizadas e integradas no exército.

AdM – E que depois aprenderam a língua e ficaram a falá-la. Acontece que, em dado momento, houve aqui duas grandes invasões que, de facto, marcaram muito este país. A primeira foi a chamada invasão dos bárbaros, a partir do século V, do século VI, que entraram por aqui adentro. Os suevos…

DS – Os visigodos, os vândalos…

AdM – Os vândalos…

DS - …que, depois, foram para o Norte de África.

AdM – Sobretudo, os suevos, de origem germânica, que ficaram com toda aquela zona do Norte, o actual Minho, digamos assim, a região a Norte do Douro, a Galiza… E, a seguir, os visigodos, os “godos do oeste”, que expulsaram os suevos… Na verdade não expulsaram os suevos, eles acabaram por ser assimilados e desapareceram, ficando aqui apenas os visigodos que eram germânicos, o que é extremamente interessante. A gente lê o «Eurico, o Presbítero» do Alexandre Herculano e os nomes são de origem germano-goda… Aliás, todos os estudos que tive de fazer, durante muitos anos, para escrever aquele romance do qual já falámos, lendo e estudando, por exemplo, documentos do século X, da zona portucalense, percebe-se que os nomes são todos germano-godos. Os nomes de Maria, José, João, Joaquim, são nomes que começam a aparecer a partir do século XII, ou a reaparecer, porque são nomes bíblicos. João é um nome bíblico, Joaquim é um nome bíblico… Antes disso, não. Os nomes no «Eurico, o Presbítero», por exemplo, como Roderico, Ranimiro, Hermengarda ou Teodemiro são nomes nitidamente germânicos, ou germano-godos. Há uma componente germânica muito forte, como digo, ou nórdica, mas, depois, logo a seguir, no século VIII, em 711, vieram os árabes. Não eram propriamente árabes, mas povos numa situação islâmico-árabe, melhor dito. Eram todos povos do Norte de África, mas que traziam a tradição árabe, uma tradição islâmico-árabe, que eram, como eu costumo dizer, a civilização da cisterna… A sul do Tejo, realmente, não existem fontes. É fascinante olhar para o mapa das fontes termais de Portugal, porque a norte do Tejo há fontes que nunca mais acabam. É no Luso, é no Vimeiro, no Buçaco, no Vidago, no Gerês, Monção, Chaves, Pedras Salgadas, enfim… No sul do país há em Monchique, em Castelo de Vide e…

DS – E pouco mais.

AdM – E pouco mais. Há três ou quatro fontes. Quer dizer… Os árabes… Chamemos-lhes árabes, agora, para abreviar…

DS – Para efeito de simplificação.

