segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Entrevista com António de Macedo: 2ª Parte


Segue-se a segunda parte da entrevista extensiva e exclusiva que fiz ao cineasta e escritor António de Macedo. Continua-se a desvendar os segredos (alguns) por trás da obra de Macedo, assim como a filosofar sobre muitos outros assuntos. A conversa continuará na terceira parte.


Entrevista com António de Macedo: 2ª Parte

David Soares – Lá está, mas isso inscreve-se no que eu disse há pouco: de o seu experimentalismo estar ao serviço da voz autoral e do tom do filme.

António de Macedo – Como os actores começam a conversar naturalmente entre eles…

DS – Já o espectador está enlevado na narrativa…

AdM – Já está. Já foi apanhado na rede. Já não se ri, porque, entretanto, aquilo entrou “de pantufas”, ele não dá por isso. Isso é um aspecto. O segundo aspecto… Percebi, também, que os actores não podiam… Ou melhor, que eu não deveria captar o som directo, porque eles representavam como se estivessem no teatro. Representavam assim, porque os actores que a gente tinha eram de teatro. Hoje, com a proliferação das telenovelas e independentemente dos seus óbvios defeitos, surgiu uma geração de actores jovens mais desinibidos diante das câmaras, sem os tiques inerentes à teatralidade. Mas naquele tempo não era assim, o “actor de teatro” só raramente fazia cinema. Ora, o actor de teatro projecta a voz. Como dizem os próprios actores de teatro, a voz pode ser colocada na cabeça, pode ser colocada no peito ou pode ser colocada no estômago. Quando a voz é colocada na cabeça é para ser atirada para a última fila da plateia. Quando a voz é posta no estômago cria-se aquela voz íntima, não é?, que eles usam para falar ao pé uns dos outros. Isto em teatro funciona, dentro de certos limites, mas não funciona em cinema. Em cinema, a voz… a voz não é para estar na cabeça, nem no peito, nem no estômago — a voz tem de estar “no microfone”. E, então, eu dizia aos actores… até por uma questão de expressão visual… Se a pessoa fala mais alto a própria expressão visual acompanha-a, se a pessoa coloca a voz mais baixa, e fala de uma maneira íntima, a expressão visual também a acompanha. É preciso ter cuidado com isso, portanto, todos os meus filmes são dobrados. Tomei essa decisão: “vou dobrar os meus filmes todos”.

DS – Isso foi algo que, na altura, também concorreu para a tal desapreciação crítica dos seus filmes? Porque havia um certo preconceito contra…

AdM – Contra a dobragem.

DS – Uma espécie de cartilha Dogma “avant la lettre”

AdM – Exactamente.

DS – Tudo o que não fosse captado em directo era muito criticado.

AdM – Era mal visto, exactamente. Até porque depois dos bons filmes dos anos 30 com o Vasco Santana, a Beatriz Costa, o António Silva, o Ribeirinho, a Maria Matos… eram todos em som directo porque essa plêiade de actores era muito boa, e eles aguentavam a representação em som directo muito bem… mas depois vieram os “maus” filmes “sérios” dos anos 40 e 50, e até 60, com actores de menor envergadura, e esses filmes passaram a ser dobrados porque saía mais barato durante as filmagens, filmar sem a sobrecarga das aparelhagens de captação de som, mas eram muito mal dobrados, a boca dos actores mexia por um lado e o som saía por outro, e era insuportável de se ver. E eu fui em contra-corrente, decidi dobrar os meus filmes mas rodeei-me de cuidados especiais, como por exemplo ter sempre o cuidado de, durante as dobragens, colocar as vozes dos actores nos tons certos e nos sítios certos… Nas dobragens é mais fácil controlar as vozes dos actores, porque eu, quando estou a filmá-los, eles estão no cenário, estão a representar, falam e é difícil estar sempre em cima deles para controlar as vozes. Eu não estava com essa preocupação, porque dizia-lhes o seguinte: “vocês falem sempre em voz baixa”. Mas eles queriam que eu os ouvisse… Ora, eu era o realizador, estava ao pé da câmara, no limite do plateau, e eles, os actores, estavam em pleno plateau, um bocado mais longe… E eu respondia-lhes: “mas eu não vos quero ouvir”. E eles: “então, como é que sabes se a gente está a fazer bem?” E eu: “basta-me ver o vossos movimentos e já sei se estão a fazer bem ou não”. Isso fazia-lhes muita confusão à cabeça. Eles queriam representar para mim: como não tinham um público, estavam habituados à plateia e para eles, ali, a plateia era o realizador. “Sim, estou aqui longe, atrás da câmara”, dizia-lhes, “não se preocupem comigo. Vocês têm aí ao pé as pessoas com quem estão a contracenar, estão mesmo aí junto de vocês, têm de falar para elas”. O truque que eu utilizava era dizer aos meus actores: “Vocês falem da seguinte maneira, façam de conta que está aqui mesmo ao lado um bebé a dormir. Vocês têm de falar de maneira que os vossos colegas vos ouçam, mas sem acordarem o bebé.” E este truque funcionou. Eles começavam a representar de uma maneira muito mais… em “underacting”

DS – Sem caricaturar.

AdM – Sem caricaturar. Que é a tendência do actor de teatro da velha escola.

DS – No teatro tem de exagerar-se ou o público não se apercebe.

