Segue-se a segunda parte da entrevista extensiva e exclusiva que fiz ao cineasta e escritor António de Macedo. Continua-se a desvendar os segredos (alguns) por trás da obra de Macedo, assim como a filosofar sobre muitos outros assuntos. A conversa continuará na terceira parte.
Entrevista com António de Macedo: 2ª Parte
David Soares – Lá
está, mas isso inscreve-se no que eu disse há pouco: de o seu experimentalismo
estar ao serviço da voz autoral e do tom do filme.
António de Macedo –
Como os actores começam a conversar naturalmente entre eles…
DS – Já o espectador
está enlevado na narrativa…
AdM – Já está. Já foi
apanhado na rede. Já não se ri, porque, entretanto, aquilo entrou “de
pantufas”, ele não dá por isso. Isso é um aspecto. O segundo aspecto… Percebi,
também, que os actores não podiam… Ou melhor, que eu não deveria captar o som
directo, porque eles representavam como se estivessem no teatro. Representavam
assim, porque os actores que a gente tinha eram de teatro. Hoje, com a
proliferação das telenovelas e independentemente dos seus óbvios defeitos,
surgiu uma geração de actores jovens mais desinibidos diante das câmaras, sem
os tiques inerentes à teatralidade. Mas naquele tempo não era assim, o “actor
de teatro” só raramente fazia cinema. Ora, o actor de teatro projecta a voz.
Como dizem os próprios actores de teatro, a voz pode ser colocada na cabeça,
pode ser colocada no peito ou pode ser colocada no estômago. Quando a voz é
colocada na cabeça é para ser atirada para a última fila da plateia. Quando a
voz é posta no estômago cria-se aquela voz íntima, não é?, que eles usam para
falar ao pé uns dos outros. Isto em teatro funciona, dentro de certos limites,
mas não funciona em cinema. Em cinema, a voz… a voz não é para estar na cabeça,
nem no peito, nem no estômago — a voz tem de estar “no microfone”. E, então, eu
dizia aos actores… até por uma questão de expressão visual… Se a pessoa fala
mais alto a própria expressão visual acompanha-a, se a pessoa coloca a voz mais
baixa, e fala de uma maneira íntima, a expressão visual também a acompanha. É
preciso ter cuidado com isso, portanto, todos os meus filmes são dobrados.
Tomei essa decisão: “vou dobrar os meus
filmes todos”.
DS – Isso foi algo
que, na altura, também concorreu para a tal desapreciação crítica dos seus
filmes? Porque havia um certo preconceito contra…
AdM – Contra a
dobragem.
DS – Uma espécie de
cartilha Dogma “avant la lettre”…
AdM – Exactamente.
DS – Tudo o que não
fosse captado em directo era muito criticado.
AdM – Era mal visto,
exactamente. Até porque depois dos bons filmes dos anos 30 com o Vasco Santana,
a Beatriz Costa, o António Silva, o Ribeirinho, a Maria Matos… eram todos em
som directo porque essa plêiade de actores era muito boa, e eles aguentavam a
representação em som directo muito bem… mas depois vieram os “maus” filmes
“sérios” dos anos 40 e 50, e até 60, com actores de menor envergadura, e esses
filmes passaram a ser dobrados porque saía mais barato durante as filmagens,
filmar sem a sobrecarga das aparelhagens de captação de som, mas eram muito mal
dobrados, a boca dos actores mexia por um lado e o som saía por outro, e era
insuportável de se ver. E eu fui em contra-corrente, decidi dobrar os meus
filmes mas rodeei-me de cuidados especiais, como por exemplo ter sempre o
cuidado de, durante as dobragens, colocar as vozes dos actores nos tons certos
e nos sítios certos… Nas dobragens é mais fácil controlar as vozes dos actores,
porque eu, quando estou a filmá-los, eles estão no cenário, estão a
representar, falam e é difícil estar sempre em cima deles para controlar as
vozes. Eu não estava com essa preocupação, porque dizia-lhes o seguinte: “vocês falem sempre em voz baixa”. Mas
eles queriam que eu os ouvisse… Ora, eu era o realizador, estava ao pé da
câmara, no limite do plateau, e eles,
os actores, estavam em pleno plateau,
um bocado mais longe… E eu respondia-lhes: “mas
eu não vos quero ouvir”. E eles: “então,
como é que sabes se a gente está a fazer bem?” E eu: “basta-me ver o vossos movimentos e já sei se estão a fazer bem ou não”.