AdM – Exacto. Portanto, os árabes instalaram aqui na zona aquilo que eu chamo de civilização ou, melhor, a cultura da cisterna. Como não tinham fontes, tinham de escavar poços e armazenar água em cisternas. Ao Norte, isso não era preciso, porque havia fontes que nunca mais acabavam. Eis portanto duas culturas, a cultura da fonte e a cultura da cisterna. A cultura da fonte é nórdica, a cultura das valquírias, do ouro do Reno, dos Nibelungos, do País da Névoa… Repare até que no Minho, e em Trás-os-Montes, chove com muita frequência, o Porto é um sítio de nevoeiro… Aquilo é nórdico. Depois, vamos aqui para o Sul e temos a cultura da cisterna, do Norte de África. As casas algarvias são pintadas de branco e com terraços… Aliás, no meu filme «O Princípio da Sabedoria», eu fiz de propósito uma panorâmica sobre aquela vila algarvia onde decorre a acção do filme… As pessoas não darão por isso, porque estão concentradas no filme, mas aquela vila parece uma aldeia árabe do Norte de África, com as casinhas brancas e com os terraços, tudo aquilo tem um ar árabe. Há essa contradição, que estava a apontar há pouco, e muito bem… Aqui o Fantástico não medra porque oscila numa zona conflituante entre o hipotético fantástico que poderia existir, de origem nórdica, visigótica, portanto, e, depois, o outro fantástico que não chega a existir, que é o das Mil e Uma Noites, o das mouras encantadas, que não chega a ser um fantástico no sentido anglo-saxónico do termo. Os anglo-saxões não conhecem as mouras encantadas. E as mouras encantadas, geralmente, estão nos poços: encantam os incautos camponeses, que vão buscar água aos poços e ouvem umas vozes, como as das sereias, que lhes dizem “olha, vem aqui amanhã, ao meio-dia em ponto, que encontrarás um tesouro”. Faz parte do folclore, não é? E, no dia seguinte, ao meio-dia em ponto, o incauto camponês desce ao poço e a moura encantada atira-se a ele e enfeitiça-o… Há várias lendas associadas, como a das ghoules, espécie de vampiros-fêmeas da tradição pré-islâmica que sorvem os espíritos dos incautos que se apaixonam por elas, e por aí fora. Mas esta ideia da moura encantada não passou para o folclore anglo-saxónico, digamos assim. Por outro lado, nós não absorvemos completamente, pelo lado visigótico, a ideia dos Nibelungos, do País da Névoa, que é um gótico nitidamente típico da Europa Central… E estamos aqui numa zona que se tornou ambígua e essa ambiguidade acentuou-se, porquê? Por culpa da Igreja Católica, porque ainda houve uma fase, no princípio da nacionalidade, com o D. Afonso Henriques, que era templário, com D. Afonso II e D. Afonso III, com o próprio D. Dinis, que teve conflitos com a Santa Sé… O nosso país foi excomungado várias vezes… Com a rainha Santa Isabel, que era uma herética… O mestre dela era o Arnaldo de Vilanova, como prova aquela famosa carta que ela escreveu ao irmão, Jaime II de Aragão, na qual se refere a Arnaldo chamando-lhe «meu bom mestre», e em que ela fala na expectativa de uma próxima visita dele a Portugal… Mas não se sabe se veio ou não… Há quem especule sobre isso, se ele terá vindo ou não a Portugal… Esse Arnaldo de Vilanova, talvez catalão, talvez aragonês como Isabel, era alquimista e astrólogo e os seus livros foram considerados heréticos e queimados na praça pública… A rainha Santa Isabel fazia parte da família daqueles imperadores… Descendia de Frederico II do Sacro Império Romano-Germânico, neto de Frederico Barba-Ruiva, que tiveram grandes conflitos com o papa…

DS – Exactamente.

AdM – Esses imperadores que insultavam os papas de todas as maneiras e feitios e que eram excomungados várias vezes, portanto a Isabel de Aragão descende de uma família de excomungados. O D. Dinis, também, e o pai…

DS – O D. Afonso III, também. Foi excomungado várias vezes.