AdM – Não se apercebe, tem de ser tudo muito marcado. O próprio teatro é um exagero, tudo aquilo é convencional, por isso, aí, está tudo certo. Mas em cinema, não. Depois, quando chegava à dobragem é que eu os controlava. Punha-lhes o microfone mesmo à frente, colocava-lhes a voz mesmo onde eu queria.

DS – Para eles deve ter sido algo um bocado surrealista.

AdM – Foi um bocado surrealista, mas adaptaram-se facilmente. Curiosamente, nunca tive problemas com os meus actores. Todos eles perceberam, perfeitamente, e adaptaram-se. Até houve um actor do «Chá Forte Com Limão»

DS – O actor francês que foi dobrado por um português?

AdM – O Jean-Pierre Cassel? Não, não foi ele.

DS – Dá-me ideia que há partes em que aquilo que o Cassel está a pronunciar equivale ao texto em português. Ele representou em português?

AdM – Não. Representou em francês. Traduz-se o guião para o actor falar em francês, porque se ele falar em português, como o actor não é português, perde a naturalidade e fala um português com o ritmo todo trocado, ficam as sílabas fora dos sítios, e o resultado é muito mau. Portanto, o actor francês fala em francês. Depois, vem um especialista… Sobretudo, em França faz-se isto muito bem… Vem um especialista que vê quais são as labiais, quer dizer os pontos de contacto, porque as labiais permutam-se: o “b” de “bota, o “m” de “Mafra” e o “p” de “palhaço”, têm todos a mesma colocação labial. Por isso, torna-se fácil substituir palavras. Num texto falado em francês, o especialista procura as labiais, que são os pontos de contacto, são os vários “ganchos”, e, depois, limita-se a colocar labiais portuguesas nesses sítios, sejam elas quais forem. Repare: se ficar à frente de um espelho e articular mudo a palavra “pai” estando por cima o som da palavra “mãe” verá que os movimentos dos lábios são iguais. O “p” e o “m” são labiais e, como o são, tanto faz ouvir um como ou outro. A expressão visual é a mesma, tanto faz pôr o som de “pai” como o som de “mãe”, portanto eu, na dobragem, posso fazer a aldrabice que quiser. E é assim que se faz. Mas estava a dizer que havia um actor, que vinha do teatro e que tinha a tendência para colocar a voz na cabeça, digamos assim… E quando fomos dobrar o filme… Ele até a falar, naturalmente, é assim. Eu disse-lhe: “estás com a voz muito alta e eu não quero isso”. Expliquei-lhe como queria e ele respondeu: “Ah, já sei o que queres. Que chatice, isso agora obriga-me a uma preparação… Só te peço um favor. Vou pedir-te meia-hora. Arranja-me aí um sítio sossegado para eu fazer uma preparação de treino de voz”. Disse-lhe para ele colocar a voz no estômago, o mais abaixo possível. “Repara”, disse-lhe, “estás a fazer um papel romântico, de D. Juan apaixonado, estás a interessar-te pela rapariga… Se pões uma vozinha muito alta ninguém acredita em ti, ninguém te leva a sério”. Ele fechou-se durante meia-hora num cubículo na Nacional Filmes, lá onde ficava o estúdio de som, e, no final, apareceu com uma voz óptima, parecia mesmo a voz de um galã. E eu fiz a dobragem impecavelmente. Ou seja, isto é só para dizer que todas estas partes técnicas (desde a direcção de actores), ao serviço de um determinado tipo de intenção, tudo isso foi, realmente, conseguido ao longo de anos de experiência e sempre com a preocupação de obter o resultado mais eficaz para o ponto de vista do espectador. Aquilo que, desse ponto de vista, fosse mais eficaz para transmitir a sensibilidade que eu queria que fosse transmitida, fosse num mundo fantástico, fosse num mundo real. E isso obtém-se através da tecnologia. Foi por isso que eu tive de aprender como funcionava muita tecnologia, em termos de cinema. Daí os meus filmes terem um aspecto técnico muito apurado, tão apurado quanto possível dentro das limitações que nós temos. Sempre entendi que o som é uma componente fundamental do cinema.

DS – E uma que, na maioria dos filmes portugueses…

AdM – É desprezada.

DS – É desprezada. A maioria dos filmes tem um som miserável.

AdM – Tem um som miserável. Parece que os realizadores são surdos…

DS – Será uma consequência da hegemonia do tal som directo?

AdM – Eventualmente, será… Penso que eles serão mais visuais que auditivos. Até porque, repare…

DS – Mas o António tem formação musical, logo tem uma sensibilidade diferente.

AdM – Tenho, exactamente. Isso tem muita importância. Reconheço-o, perfeitamente. Aliás, o meu filho, o António de Sousa Dias, que é músico – formou-se em música, é musicólogo e compositor, que sempre foi a vocação dele, desde muito novo – e trabalhou comigo durante muitos anos, diz que aprendeu muito comigo, e eu, mais tarde e com o trabalho conjunto, aprendi muito com ele… Temos falado muito sobre isso. O nosso trabalho sempre foi de grande cumplicidade. Ele começou por fazer alguns filmes comigo, para a televisão, pequenos documentários, e o primeiro filme de longa-metragem que ele fez comigo foi «Os Abismos da Meia-Noite», que tem uma qualidade de som extraordinária. Ele fez a música de fundo e os efeitos sonoros que se ouvem no filme, que foi uma coisa que ele delirou em fazer, para a criatividade dele foi excelente. E isso tem a ver, exactamente, com a preocupação que eu sempre tive – e, felizmente, encontrei da parte dele uma colaboração fabulosa – sobre a importância que o som tem no cinema. Os meus colegas vêm todos de uma geração… os meus colegas do meu tempo, porque os mais jovens já têm outra visão, diferente… mas os realizadores da geração de cinquenta, sessenta, até setenta, ainda vinham com a velha escola de que o sonoro é uma deformação, uma deficiência do mudo. O cinema mudo é que era o verdadeiro cinema.