Isso fazia-lhes muita confusão à cabeça. Eles queriam representar para mim:
como não tinham um público, estavam habituados à plateia e para eles, ali, a
plateia era o realizador. “Sim, estou
aqui longe, atrás da câmara”, dizia-lhes, “não se preocupem comigo. Vocês têm aí ao pé as pessoas com quem estão
a contracenar, estão mesmo aí junto de vocês, têm de falar para elas”. O
truque que eu utilizava era dizer aos meus actores: “Vocês falem da seguinte maneira, façam de conta que está aqui mesmo ao
lado um bebé a dormir. Vocês têm de falar de maneira que os vossos colegas vos ouçam,
mas sem acordarem o bebé.” E este truque funcionou. Eles começavam a
representar de uma maneira muito mais… em “underacting”…
DS – Sem caricaturar.
AdM – Sem
caricaturar. Que é a tendência do actor de teatro da velha escola.
DS – No teatro tem de
exagerar-se ou o público não se apercebe.
AdM – Não se
apercebe, tem de ser tudo muito marcado. O próprio teatro é um exagero, tudo
aquilo é convencional, por isso, aí, está tudo certo. Mas em cinema, não. Depois,
quando chegava à dobragem é que eu os controlava. Punha-lhes o microfone mesmo
à frente, colocava-lhes a voz mesmo onde eu queria.
DS – Para eles deve
ter sido algo um bocado surrealista.
AdM – Foi um bocado
surrealista, mas adaptaram-se facilmente. Curiosamente, nunca tive problemas
com os meus actores. Todos eles perceberam, perfeitamente, e adaptaram-se. Até
houve um actor do «Chá Forte Com Limão»…
DS – O actor francês
que foi dobrado por um português?
AdM – O Jean-Pierre
Cassel? Não, não foi ele.
DS – Dá-me ideia que
há partes em que aquilo que o Cassel está a pronunciar equivale ao texto em
português. Ele representou em português?
AdM – Não.
Representou em francês. Traduz-se o guião para o actor falar em francês, porque
se ele falar em português, como o actor não é português, perde a naturalidade e
fala um português com o ritmo todo trocado, ficam as sílabas fora dos sítios, e
o resultado é muito mau. Portanto, o actor francês fala em francês. Depois, vem
um especialista… Sobretudo, em França faz-se isto muito bem… Vem um
especialista que vê quais são as labiais, quer dizer os pontos de contacto,
porque as labiais permutam-se: o “b” de “bota, o “m” de “Mafra” e o “p” de
“palhaço”, têm todos a mesma colocação labial. Por isso, torna-se fácil substituir
palavras. Num texto falado em francês, o especialista procura as labiais, que
são os pontos de contacto, são os vários “ganchos”, e, depois, limita-se a
colocar labiais portuguesas nesses sítios, sejam elas quais forem. Repare: se
ficar à frente de um espelho e articular mudo a palavra “pai” estando por cima
o som da palavra “mãe” verá que os movimentos dos lábios são iguais. O “p” e o
“m” são labiais e, como o são, tanto faz ouvir um como ou outro. A expressão
visual é a mesma, tanto faz pôr o som de “pai” como o som de “mãe”, portanto
eu, na dobragem, posso fazer a aldrabice que quiser. E é assim que se faz. Mas
estava a dizer que havia um actor, que vinha do teatro e que tinha a tendência
para colocar a voz na cabeça, digamos assim… E quando fomos dobrar o filme… Ele
até a falar, naturalmente, é assim. Eu disse-lhe: “estás com a voz muito alta e eu não quero isso”. Expliquei-lhe
como queria e ele respondeu: “Ah, já sei
o que queres. Que chatice, isso agora obriga-me a uma preparação… Só te peço um
favor. Vou pedir-te meia-hora. Arranja-me aí um sítio sossegado para eu fazer
uma preparação de treino de voz”. Disse-lhe para ele colocar a voz no
estômago, o mais abaixo possível. “Repara”,
disse-lhe, “estás a fazer um papel
romântico, de D. Juan apaixonado, estás a interessar-te pela rapariga… Se pões
uma vozinha muito alta ninguém acredita em ti, ninguém te leva a sério”.