AdM – Também. Depois, o D. Dinis é que lá compôs a situação política, porque lhe convinha estar mais ou menos bem com a Santa Sé, por causa dos reinos de Castela, de Aragão, aqueles reinos que se viravam uns contra os outros, e o D. Dinis manteve aí um equilíbrio, nisso ele foi genial… E, realmente, a Igreja católica, aqui, era de um catolicismo especial, como no caso da Isabel de Aragão, do D. Dinis, do próprio culto do Espírito Santo, que vem do Joaquim de Fiore, mas que é uma tradição popular… Vamos lá a ver: o culto do Espírito Santo não é, exactamente, aquilo que as pessoas dizem, tem uma raiz pagã. Isso sempre foi muito forte em Portugal. Aliás, quem explica isso muito bem é o Moisés Espírito Santo nos seus livros sobre as origens populares da religião, do cristianismo português. E eu, como fiz a minha tese com ele, como sabe, tive muitas oportunidades de falar com ele e de ler os livros dele, acho que, realmente, é verdade: Portugal é um país pagão. Oficialmente, não é, é católico. Oitenta e sete por cento dos portugueses são católicos, são as estatísticas oficiais… É tudo mentira, mas, pronto, isso é outra história, porque eles contabilizam os baptizados… E estes são cerca de noventa por cento… Depois, é ao contrário: noventa por cento desses baptizados desbaptizam-se ao longo da vida. Mas, quer dizer, essa matriz católica que, a pouco e pouco, se foi infiltrando… Vemos isso por todo o país, nas aldeias, nas festas populares, nas ermidas que foram adaptadas de santuários pagãos, por exemplo à deusa lusitana Ataegina, que a Igreja católica transformou em ermidas à Nossa Senhora de Qualquer Coisa… O D. Dinis teve de fazer acordos com a própria Santa Sé, por razões políticas e os descendentes dele, os reis seguintes, a mesma coisa, foram fazendo acordos… Aquela história que toda a gente sabe, a dos templários, a de que ele não correu com eles, mas fingiu respeitar a decisão do papa… Portanto, encerrou a Ordem do Templo, mas não completou a decisão. Isto é, todos os bens do Templo, ele não os entregou à Santa Sé: ficou com eles, guardados. Isso até foi muito mal visto pelo Dante, por ter obedecido ao Papa e acabado com os templários. O Dante morreu antes de ter visto a fundação da Ordem de Cristo, é interessante. Ele escreveu a «Divina Comédia» e morreu pouco depois, logo não assistiu ao truque do D. Dinis. Por que é que Dante o criticava? Há uma passagem em que ele o critica duramente, porque D. Dinis se apropriou dos bens dos templários, chamando-lhe «avarento», um dos grandes avarentos do seu tempo… embora o coloque no Paraiso. Claro que o D. Dinis sabia que se os entregasse à Santa Sé ficaria sem eles… Ele apropriou-se dos bens já com a mira de os devolver a uma nova ordem, que era a Ordem de Cristo, continuadora da Ordem do Templo, e foi isso que ele fez. Ora bem… Isto é só para dizer que, entretanto, meteu-se cá a Igreja católica e ela, como sabemos, até nos nossos artigos falamos sobre isso, é contra tudo o que contém esoterismo, sobrenaturalidades mágicas, porque implicam deformações. Deus criou o Homem à sua imagem e semelhança e nós vemos que no maravilhoso medieval há anões, sereias, fadas, grifos, unicórnios, figuras fabulosas, mesmo com forma humana, que não são criadas à imagem de Deus, portanto há aí uma distorção. E a distorção, realmente, é a irreverência, é a blasfémia. A Igreja nunca viu isso com bons olhos e a partir do momento em que, passado pouco tempo, a seguir ao D. Manuel I, veio o D. João III e trouxe a Inquisição, a nossa queda disparou… Porque nós, na fase ascendente, ainda conseguimos fazer os Descobrimentos, foi a fase em que, aqui, árabes e judeus confraternizavam, e, portanto, a ciência árabe e a ciência judaica… Os árabes tinham uma ciência extraordinária, toda a alquimia árabe desaguou aqui… Nós não podemos esquecer que quando lemos livros ingleses e franceses sobre alquimia, que dizem que “ah, a alquimia entrou na Europa em mil-cento e carqueja”, eles esquecem que existe uma coisa chamada Península Ibérica que também faz parte da Europa. No “território portugalense”, que era assim que se dizia na altura, já os treze famosos preceitos herméticos do Hermes Trismegisto eram conhecidos no século VIII. E, no entanto, só são conhecidos em França e em Inglaterra a partir do século XII e é a isso que as histórias se referem. Há um desconhecimento… E nós como temos tendência para ler livros franceses, ingleses, americanos, livros da cultura da Europa Central, esquecemos a nossa própria cultura e, no século VIII ou no século IX, a nossa própria cultura era muito mais avançada do que, por exemplo, a da corte de Carlos Magno, o grande imperador… O Carlos Magno era uma anedota, a corte dele era de uma ridicularia, comparada com a alta cultura do al-Andalus, aqui na Península, a civilização islâmico-árabe… Eram cabanas e casebres comparados com os palácios muçulmanos de Córdova, e, mesmo aqui, os do Algarve.

DS- Basta ir a Granada, por exemplo.