DS – Ainda estavam arreigados a essa visão?

AdM – Estavam. Havia uma frase que eles diziam: “o cinema quanto mais mudo, e mais preto e branco, melhor”. O cinema a cores era mal visto. Você não faz ideia da dificuldade que eu tive para tentar impor os meus filmes a cores aqui em Portugal. Embora já cá houvesse alguns filmes a cores… Uns documentários com uma cor muito “ranhosa”… E eu, pela primeira vez, comecei a trabalhar a cor em cinema como uma forma de arte. As filtragens que se usavam nas étalonnages dos filmes… aproveitei-as para criar novos cromatismos, alguns até aberrantes… comecei a trabalhar isso como uma forma de arte. Tive a sorte de encontrar uma colaboradora excelente, que era a Teresa Ferreira, no laboratório da Ulyssea Filme. Ela tinha formação artística, estudara na Escola António Arroio, e, então, percebeu o que eu queria fazer e entusiasmou-se. Mas, realmente, havia esse preconceito contra o som e a cor: quanto mais mudo e preto e branco, melhor. Havia até um famoso teórico francês, muito citado na altura pelos meus colegas, que dizia: “Olhemos para o fotograma. A imagem no filme, correspondente ao fotograma, tem uma certa área, a pista de som é um milímetrozinho marginal. A importância do som, num filme, deve estar em proporção”. A imagem ocupa oito ou nove décimos de um fotograma e só um décimo é que é ocupado pelo som. Eu dizia que a relação tinha de ser, no mínimo, de cinquenta para cinquenta. Tinha de haver um equilíbrio. Isto criou, naturalmente, um mal-estar. Mas eu apercebi-me que muita gente nem sequer ouvia os meus filmes… Quando eu digo “ouvia”, quero dizer que não percebia o experimentalismo acústico, sonoro, que eu estava a fazer. Quando fiz, por exemplo, o «Domingo à Tarde»… Este filme não tem música de fundo, aliás só tem uma música, na cena do cabaret, que é uma música de cena. Não é de fundo. As pessoas dançam, ouve-se a música, ela faz parte da cena… Lá está, é um filme sem música de fundo… Tive de ter um cuidado muito grande com os chamados ruídos e efeitos de som, tive de orquestrar os sons. A diferença entre a música de fundo e a música de cena é que esta ouve-se quando algo em cena está a produzi-la, uma orquestra, um gira-discos, etc., mas a de fundo é a chamada “orquestra invisível”. Ninguém sabe quem a toca, nem de onde vem… E eu decidi que não queria música de fundo no meu primeiro filme: decidi que iria orquestrar os ruídos. E toda a ambiência sonora que o filme tem, toda a sua “música de fundo”, entre aspas, são ruídos naturais, hospitalares, as máquinas dos raios-X… Todos esses ruídos são orquestrados. A partir daí, comecei a perceber que tinha de fazer partituras com os ruídos. Com a Banda de Ruídos A, a Banda de Ruídos B, a Banda de Ruídos C, a Banda de Ruídos Não-sei-quê, com os passos, as vozes, tudo tinha de estar orquestrado. Tinha de se fazer, como se dizia na rádio nessa época, uma sonoplastia. Aquilo que hoje, em cinema, se chama “sound design” e que, cá em Portugal, não se fazia a mais pequena ideia do que era. Quando realizei o «Sete Balas Para Selma», o meu segundo filme, que já tem música de fundo, digamos assim, a sonoplastia que eu fiz tinha dezassete ou dezoito bandas de som: era de tal maneira que foi dos meus filmes mais complexos em matéria de bandas de som, na mistura final tinha uma orquestração de sons diferentes que nunca mais acabava. E eu, depois de ter esse trabalho todo, pus no fim, no genérico, “montagem e sonoplastia de António de Macedo”. Você não faz ideia do que eu fui gozado! Diziam os meus colegas: “Sonoplastia? Mas que pretensioso! O que é isso? Sonoplastia é na rádio, fazem para lá uns barulhos…” Por isso, quando eu dizia “eu faço sonoplastia nos meus filmes”, era um nome que no cinema nem sequer havia em Portugal: era um termo técnico da rádio que eu fui buscar pela primeira vez para aplicar aquilo que estava a fazer em cinema. Hoje, a sonoplastia, o “sound design”, foi guindada a uma categoria extraordinária, mas antigamente ninguém lhe ligava, era uma coisa abjecta, era uma coisa menor. Eu fui insultado… não fui insultado, fui gozado: riram-se de mim. “Ah, ah, ah! Sonoplastia? Mas que pretensioso! Que disparate tão grande, isso não existe. Isso não é nada.” Nem se aperceberam da quantidade de bandas de som que esse filme tinha, que tinha uma orquestração de ruídos extraordinária. Não “ouviram”. Um filme meu, aparentemente simples, só com três actores, «As Horas de Maria», até foi o filme que mais trabalho me deu com o som, por causa da diversidade dos muitíssimos “pequenos” sons que tem, entre eles a bengala da ceguinha, da Maria. Cada vez que a bengala toca no chão, ouve-se o barulho que ela faz. Tive de colocar esses barulhos um a um: os da bengala, dos passos dela, os ruídos que ela faz quando toca nos objectos, o do vento, o do armário metálico, e tantos outros… Nesse filme todos os sons são fabricados em estúdio, não há nenhum que seja natural. É tudo posto nos sítios certos, com as intensidades próprias, com mais ou menos efeitos de eco, para criar uma musicalidade, digamos assim. É sempre essa a preocupação. Mas eu, ao longo da minha carreira, apercebi-me que nenhum crítico conseguiu “ouvir” os meus filmes. Hoje, felizmente, há uma nova geração de espectadores (e de jovens críticos) muito treinada nas tecnologias de som postas ao nosso alcance, e as pessoas compreendem a complexidade de som que há nos meus filmes, e as intenções de som que estão por ali, mas naquele tempo ninguém “ouviu”.