Ele fechou-se durante meia-hora num cubículo na Nacional Filmes, lá onde ficava
o estúdio de som, e, no final, apareceu com uma voz óptima, parecia mesmo a voz
de um galã. E eu fiz a dobragem impecavelmente. Ou seja, isto é só para dizer
que todas estas partes técnicas (desde a direcção de actores), ao serviço de um
determinado tipo de intenção, tudo isso foi, realmente, conseguido ao longo de
anos de experiência e sempre com a preocupação de obter o resultado mais eficaz
para o ponto de vista do espectador. Aquilo que, desse ponto de vista, fosse
mais eficaz para transmitir a sensibilidade que eu queria que fosse
transmitida, fosse num mundo fantástico, fosse num mundo real. E isso obtém-se
através da tecnologia. Foi por isso que eu tive de aprender como funcionava
muita tecnologia, em termos de cinema. Daí os meus filmes terem um aspecto
técnico muito apurado, tão apurado quanto possível dentro das limitações que
nós temos. Sempre entendi que o som é uma componente fundamental do cinema.
DS – E uma que, na
maioria dos filmes portugueses…
AdM – É desprezada.
DS – É desprezada. A
maioria dos filmes tem um som miserável.
AdM – Tem um som miserável.
Parece que os realizadores são surdos…
DS – Será uma
consequência da hegemonia do tal som directo?
AdM – Eventualmente,
será… Penso que eles serão mais visuais que auditivos. Até porque, repare…
DS – Mas o António
tem formação musical, logo tem uma sensibilidade diferente.
AdM – Tenho,
exactamente. Isso tem muita importância. Reconheço-o, perfeitamente. Aliás, o
meu filho, o António de Sousa Dias, que é músico – formou-se em música, é
musicólogo e compositor, que sempre foi a vocação dele, desde muito novo – e
trabalhou comigo durante muitos anos, diz que aprendeu muito comigo, e eu, mais
tarde e com o trabalho conjunto, aprendi muito com ele… Temos falado muito
sobre isso. O nosso trabalho sempre foi de grande cumplicidade. Ele começou por
fazer alguns filmes comigo, para a televisão, pequenos documentários, e o
primeiro filme de longa-metragem que ele fez comigo foi «Os Abismos da Meia-Noite», que tem uma qualidade de som
extraordinária. Ele fez a música de fundo e os efeitos sonoros que se ouvem no
filme, que foi uma coisa que ele delirou em fazer, para a criatividade dele foi
excelente. E isso tem a ver, exactamente, com a preocupação que eu sempre tive
– e, felizmente, encontrei da parte dele uma colaboração fabulosa – sobre a
importância que o som tem no cinema. Os meus colegas vêm todos de uma geração…
os meus colegas do meu tempo, porque os mais jovens já têm outra visão,
diferente… mas os realizadores da geração de cinquenta, sessenta, até setenta,
ainda vinham com a velha escola de que o sonoro é uma deformação, uma
deficiência do mudo. O cinema mudo é que era o verdadeiro cinema.
DS – Ainda estavam
arreigados a essa visão?
AdM – Estavam. Havia
uma frase que eles diziam: “o cinema
quanto mais mudo, e mais preto e branco, melhor”. O cinema a cores era mal
visto. Você não faz ideia da dificuldade que eu tive para tentar impor os meus
filmes a cores aqui em Portugal. Embora já cá houvesse alguns filmes a cores…
Uns documentários com uma cor muito “ranhosa”… E eu, pela primeira vez, comecei
a trabalhar a cor em cinema como uma forma de arte. As filtragens que se usavam
nas étalonnages dos filmes… aproveitei-as
para criar novos cromatismos, alguns até aberrantes… comecei a trabalhar isso
como uma forma de arte. Tive a sorte de encontrar uma colaboradora excelente,
que era a Teresa Ferreira, no laboratório da Ulyssea Filme. Ela tinha formação
artística, estudara na Escola António Arroio, e, então, percebeu o que eu
queria fazer e entusiasmou-se. Mas, realmente, havia esse preconceito contra o som
e a cor: quanto mais mudo e preto e branco, melhor. Havia até um famoso teórico
francês, muito citado na altura pelos meus colegas, que dizia: “Olhemos para o fotograma. A imagem no
filme, correspondente ao fotograma, tem uma certa área, a pista de som é um
milímetrozinho marginal. A importância do som, num filme, deve estar em
proporção”. A imagem ocupa oito ou nove décimos de um fotograma e só um