AdM – Sim, Granada, Sevilha, além de Córdova… Em Portugal, agora, já não existem restos, mas todo o Algarve… e Alentejo… Odemira… Silves, Alcácer, Beja… Até Setúbal, até Lisboa… A quantidade… Por exemplo, quem define isso muito bem é o Adalberto Alves naqueles seus livros «O Meu Coração É Árabe», «As Sandálias do Mestre», «Portugal e o Islão Iniciático»… A poesia e a arte que se faziam aqui na zona que hoje é Portugal eram de uma qualidade extraordinária. Esses fulanos já tinham, comparando com a corte de Carlos Magno, um luxo… Um luxo das Mil e Uma Noites… O luxo de Carlos Magno, coitadinho, era o dos casebres… Para os franceses, ingleses, alemães, etc., aquilo era o máximo, esquecendo que havia aqui uma cultura… Nessa época, já aqui na zona da península, a biblioteca do emir Abd-ar-Rahman III (mais tarde califa de Córdova), tinha quatrocentos mil volumes. Pode imaginar o que era uma biblioteca com quatrocentos mil volumes manuscritos? Existiu aqui. O Carlos Magno se tivesse, para aí, doze ou treze…

DS – A maior parte da nobreza não sabia ler.

AdM – Não sabia ler.

DS – Nem era função dela.

AdM – Guerreavam-se. Eram guerreiros.

DS – A função deles era fazer a guerra.

AdM – Saber ler era para os monges e para uns poucos — muito poucos — eruditos…                                                              

DS – Claro.

AdM – Portanto, até aos Descobrimentos nós ainda conseguimos ser um país realmente evolutivo. A partir da expulsão de árabes e judeus, no reinado de D. Manuel I, cujas culturas tinham feito os Descobrimentos… A partir da Inquisição… Bom, a partir daí o país acabou. A sensação que eu tenho… É como nós temos vindo a escrever nos nossos artigos: essas raízes desapareceram e ficámos sem nada. Depois, o que é que fomos buscar? Fomos buscar os restos da Europa Central. Os livros franceses, ingleses, alemães… No tempo do Marquês de Pombal eram os livros alemães… Ele foi casado com uma austríaca e também viveu na corte…

DS – De Viena.

AdM – De Viena. E até há historiadores da época que se queixam de que se chegava à corte de D. José I e só se ouvia falar alemão e não se ouvia falar português. Seja como for, fosse alemã, fosse francesa, fosse inglesa, a cultura passou a ser importada a partir da Europa Central e nós esquecemos as nossas raízes mais profundas, as verdadeiras, que eram as raízes islamo-árabes e visigóticas. E que eram extremamente interessantes. A pouco e pouco, com a Igreja, sobretudo a partir do reinado de D. João III, em seguida o Absolutismo… Quando chegou o Iluminismo, cá está!... O Iluminismo do século XVIII era todo da Europa Central: era o dos filósofos alemães e franceses, sobretudo, que se instalou cá, e a mentalidade portuguesa foi formatada por essa cultura da Europa Central que, realmente, não tem nada a ver connosco. Nós tivemos uma cultura sui generis que se tivesse conseguido medrar tínhamos, provavelmente, um Fantástico extremamente interessante. Eu não faço ideia de qual seria. Já viu o que era um Fantástico reunir as mouras encantadas com as valquírias, com o ouro do Reno e os Jinns das cisternas? A gente lê «As Mil e Uma Noites» e fica fascinada. Não esqueçamos que «As Mil e Uma Noites» contam histórias compiladas no século IX! Reflectem uma realidade que também tínhamos aqui na península e que não se compara com a realidade dos restantes medievalismos europeus, das gentes que não se lavavam, que cheiravam mal… Aqui havia uma preocupação de higiene quase obsessiva, até porque o Alcorão diz que temos de nos lavar cinco vezes por dia. Essa ideia de que na Idade Média era tudo uma porcaria e ninguém se lavava… Ela é bastante verdade, realmente, sobretudo a partir do século XII, mas nos tempos em que os árabes andaram por aqui, durante a civilização islamo-árabe e a visigótica, havia uma certa preocupação com a higiene, até porque era de ordem religiosa. Perdeu-se, como é evidente. São estas perdas todas que fazem com que nós, hoje, não tenhamos um Fantástico em Portugal. No fundo, o que é o Fantástico? É uma descoberta. Nós quando enveredamos pela literatura fantástica, pelo cinema fantástico, no fundo estamos a enveredar por um campo desconhecido. É o chamado “fascínio da descoberta”. É um mundo de maravilha, cá está o tal maravilhoso medieval, que se tornou Fantástico, e é essa descoberta do indescobrível, a descoberta do infilmável, a descoberta do indizível ou do invisível, que, realmente… É um interstício. São as tais assimptotas que se vão aproximando e nós estamos sempre entre elas. O criador de Fantástico, no fundo, não está preocupado com as curvas, em si. Essas já estão definidas matematicamente. Essas já foram referenciadas, já têm uma fórmula, já estão definidas por uma equação. O que ele quer é o que está entre elas. É aquilo que ainda não tem fórmula matemática. E é isto que eu quero explorar. Só posso explorá-lo através da imaginação, do visionarismo, da intuição e toda uma série de ferramentas de captação da “coisa”, entre aspas, que não são reconhecidas pela ciência. A ciência não reconhece o visionarismo. Pode reconhecer em termos clínicos, não é? “O visionário, coitado, sofre desta e daquela patologia” e classificam a patologia. Isso não me interessa: interessa-me é o visionarismo autêntico de um visionário, de um místico, no sentido de ver para além… É o tal interstício entre as duas assimptotas. É isso que eu quero explorar.