DS – Esse filme, «As Horas de Maria», foi polémico. Suscitou reacções bastante encaloradas. Isso faz-me pensar no seguinte: os filmes do António são sempre muito subversivos, mas a subversão é sempre introduzida por indivíduos que ocupam posições instituídas. Nesse filme temos um médico “heterodoxo”, representado pelo João D’Ávila…

AdM – Um médico descrente.

DS – …em «Os Emissários de Khalôm» temos os cientistas, os empresários… Temos o professor de história de «Os Abismos da Meia-Noite»… Ou seja, tem-se sempre a presença de figuras de “autoridade”, entre aspas, que poderiam muito bem estar ao serviço de um determinado status quo, mas que, nos seus filmes, são, afinal, as figuras que trazem a subversão.

AdM – Exacto. Isso é a malandrice.

DS – Também deve ter concorrido para haver muitas reacções encaloradas.

AdM – Algumas das críticas que me fizeram foram as de que eu queria fazer passar uma ideia de autenticidade, utilizando, precisamente, essas figuras de autoridade. De “autoridade”, entre aspas, quer dizer, de autoridade convencional, não é? Em «As Horas de Maria» o médico diz uma frase que os críticos não gostaram nada, que é a de que “eu até sou mais competente como arqueólogo do que como médico”, porque ele dedicava-se ao estudo dos manuscritos antigos. Houve até um crítico que disse que “pois, o que o Macedo quer dizer com aquilo é que aquele médico, como é mais competente como arqueólogo, está a destruir a tradição cristã com autoridade.” Com autoridade “arqueológica” e não apenas como um individuo qualquer que se lembrou de dizer o que disse. E isso vale para as outras personagens todas, no fundo. De facto, é verdade, é essa a ideia. Essa subversão é uma dupla subversão. Não é apenas a subversão do contestatário: é a subversão vinda de dentro da instituição.

DS – Nos seus filmes, mesmo nos mais próximos de um certo realismo, é inegável que há um forte substrato alegórico que, no mínimo, para a percepção do espectador, é sempre cada vez mais elevado a cada novo filme. Mas até que ponto é que não existe, também, um esoterismo subversivo, chamemos-lhe isso? Nos seus filmes é frequente aparecerem, falando numa linguagem de iniciação, “maus iniciados” e “bons profanos”. Pelo menos no meu ponto de vista. Por exemplo… «O Princípio da Sabedoria» pareceu-me ser um filme sobre "anti-iniciação". Ou sobre uma "falsa iniciação", levada a cabo pelos desejos materialistas, e pelo egoísmo mais elementar, encerrados na personagem do arquitecto, interpretada pelo Sinde Filipe. O Jardim é o local por excelência da iniciação, não é?, o adepto vai percorrendo esse local, mais ou menos concêntrico, até ser coroado pela Bem-Aventurança e partilhar do domínio dos deuses, mas no seu filme o iniciado, neste caso seria o arquitecto, “perde a coroa”, entre aspas, ou seja: vai despojando-se até acabar os seus dias como desgraçado "falso iniciado", condenado a pedinchar paliativos materiais. Quem, realmente, beneficia do Jardim são aqueles que procuram, sem segundas intenções, os objectos de suas preocupações – aqueles que, no fundo, dominam, sem terem consciência disso, sequer, a arte da percepção. Eles percepcionam que no Jardim se encontra aquilo que procuram, embora sem terem lá estado, pelo menos a maioria deles. No final, o arquitecto, em vez de ser recebido pelos deuses, é abandonado pelos serventes, naquela cena pesadelar em que ele regressa da vila, à noite – e que é um espelho invertido e irónico do ágape que lhe estaria reservado se ele tivesse tido outra arte de percepcionar. A reunião no final do filme, com todas as personagens, é, nesse sentido, simbólica, porque demonstra que nem tudo estará perdido, se houver verdadeira vontade. Vontade e arte de lá chegarem.