décimo é que é ocupado pelo som. Eu dizia que a relação tinha de ser, no
mínimo, de cinquenta para cinquenta. Tinha de haver um equilíbrio. Isto criou,
naturalmente, um mal-estar. Mas eu apercebi-me que muita gente nem sequer ouvia
os meus filmes… Quando eu digo “ouvia”,
quero dizer que não percebia o experimentalismo acústico, sonoro, que eu estava
a fazer. Quando fiz, por exemplo, o «Domingo
à Tarde»… Este filme não tem música de fundo, aliás só tem uma música, na
cena do cabaret, que é uma música de cena. Não é de fundo. As pessoas dançam,
ouve-se a música, ela faz parte da cena… Lá está, é um filme sem música de
fundo… Tive de ter um cuidado muito grande com os chamados ruídos e efeitos de
som, tive de orquestrar os sons. A diferença entre a música de fundo e a música
de cena é que esta ouve-se quando algo em cena está a produzi-la, uma
orquestra, um gira-discos, etc., mas a de fundo é a chamada “orquestra
invisível”. Ninguém sabe quem a toca, nem de onde vem… E eu decidi que não
queria música de fundo no meu primeiro filme: decidi que iria orquestrar os
ruídos. E toda a ambiência sonora que o filme tem, toda a sua “música de
fundo”, entre aspas, são ruídos naturais, hospitalares, as máquinas dos
raios-X… Todos esses ruídos são orquestrados. A partir daí, comecei a perceber
que tinha de fazer partituras com os ruídos. Com a Banda de Ruídos A, a Banda
de Ruídos B, a Banda de Ruídos C, a Banda de Ruídos Não-sei-quê, com os passos,
as vozes, tudo tinha de estar orquestrado. Tinha de se fazer, como se dizia na
rádio nessa época, uma sonoplastia. Aquilo que hoje, em cinema, se chama “sound design” e que, cá em Portugal,
não se fazia a mais pequena ideia do que era. Quando realizei o «Sete Balas Para Selma», o meu segundo
filme, que já tem música de fundo, digamos assim, a sonoplastia que eu fiz
tinha dezassete ou dezoito bandas de som: era de tal maneira que foi dos meus
filmes mais complexos em matéria de bandas de som, na mistura final tinha uma
orquestração de sons diferentes que nunca mais acabava. E eu, depois de ter
esse trabalho todo, pus no fim, no genérico, “montagem e sonoplastia de António de Macedo”. Você não faz ideia
do que eu fui gozado! Diziam os meus colegas: “Sonoplastia? Mas que pretensioso! O que é isso? Sonoplastia é na
rádio, fazem para lá uns barulhos…” Por isso, quando eu dizia “eu faço sonoplastia nos meus filmes”,
era um nome que no cinema nem sequer havia em Portugal: era um termo técnico da
rádio que eu fui buscar pela primeira vez para aplicar aquilo que estava a
fazer em cinema. Hoje, a sonoplastia, o “sound
design”, foi guindada a uma categoria extraordinária, mas antigamente
ninguém lhe ligava, era uma coisa abjecta, era uma coisa menor. Eu fui
insultado… não fui insultado, fui gozado: riram-se de mim. “Ah, ah, ah! Sonoplastia? Mas que pretensioso! Que disparate tão
grande, isso não existe. Isso não é nada.” Nem se aperceberam da quantidade
de bandas de som que esse filme tinha, que tinha uma orquestração de ruídos
extraordinária. Não “ouviram”. Um filme meu, aparentemente simples, só com três
actores, «As Horas de Maria», até foi
o filme que mais trabalho me deu com o som, por causa da diversidade dos
muitíssimos “pequenos” sons que tem, entre eles a bengala da ceguinha, da
Maria. Cada vez que a bengala toca no chão, ouve-se o barulho que ela faz. Tive
de colocar esses barulhos um a um: os da bengala, dos passos dela, os ruídos
que ela faz quando toca nos objectos, o do vento, o do armário metálico, e
tantos outros… Nesse filme todos os sons são fabricados em estúdio, não há
nenhum que seja natural. É tudo posto nos sítios certos, com as intensidades
próprias, com mais ou menos efeitos de eco, para criar uma musicalidade,
digamos assim. É sempre essa a preocupação. Mas eu, ao longo da minha carreira,
apercebi-me que nenhum crítico conseguiu “ouvir” os meus filmes. Hoje, felizmente,
há uma nova geração de espectadores (e de jovens críticos) muito treinada nas
tecnologias de som postas ao nosso alcance, e as pessoas compreendem a complexidade
de som que há nos meus filmes, e as intenções de som que estão por ali, mas
naquele tempo ninguém “ouviu”.