DS – No que diz respeito à capacidade de… É preciso haver sempre um equilíbrio… O ouro e a prata… O ouro é a imaginação, as ideias que temos, a prata é o lado mais lunar de meter as mãos à obra, porque uma coisa não existe sem a outra. E no que diz respeito a esse lado mais lunar, chamemos-lhe isso, ao ver os filmes do António, é extraordinário constatar que possuem uma superioridade técnica surpreendente. Não só no que concerne aos meios de produção e ao modo como são usados para criar certos efeitos, como no que concerne à apresentação de alguns modos de narrar que estavam muitíssimo à frente do seu tempo. Coisas que, hoje em dia, estão a ser exploradas em títulos de vanguarda. É extraordinário, por exemplo, «A Promessa» que tem aquele final com cores carregadas… Em «Os Emissários de Khalôm», estou a lembrar-me, aquele anúncio sobre…

AdM – A bolha. «Esteja em férias em plena guerra nuclear.»

DS – Tudo isso são coisas que vieram a ser exploradas por outros realizadores e entendidas nas obras desses realizadores como sendo algo absolutamente visionário. O facto de o António ter feito tudo isso antes é revelador de uma vontade de desbravamento, de uma argúcia…

AdM – São os tais interstícios…

DS - …absolutamente extraordinária. O experimentalismo nos seus filmes e a direcção de actores são sempre fabulosos… Num filme do António, os actores representam sempre todos muito bem. Fale-me um pouco de como, ao longo da sua carreira, é que este lado lunar do domínio da técnica e do experimentalismo… Vamos a ver… Eu não acho que o experimentalismo nos filmes do António esteja ao serviço da colmatação de falhas que poderiam ser impossíveis de transpor, por culpa de sermos um país com pouca tradição de cinema e não poder fazer-se coisas tão arrojadas como no cinema norte-americano ou no inglês, mas o seu experimentalismo, lá está!, não vai por aqui. É um experimentalismo verdadeiramente artístico. Há uma vontade artística de experimentar coisas novas, de mostrar coisas novas. É como se o experimentalismo técnico dos seus filmes servisse, não a falta de meios, mas antes, e com muito mais luz, a voz da obra. Que veicula a voz da obra. Porque o experimentalismo de «A Promessa» é muito diferente do experimentalismo de «Os Emissários de Khalôm», por exemplo, ou de «O Princípio da Sabedoria». Ou seja, é um lado técnico de magia, de magia do efeito, que está ao serviço da própria obra, da própria voz da obra. E é assim que ele faz sentido.