AdM – A sua interpretação deu-me uma visão da anti-iniciação do arquitecto – do "candidato"? – curiosamente inesperada: o Jardim como local mágico de todas as maravilhas possíveis e impossíveis, até à anti-iniciação como uma espécie de cúmplice duma entropia que finge querer negar-se a si própria, múltiplos registos se nos apresentam que, no fundo, simbolizam o infinito reservatório de todas as escolhas que temos pela frente e das quais apenas uma nos serve... e o busílis está em adivinharmos qual.

DS – Agora fiquei a pensar no conceito de "anti-iniciação", pois tudo tem o seu contrário: matéria e anti-matéria, catástrofe e eucatástrofe… Então e iniciação e anti-iniciação?
Mas, a existir, teria de ser uma "verdadeira" anti-iniciação: ou seja, algo que despoje e não algo que acrescente. Embora mestre do seu Jardim, o arquitecto parece imune, e até cego, ao maravilhoso que dele emana, preocupando-se antes com questões completamente materialistas, aquela rotina doentia – uma espécie de Usher mais enérgico, mas não menos mórbido. Ele não percorre o Jardim: deixa que outros o percorram por ele e é esse exercício que o vai tornando num anti-iniciado, até acabar despojado e abandonado no final, num reverso irónico do ágape no patamar dos deuses que seria a recompensa do iniciado perfeito.

AdM – Lembro-me, desde o tempo em que estudava René Guénon, cujos livros absorvi todos, da minha discordância do seu rígido "transcendentalismo metafísico", embora reconhecendo o seu grande contributo para uma correcta sistematização das "ciências esotéricas". Uma das coisas que me irritava era o seu conceito de anti-iniciação, que para Guénon se identificava com os métodos da psicanálise freudiana, mergulho fatal num reino de trevas (o inconsciente) e, por conseguinte, tratar-se-ia de uma "iniciação satânica", ou anti-iniciação. Ora, estou de acordo em considerar que a verdadeira iniciação é algo que acrescenta, ao passo que a anti-iniciação de Guénon não é algo que despoja, mas algo que apenas desvia – e desvia numa trivial convencionalização satânica que, verdadeiramente, não vai ao fundo das coisas, nem sequer pela inversa!

DS – Confesso que não estava a pensar no Guénon quando falei na anti-iniciação, porque ele é um autor algo distante no meu horizonte referencial, confesso, assim como o seu ponto de vista sobre este assunto, essencialmente antagónico da via ortodoxa, não se relaciona em nada com o que imaginei ao ver o seu filme. A minha ideia é mais a de uma força sorvedoura que despoja os indivíduos daquilo que eles já têm: uma espécie de travessia às avessas no Jardim. Saliento também o encontro do arquitecto com o Bom Filósofo, ou o Bom Mago, aquele que tanto recusa ser da "mão esquerda" que até chega a decepá-la. No fundo, o mundo contemporâneo é hostil à iniciação e é altamente conveniente à anti-iniciação: os indivíduos parece que caminham às avessas no Jardim, ou seja parece que começam com tudo – já coroados, não é? – e vão, aos poucos, retrocedendo e despojando-se do pouco que já eram, sem crescerem, sem frutificarem. É assustador pensar nisto, de facto, mas poderá ser um retrato não muito distante da verdade que se observa todos os dias. Por isso… Até essa sua face esotérica, chamemos-lhe isso, para simplificar, é igualmente subversiva.

AdM – É efeito do contraste. É o trabalhar por contrastes. Quero eu dizer… Como é que o ouro se revela “o ouro”? Há uma pedra de contraste que os joalheiros usam, que consegue riscar todos os metais, mas que não risca o ouro… E eu, ao trabalhar na zona do contraste, estou a tentar mostrar que o ouro é ouro. Não sei se me faço entender… Portanto, a minha preocupação ao criar essa ideia de contraste é para revelar o verdadeiro ouro. Revelado, é claro, por esse próprio contraste. Logo na Bíblia percebemos que a Luz vem das Trevas, há logo esse contraste inicial. Vamos lá a ver, quando lemos o «Génesis», esquecemo-nos de que é um livro religioso: aquelas histórias são mitologias paleo-hebraicas, da Idade das Trevas, do princípio dos tempos, de um primitivismo muito grande. A gente diz “é primitivo, é primitivo”… Não, atenção, os primitivos tinham, talvez, um outro tipo de visão, mais límpida, não sei… Nós, hoje, já temos uma visão muito contaminada por muita coisa. E quando eles dizem que das Trevas surgiu a Luz há aí qualquer coisa de profundo, nesse contraste: a Luz que nasce do coração das Trevas. E a ciência, de certa maneira, veio um bocado confirmar isso, com a teoria do "Big Bang", quando diz que do Caos, portanto do Ponto Zero, surgiram as primeiras partículas que foram os fotões! Ora, como é que o raio de um tipo que escreveu a Bíblia sabia que os fotões apareceram primeiro? E, mais ainda, quando ele começa a descrever, também na Bíblia… e não é por ser na Bíblia, porque eu esqueço-me que aquilo é um livro religioso… eu admiro-me é como num livro que podia ser sumério ou asteca, escrito há milhares de anos, houve alguém que escreveu aquilo, alguém que teve a luminosidade de perceber que no primeiro dia surgiu a luz, foi logo no primeiro dia que a divindade disse “Faça-se a luz”, e só no segundo e no terceiro dias é que foram surgindo isto e aquilo, mas o Sol só surgiu no quarto dia! Ora, para aquela gente… um raciocino à “cientista” actual… para aquela gente, o Sol é que era a única fonte de luz, por isso como é que este estúpido disse que a luz surgiu no primeiro dia e, depois, colocou o Sol a surgir no quarto dia? Isto não é um disparate completo? Bom, se nós virmos a cronologia cosmológica dada pela ciência contemporânea e se dividirmos os sete dias em milhões de anos, digamos assim…

DS – São dias alegóricos. Simbólicos.