DS – Esse filme, «As Horas de Maria», foi polémico.
Suscitou reacções bastante encaloradas. Isso faz-me pensar no seguinte: os
filmes do António são sempre muito subversivos, mas a subversão é sempre
introduzida por indivíduos que ocupam posições instituídas. Nesse filme temos
um médico “heterodoxo”, representado pelo João D’Ávila…
AdM – Um médico
descrente.
DS – …em «Os Emissários de Khalôm» temos os
cientistas, os empresários… Temos o professor de história de «Os Abismos da Meia-Noite»… Ou seja,
tem-se sempre a presença de figuras de “autoridade”, entre aspas, que poderiam
muito bem estar ao serviço de um determinado status quo, mas que, nos seus filmes, são, afinal, as figuras que
trazem a subversão.
AdM – Exacto. Isso é
a malandrice.
DS – Também deve ter
concorrido para haver muitas reacções encaloradas.
AdM – Algumas das
críticas que me fizeram foram as de que eu queria fazer passar uma ideia de
autenticidade, utilizando, precisamente, essas figuras de autoridade. De
“autoridade”, entre aspas, quer dizer, de autoridade convencional, não é? Em «As Horas de Maria» o médico diz uma
frase que os críticos não gostaram nada, que é a de que “eu até sou mais competente como arqueólogo do que como médico”,
porque ele dedicava-se ao estudo dos manuscritos antigos. Houve até um crítico
que disse que “pois, o que o Macedo quer
dizer com aquilo é que aquele médico, como é mais competente como arqueólogo,
está a destruir a tradição cristã com autoridade.” Com autoridade
“arqueológica” e não apenas como um individuo qualquer que se lembrou de dizer
o que disse. E isso vale para as outras personagens todas, no fundo. De facto,
é verdade, é essa a ideia. Essa subversão é uma dupla subversão. Não é apenas a
subversão do contestatário: é a subversão vinda de dentro da instituição.
DS – Nos seus filmes,
mesmo nos mais próximos de um certo realismo, é inegável que há um forte
substrato alegórico que, no mínimo, para a percepção do espectador, é sempre
cada vez mais elevado a cada novo filme. Mas até que ponto é que não existe,
também, um esoterismo subversivo, chamemos-lhe isso? Nos seus filmes é
frequente aparecerem, falando numa linguagem de iniciação, “maus iniciados” e
“bons profanos”. Pelo menos no meu ponto de vista. Por exemplo… «O Princípio da Sabedoria» pareceu-me
ser um filme sobre "anti-iniciação". Ou sobre uma "falsa
iniciação", levada a cabo pelos desejos materialistas, e pelo egoísmo mais
elementar, encerrados na personagem do arquitecto, interpretada pelo Sinde
Filipe. O Jardim é o local por excelência da iniciação, não é?, o adepto vai
percorrendo esse local, mais ou menos concêntrico, até ser coroado pela
Bem-Aventurança e partilhar do domínio dos deuses, mas no seu filme o iniciado,
neste caso seria o arquitecto, “perde a coroa”, entre aspas, ou seja: vai
despojando-se até acabar os seus dias como desgraçado "falso
iniciado", condenado a pedinchar paliativos materiais. Quem, realmente, beneficia
do Jardim são aqueles que procuram, sem segundas intenções, os objectos de suas
preocupações – aqueles que, no fundo, dominam, sem terem consciência disso,
sequer, a arte da percepção. Eles percepcionam que no Jardim se encontra aquilo
que procuram, embora sem terem lá estado, pelo menos a maioria deles. No final,
o arquitecto, em vez de ser recebido pelos deuses, é abandonado pelos
serventes, naquela cena pesadelar em que ele regressa da vila, à noite – e que
é um espelho invertido e irónico do ágape que lhe estaria reservado se ele tivesse
tido outra arte de percepcionar. A reunião no final do filme, com todas as
personagens, é, nesse sentido, simbólica, porque demonstra que nem tudo estará
perdido, se houver verdadeira vontade. Vontade e arte de lá chegarem.