AdM – Eu também acho que sim, que isso é verdade. Ainda bem que me diz isso, porque me faz ver as coisas em retrospectiva, de ver com outra clareza as coisas que fiz. Mas de facto era isso. Havia, por um lado, evidentemente, a ideia de colmatar as deficiências que sempre existiram em Portugal, em relação à técnica do cinema. Técnica, no sentido mais lato, enfim, mais vulgar, porque nós aqui não temos os meios que Hollywood sempre teve. Mesmo antes de haver os computadores e as tecnologias informáticas e cibernéticas que existem hoje, lá já existiam empresas que faziam efeitos especiais muito sofisticados. De efeitos mecânicos, de efeitos com maquetes, muito bem feitos, que nós aqui não tínhamos e, por isso, precisávamos de inventar determinado tipo de substitutos. Os meus colegas cineastas não se preocupavam com isso, não pensavam nisso, porque o cinema deles não é um cinema “com efeitos”, entre aspas.

DS – É um cinema de “plano fixo”.

AdM – É. É um cinema normal, de filmar o que lá está e pronto… Tudo bem. Mas o cinema normal a mim nunca me serviu e eu sempre quis filmar o infilmável ou filmar o invisível. E, portanto, para além da preocupação de colmatar as deficiências que existiam, havia outra que é a de um perfeccionsimo estético e isso é verdade. Isso também se deve, talvez, a um defeito… Não é bem um defeito, é o facto de a minha formação ser de arquitectura… Mas não podemos esquecer que o facto de eu ter ido para arquitectura foi também uma consequência. O ter feito arquitectura não é causa de eu, depois, ter uma certa estética nos filmes. A arquitectura, por sua vez, é uma consequência, porque eu, desde muito novo, desde miúdo com oito ou nove anos de idade, já escrevia histórias, inventava histórias e gostava muito de as ilustrar, portanto fazia histórias aos quadradinhos com bonecos para ilustrar, por isso aquela ideia de as imagens se sucederem umas às outras, terem uma certa sequência e, depois, a história ser contada assim, já fazia nessas idades e até as mostrava aos meus colegas de escola que achavam graça a isso. Depois vinha a professora dizer “ai, o Macedo tem tanto jeitinho para fazer estas histórias engraçadas” e tal… Portanto, quando fui para arquitectura, aliás mais pressionado por razões económicas, porque, no fundo, eu queria ter ido para Letras… Queria ser escritor, mas ir para Letras era muito caro e não pôde ser e acabei por ir para arquitectura. E ainda bem, porque a arquitectura revelou-me montes de visualidades novas, sobretudo os mundos tridimensionais, coisa que a pintura nunca me daria. Uma pintura ou uma escultura, uma pessoa vê-as de fora: a arquitectura tem de ver-se por dentro. Vive-se por dentro. E quando concebe a arquitectura, o arquitecto tem de conceber os vários espaços e os desníveis, não é?, e a colocação dos vários blocos no espaço. Tem de visualizar a três dimensões e, por fim, a quatro dimensões. Porque as pessoas deslocam-se dentro desse espaço, portanto há uma quadridimensionalidade, há