AdM – São dias alegóricos. E, aí, descobrimos que a nossa galáxia só surgiu no “quarto dia”, entre aspas. Não sei se me faço entender… Os primitivos não lhes chamavam fotões, nem eles sabiam nada disso, mas tinham conhecimento de qualquer coisa, e isso é extremamente interessante. Realmente, é essa ideia de que não há Luz sem Trevas… De que sempre que há luz há sombra… a própria luz provoca sombra… Se não houver o Mal eu não sei o que é o Bem e se não houver o Bem eu não sei o que é o Mal e assim sucessivamente. Começamos a ficar inquietos, porque percebemos que para apreciarmos o Bem tem de haver o Mal – então, isso é horrível. Olhamos à nossa volta e vemos coisas horríveis, guerras, morticínios, genocídios, crimes de todas as ordens, das mais horrorosas. E, depois, a seguir, vemos as flores, os passarinhos, a Primavera, a beleza, um sorriso de criança… Mas será possível que para eu apreciar um sorriso de criança tenho de, a seguir, ver um espectáculo horrível de outras crianças a serem espetadas com baionetas por soldados? Isto é muito esquisito: estas Trevas de um lado e a Luz do outro. Como é que é possível? Mas isso co-existe e eu interrogo-me. É a interrogação dos meus filmes – esse tal esoterismo, que é revelado nesse tal contraste, é, de facto, uma pergunta. No fundo, repare, todos os meus filmes terminam em forma de ponto de interrogação. Eu não faço afirmações dogmáticas. Mesmo quando parece que o filme acaba, e acaba bem, fica sempre uma pergunta. Em «As Horas de Maria», no final, a freira vai-se embora…

DS – A Maria é a alma humana, atrofiada pela Igreja.

AdM – Pela Igreja. E pelo médico… Pelo dois! Pelos dois dogmatismos fanáticos, o religioso e o materialista… Mas pela Igreja, sobretudo. A freira é que a mata, não é? Reza-lhe a extrema-unção e ela morre. Mas morre banhada em luz. Não sei se se vê nesta cópia que foi usada… que a luz aumenta.

DS – Sim.