um espaço-tempo, que está em jogo. E isso é extraordinário para o cinema. Depois, percebi que o curso de arquitectura era extremamente útil para o cinema. Sempre foi muito importante para mim que nos meus filmes e em qualquer coisa que eu fizesse em cinema tivesse um lado estético, uma certa beleza “estética”, entre aspas, passe o chavão. Desde os meus primeiros filmes, mesmo os documentários, o «Verão Coincidente», a «Nicotiana», sempre me preocupou o enquadramento… A mim sempre me fez muita confusão… O mistério do enquadramento… Repare, o que é o enquadramento? Eu tenho uma câmara, fotográfica ou de filmar, e vou fotografar ou filmar um aspecto do universo… Pode ser este em que estamos agora, aqui, não é? Pode ser na rua, pode ser na praia, em qualquer sítio, na floresta… Eu pego na câmara, aponto e depois fico perplexo, porque digo assim “espera lá, o universo é infinito à minha volta”. E o que é que eu vou fotografar? Tenho de fazer uma escolha. Posso fotografar um bocadinho para a esquerda ou um bocadinho para a direita, um bocadinho para cima ou um bocadinho para baixo, ou recuar um pouco, ou aproximar-me… A partir deste momento, a perplexidade instala-se: “o que é que eu vou fazer”? E por que é eu escolho fotografar assim, um bocadinho mais para a esquerda, em vez de fotografar assado, um bocadinho mais para a direita? Eu tenho de fazer uma escolha: pior ainda, eu tenho de fazer uma renúncia. Como já dizia o Sartre: «Escolher é renunciar». Portanto, quando escolho, escolho um bocadinho do universo, porque o enquadramento é limitado, e estou a renunciar ao melhor, o melhor que o universo tem e que é tudo o resto. Escolher aquele bocadinho é um problema. Daí o apuramento do enquadramento. A preocupação do enquadramento. É a primeira fase, digamos assim, da busca da estética. Em segundo lugar, uma vez escolhido o enquadramento, o que é que eu meto lá dentro? O que meto lá dentro pode ter formas, pode ter sombras, pode ter contrastes, pode ter claro-escuro, pode ter cores, pode ter determinado tipo de movimentos, mais: esses movimentos podem ser intrínsecos ao enquadramento… Podem andar lá pessoas que se movimentam ou automóveis ou outros objectos ou pode ser o próprio enquadramento que se move: coisa que não existe no teatro. Eu no teatro estou sentado na plateia e estou quieto: eu no cinema pego na câmara e desloco-me com ela. Isto é, o espectador que está sentado na plateia do cinema em dado momento desloca-se com a própria câmara e isso cria uma quadridimensionalidade, cria uma outra responsabilidade. E é essa busca de uma estética, por um lado, e daquilo que se mete, por outro, que implica, na minha cabeça, e sempre implicou, uma grande preocupação de um rigor muito grande: isto é, que o espectador se sentisse, não direi confortável, mas que se sentisse de tal maneira agarrado por aquilo que está a ver e que não rejeitasse. Que agarrasse. E daí uma das coisas primeiras, que está naquilo que disse, que é a direcção de actores.