AdM – Mas termina em ponto de interrogação… Todos os meus filmes terminam dessa forma. Há um em que isso é descarado, é o «Nojo aos Cães», em que no final a palavra FIM aparece mesmo com um ponto de interrogação: “FIM?”. Em «Os Abismos da Meia-Noite», que termina em apoteose, o Grande Contemplador vira-se para o Magister, que estava à espera de ser promovido, e diz-lhe “agora vamos esperar mais uns séculos até ver” e o outro fica com um ar… “Então, espera lá? E, agora, a seguir a isto?... E a próxima rosa?... Terá mais sorte que esta?” Todos os meus filmes terminam com uma pergunta. No fundo, o meu problema é esse: é a Pergunta. Aliás, já o Almada-Negreiros dizia… Cito isso no meu filme sobre o Almada, aquela frase dele, do livro «Pierrot e Arlequim, Personagens de Teatro», em que, no fim, o Anjo da Guarda diz que a tua pergunta está tão bem perguntada, que se pensares mais um bocadinho tens já a resposta a seguir”. A própria resposta está contida na pergunta bem perguntada: o problema não está em responder, o problema está em bem perguntar. E a minha preocupação, nos meus filmes, é bem perguntar. Como é que se faz a pergunta? Pode-se fazer a pergunta malfeita – e se eu fizer a pergunta malfeita obtenho uma resposta estúpida. Ou melhor, uma resposta correcta em relação à pergunta feita, mas acaba por me levar pelo caminho errado. Estou-me a lembrar de um exemplo disso, que aconteceu com o meu filme «A Promessa», que é um exercício de sociologia aplicada… Eu parto da peça do Bernardo Santareno, mas reformulei e reinterpretei a peça e eu próprio fui para o local… fui para os Palheiros da Tocha e para os Palheiros de Mira, aquelas zonas em que me dava jeito que a história se passasse, porque a peça… acho que se passa na Nazaré ou na Póvoa do Varzim… mas eu achei que isso não era suficientemente interessante e decidi mudar a história para os Palheiros da Tocha, para os Palheiros de Mira – que já não existem como se vêem no filme. «A Promessa», hoje, é um filme arqueológico, aliás é um filme precioso: não pelo filme, em si, mas pelo aspecto histórico-documental que apresenta. E eu fui para lá, para aquela região, com o António Casimiro, que era o cenógrafo e o figurinista, mais o director de fotografia, o Elso Roque. Fomos uns meses antes de começar a rodagem e eu levei um gravador e comecei a entrevistar aquela gente para saber como eles agiam e se comportavam. Descobri que havia certas queixas que eles tinham contra o padre… havia várias situações interessantes e eu ia gravando tudo e, ao mesmo tempo, ia observando como é que aquela gente falava, como se vestia, como funcionava. Recolhemos todos uma série de dados, de informações, com as nossas perguntas todas… O António Casimiro, também, para fazer os cenários, porque «A Promessa» tem cenários exteriores, naturais, mas, depois, há muita coisa feita em estúdio. O exterior da casa das personagens principais é uma das casotas da aldeia, mas o interior é feito em estúdio. O moinho, a mesma coisa: a gente construiu lá um moinho, o exterior do moinho, num morro, mas o interior foi feito em estúdio. Isto a propósito da pergunta bem ou mal perguntada… Começámos a preparar tudo, os guarda-roupas todos… Quando chegou a altura de começarmos a filmar voltámos para lá, para os Palheiros da Tocha… Instalámo-nos num hotel na Figueira da Foz, que era, digamos, o hotel mais próximo. Nós tínhamos de ir de carro, todos os dias, da Figueira da Foz para os Palheiros da Tocha. Não era muito longe, cerca de vinte quilómetros, fazia-se bem de carro num quarto de hora, mais ou menos. Logo nos primeiros dias havia uma cena, com a Guida Maria, que fazia de Maria do Mar, a mulher do sacristão, que era também pescador, e na qual ela vinha pela praia fora e ia para casa… Tinha ido buscar água, vinha com uma bilha de água, e subia os degrauzinhos até chegar a casa, que aquelas casas estavam todas assentes em grandes estacas de madeira por causa das marés… E ali ao pé estavam umas figurantes, umas mulheres da aldeia que nós tínhamos contratado. Aliás, a produção já tinha falado com aquela gente toda da aldeia para arranjar figurantes e eles tinham alinhado, eles e elas, todos contentes. Eram pessoas autênticas, que viviam ali, e davam uma figuração realista. Em dado momento, no intervalo da filmagem, quando eu estava a falar com a equipa, põem-se umas velhotas, umas três ou quatro figurantes, a falar umas com as outras e eu comecei a ouvi-las. Estavam a contar a história do filme. Dizia uma para a outra “pois, esta é uma menina que vem de Lisboa, que faz isto assim e encontra não-sei-quem”, enfim, uma história que não tinha nada a ver com o filme. Achei muita graça àquilo: “que ignorantes que são, coitadas também não leram o guião…” Aproximei-me e expliquei-lhes: “Estão muito enganadas. Esta é uma menina cá da aldeia, casada com o sacristão, que é também pescador e vai para o mar…” “Não”, disseram elas, “é uma menina de Lisboa, vê-se perfeitamente. Com uma saia de pregas? Nem pensar. Uma menina da aldeia tem de ter uma saia assim, com um avental… Se ela for solteira, o avental é para cima. Se for casada, tem o avental para baixo e se ela for casada com filhos tem o avental não-sei-quê. O lenço, posto na cabeça, se for solteira, casada, etc. Se o marido estiver fora, já não pode usar o lenço assim, tem de amarrá-lo assado…” E nós começámos a mudar de cor, porque o filme estava todo errado, de uma ponta à outra. E eu disse: “alto, pára já a filmagem toda, pára que estou-me a aperceber que há aqui qualquer coisa que não está bem”. Parou a filmagem. Nesse dia já não filmámos mais. O que é se passava? Fomos ter com uma actriz do teatro amador que era natural da terra e vivia lá, e já tinha colaborado com informações, já era nossa conhecida… Chamámo-la e eu contei-lhe a história. “Como é que vocês fizeram isto?”, pergunta ela. “Então, o António Casimiro esteve cá, fez umas perguntas, informou-se e a roupa que mandámos fazer…” “Não, isto está tudo malfeito, as velhotas é que têm razão.” O avental, o lenço, não-sei-que-mais… O xaile, que se põe por trás dos ombros, tem um significado: se for posto de determinada maneira é porque o marido dela não-sei-quê… Ou ela é viúva ou ela é solteira… Quer dizer…Era uma colecção de códigos que não lhe passa pela cabeça. E nós, aí, percebemos que, naqueles meses de pesquisa antes da rodagem do filme começar, tínhamos feito as perguntas erradas! Quer dizer, tínhamos recebido respostas certas para uma série de perguntas erradas. Repare que isto é extraordinário. E eu disse para comigo “perguntar é mais importante que responder”. No saber perguntar é que está o segredo. Conclusão: não filmámos naquele dia… Perdeu-se o dinheiro todo, porque uma equipa parada está a ganhar… Foi uma noite inteira sem dormir, porque a senhora, simpaticamente, resolveu ir connosco bater às portas da gente toda daquela vizinhança, na aldeia e arredores, a pedir roupas emprestadas para os actores e as actrizes vestirem. E ela explicou-nos os códigos certos, em relação ao argumento do filme. Portanto, perderam-se dois dias de filmagem… tive de refilmar tudo aquilo que já tinha filmado, mas como devia de ser… E as velhotas, quando viram de novo, já disseram: “ah, esta sim, é, realmente, uma menina cá da aldeia que é casada com o sacristão, que está quase a ir para a pesca”… É espantoso que, quando se faz sociologia no local, tem de fazer-se trabalho de campo. Normalmente, cá, faz-se sociologia “de livro”, vai-se consultar os livros dos sociólogos anteriores e continua-se a repetir o que eles já escreveram. O Moisés Espírito Santo sempre me ensinou que para se fazer boa sociologia tem de se fazer trabalho de campo: é preciso sair e ir aos locais, fotografar, e fazer entrevistas e saber fazer as perguntas certas. E eu percebi isso com a rodagem de «A Promessa», é espantoso. Muito antes de cursar sociologia, o que só fiz recentemente.