DS – Sempre fantástica nos seus filmes.

AdM – Dei-me logo conta muito cedo, desde muito jovem. Ia ao cinema ver um filme estrangeiro, americano, inglês, francês, óptimo… Via um filme português… Uma pessoa arrepiava-se toda, quer dizer, ficava com os cabelos todos em pé, porque aqueles fulanos falavam como no Teatro D. Maria II. Jesus, como é que eu vou resolver isto? Eu, no cinema, não posso fazer isto. Nos meus dois primeiros documentários, esse problema não se pôs, porque havia uma locução, como havia nos documentários, de forma geral, mas no cinema de fundo, com actores a representar… Era um cabo dos trabalhos. Eu era cineclubista nos anos cinquenta… Comecei a filmar nos anos sessenta… O «Verão Coincidente» que é o meu primeiro filme é de 1962, o «Domingo à Tarde», a minha primeira longa-metragem é de 1964 para 1965. O filme saiu em 1965, mas foi filmado entre 1964 e 1965… Eu ia ver filmes portugueses nos anos cinquenta e mal um actor abria a boa e dizia “bom dia”, ou qualquer outra coisa aparentemente banal, a plateia partia-se a rir à gargalhada, porque a inflexão, pretensamente séria, resultava ridícula…

DS – Ainda por cima, já eram aqueles actores… Que vieram pós-Vasco Santana…

AdM – É que esses actores, os antigos, tinham graça naturalmente. Quando o Vasco Santana dizia “bom dia”, as pessoas riam-se porque ele tinha muita graça a dizê-lo. Quando um “actor a sério” dizia “bom dia”, com aquele ar de sério, as pessoas partiam-se a rir, porque aquilo tinha um repique atroz. Eu dizia: “estou tramado, como é que eu vou descalçar esta bota?” Entretanto, reparei que no documentarismo português os espectadores não se riam. Por exemplo, num documentário sobre uma fábrica de conservas ouvia-se a voz do locutor a dizer, em português: “esta é uma fábrica de conservas, o peixe entra por aqui, é descascado ali, as latas entram por ali, depois deita-se-lhe o azeite em cima, patati, patatá” e as pessoas não se riam, não reagiam mal. Engoliam aquilo, a locução, perfeitamente. E eu disse: “espera lá, isto é curioso, porque é um fenómeno”. Afinal, a língua portuguesa não era horrível, nem o espectador português não gostava de ouvir falar português no cinema: era mentira, porque quando vão ver documentários, fossem turísticos a descreverem as belezas do Algarve, ou fossem industriais, a descreverem o fabrico das conservas de atum, as pessoas não se riem, acham a língua portuguesa normal. Acham normal o locutor a descrever-lhes aquilo… Portanto, havia aqui alguma coisa que não estava bem. São os actores que representam mal… Mas depois comecei a ver com atenção e percebi que, se eu fingisse que não ouvia o que eles diziam numa dessas fitas portuguesas normais, dessas muito más, os movimentos e comportamentos dos actores não estavam nem mal, nem bem, mas quando abriam a boca… Santa Bárbara nos valha… E eu disse: “espera lá, que eu já descobri o truque”… Já sei o que é que eu vou fazer. Quando fiz o meu primeiro filme de longa-metragem, que foi o «Domingo à Tarde», disse: “bom, se eu começo o filme com esta gente a falar normalmente, a plateia parte-se a rir à gargalhada”… Não aguenta ouvir diálogos em português. Mas se eu puser uma locução, as pessoas engolem. O «Domingo à Tarde» começa no hospital com o médico, ouve-se a voz dele, tipo locução, a dizer “nesse dia, estava muito atormentado, porque a doente de não-sei-quê, na enfermaria, morreu e estava grávida”, portanto uma história pungente contada em locução. E a locução é do Rui de Carvalho, que tem uma boa voz, a locução é excelente. E os dez primeiros minutos do filme são em locução. Não se pode repetir isto em todos os filmes, como é evidente, mas, para o meu primeiro filme, eu disse “se, no meu primeiro filme, mal os gajos abrem a boca todos se começam a rir à gargalhada estou arrumado”, portanto tive de inventar um truque. E o truque foi esse: como ninguém se ria nos documentários sobre o atum e nos documentários sobre o Algarve, que tinham um locutor, o meu filme começaria com um locutor. Então, as primeiras cenas do filme, uns bons dez minutos, são com o médico, que é o Rui de Carvalho, a explicar o seu dia-a-dia, os problemas, vai descrevendo-nos o que está a acontecer. Mais a assistente, a Isabel Ruth, a falar com ele… Mas não se ouve o que eles dizem. Ouvem-se os sons próprios da cena, mas não as palavras. Repare, tive esse cuidado. Nas cenas que estão a ser filmadas com a locução do Rui de Carvalho, a explicar o que está a acontecer e os problemas que ele teve nesse dia, etc., ouvem-se os sons todos: eles mexem nos papéis, ouvem-se os papéis; mexem no telefone, ouve-se o telefone… Mas quando abrem a boca, não se ouve nada. Só fala a locução do Rui de Carvalho. E o espectador engole aquilo, perfeitamente. Quando se passa para a consulta, que é das primeiras cenas do filme, ainda se ouve a locução mas já se começa a ouvir, em fundo, o vozear de uma consulta, de uma sala de espera, e só quando a locução se começa a diluir e a calar é que se ouvem as primeiras vozes dos actores. Acho que até é uma enfermeira que diz ao médico “está aqui uma pessoa à sua espera”, mas di-lo com um ar muito… “de pantufas”… que começa a surgir por baixo da locução. Há um cruzamento entre o fim da locução e o princípio do diálogo.

(Continua.)