DS – O antropólogo escocês James George Frazer, autor do «The Golden Bough», orgulhava-se de nunca na vida ter visitado um único dos países sobre os quais escreveu nos seus livros.

AdM – Correu um risco muito grande, mas o problema era dele… Isto é interessante, porque estávamos a falar sobre o esoterismo dos meus filmes… Eles acabam sempre com uma pergunta e a minha grande preocupação – e dúvida – é se fiz as perguntas certas, porque as respostas não sou eu que dou. Alguém as dará. Todo o meu esoterismo, no cinema e na ficção literária que escrevo, é um esoterismo interrogante. Como dizia o Anjo da Guarda do Almada-Negreiros. Esse texto, que ele escreveu em 1924, o «Pierrot e Arlequim, Personagens de Teatro» é muito interessante. A pergunta bem feita é o grande mistério.

DS – E as suas mensagens, as mensagens dos seus filmes, poderiam existir, ser transmitidas, sem o componente esotérico?

AdM – Não, de maneira nenhuma. O esoterismo não está ao serviço da ficção, faz parte da ficção. É um esoterismo intrínseco, independentemente de se acreditar nele ou não. Isso é secundário, até porque a ficção, ela própria, não é para ser acreditada.

DS – Qualquer pessoa pode ver um filme do António, o seu cinema é para todos, e qualquer espectador é livre de fazer a sua interpretação. Porém, não será erróneo dizer que aquilo que o António, de facto, quer transmitir deverá ser perceptível para um número reduzido de pessoas?

AdM – É verdade, tenho consciência disso. Mas é um problema meu, que não sei ultrapassar.

DS – Haverá espectadores que serão atraídos aos filmes do António pelo seu lado fantástico, porque gostam de Fantástico. Haverá outros que, de maneira geral, se interessam por cinema português e é isso que procuram. E haverá outros que, de facto, vão ao encontro da mensagem especial que o António quer transmitir.

AdM – Eventualmente, espero bem que sim. Pelo menos, que haja alguns.

DS – Voltando a obra para o mainstream… Acha que ela sofreu por ter elementos que só alguns indivíduos, pela sua cultura, pela sua sensibilidade, conseguem captar? Ou que, por terem um contacto mais próximo com esses elementos, chegam a eles com mais facilidade?

AdM – Sofre sempre. É evidente que só uma faixa limitada é que compreenderá, não gosto da palavra “compreender”, neste sentido… Há, de facto, do ponto de vista esotérico, uma mensagem, ou uma pergunta, como dizia há pouco, e penso que essa pergunta tem de repercutir no espectador para que este se sinta motivado a responder. É curioso, porque uma das críticas que costumava ser feita aos meus filmes era a de que eu fazia “piscadelas de olho” ao público: isto é, fazia um tipo de cinema que, aparentemente, era “divertido”, entre aspas, para o grande público. Nem que fosse um drama, como o «Domingo à Tarde», ou um filme como o «Chá Forte Com Limão», era visto como um cinema apetecível para o grande público. Como se isso fosse um crime… que não é, porque… Lá está!, o grande público… há do grande público quem seja atraído pela fantasia, outros são atraídos por outra coisa qualquer… Mas, provavelmente, só pouquíssimos é que irão perceber os filmes: isto é, assimilar, aceitar ou entender, mais ou menos, aonde eu quero chegar. Mas, seja como for, aquilo que eu quero dizer está lá e mesmo a faixa maior do público que vai assistir só pelo divertimento – “olha que engraçado, tem aqui um fantasma, que divertido que isto é” – mesmo para esses há qualquer coisa que fica. A ideia é esta: “vamos pôr isto de uma forma o mais acessível possível”, embora incorrendo na ira dos tais críticos que dizem que eu faço piscadelas de olho ao grande público, como se o grande público fosse uma coisa horrível, mas, enfim... O que eu quero dizer está lá. Mais ou menos escondido ou não-escondido… ou não-aparente para um determinado tipo de pessoas e mais aparente para uma faixa mais reduzida… mas o que eu quero dizer – ou perguntar – está lá e fica semeado em todos: mesmo naqueles que vão assistir só para se divertirem um bocado. E as coisas, quando são semeadas, germinam – mais tarde ou mais cedo. Provavelmente, em alguns, poucos, germinarão mais cedo; em outros, poderão germinar mais tarde – ou até nunca germinar. Essa é que é a minha preocupação. Não estou muito preocupado com o tipo de receptividade que se possa vir a ter, porque sei que se acabará por ter, mais tarde ou mais cedo. Aliás, como está a haver, curiosamente, quarenta, trinta anos depois! Na altura foi um descalabro completo. Quarenta ou trinta anos depois, está-se a ver agora um certo tipo de público a aderir… Não sei se está a aderir pelo melhor lado ou pelo pior lado… não me preocupo…

DS – Vão ao caminho.

AdM – Vão ao caminho. Ou seja, aparentemente, eu tinha razão.

(Continua.)