AdM – A sua
interpretação deu-me uma visão da anti-iniciação do arquitecto – do
"candidato"? – curiosamente inesperada: o Jardim como local mágico de
todas as maravilhas possíveis e impossíveis, até à anti-iniciação como uma
espécie de cúmplice duma entropia que finge querer negar-se a si própria,
múltiplos registos se nos apresentam que, no fundo, simbolizam o infinito
reservatório de todas as escolhas que temos pela frente e das quais apenas uma
nos serve... e o busílis está em adivinharmos qual.
DS – Agora fiquei a
pensar no conceito de "anti-iniciação", pois tudo tem o seu
contrário: matéria e anti-matéria, catástrofe e eucatástrofe… Então e iniciação
e anti-iniciação?
Mas, a existir, teria de ser uma "verdadeira" anti-iniciação: ou seja, algo que despoje e não algo que acrescente. Embora mestre do seu Jardim, o arquitecto parece imune, e até cego, ao maravilhoso que dele emana, preocupando-se antes com questões completamente materialistas, aquela rotina doentia – uma espécie de Usher mais enérgico, mas não menos mórbido. Ele não percorre o Jardim: deixa que outros o percorram por ele e é esse exercício que o vai tornando num anti-iniciado, até acabar despojado e abandonado no final, num reverso irónico do ágape no patamar dos deuses que seria a recompensa do iniciado perfeito.
Mas, a existir, teria de ser uma "verdadeira" anti-iniciação: ou seja, algo que despoje e não algo que acrescente. Embora mestre do seu Jardim, o arquitecto parece imune, e até cego, ao maravilhoso que dele emana, preocupando-se antes com questões completamente materialistas, aquela rotina doentia – uma espécie de Usher mais enérgico, mas não menos mórbido. Ele não percorre o Jardim: deixa que outros o percorram por ele e é esse exercício que o vai tornando num anti-iniciado, até acabar despojado e abandonado no final, num reverso irónico do ágape no patamar dos deuses que seria a recompensa do iniciado perfeito.
AdM – Lembro-me,
desde o tempo em que estudava René Guénon, cujos livros absorvi todos, da minha
discordância do seu rígido "transcendentalismo metafísico", embora
reconhecendo o seu grande contributo para uma correcta sistematização das
"ciências esotéricas". Uma das coisas que me irritava era o seu
conceito de anti-iniciação, que para Guénon se identificava com os métodos da
psicanálise freudiana, mergulho fatal num reino de trevas (o inconsciente) e, por
conseguinte, tratar-se-ia de uma "iniciação satânica", ou
anti-iniciação. Ora, estou de acordo em considerar que a verdadeira iniciação é
algo que acrescenta, ao passo que a anti-iniciação de Guénon não é algo
que despoja, mas algo que apenas desvia – e desvia numa trivial
convencionalização satânica que, verdadeiramente, não vai ao fundo das coisas,
nem sequer pela inversa!
DS – Confesso que não
estava a pensar no Guénon quando falei na anti-iniciação, porque ele é um autor
algo distante no meu horizonte referencial, confesso, assim como o seu ponto de
vista sobre este assunto, essencialmente antagónico da via ortodoxa, não se
relaciona em nada com o que imaginei ao ver o seu filme. A minha ideia é mais a
de uma força sorvedoura que despoja os indivíduos daquilo que eles já têm: uma
espécie de travessia às avessas no Jardim. Saliento também o encontro do
arquitecto com o Bom Filósofo, ou o Bom Mago, aquele que tanto recusa ser da
"mão esquerda" que até chega a decepá-la. No fundo, o mundo
contemporâneo é hostil à iniciação e é altamente conveniente à anti-iniciação:
os indivíduos parece que caminham às avessas no Jardim, ou seja parece que
começam com tudo – já coroados, não é? – e vão, aos poucos, retrocedendo e
despojando-se do pouco que já eram, sem crescerem, sem frutificarem. É
assustador pensar nisto, de facto, mas poderá ser um retrato não muito distante
da verdade que se observa todos os dias. Por isso… Até essa sua face esotérica,
chamemos-lhe isso, para simplificar, é igualmente subversiva.
AdM – É efeito do
contraste. É o trabalhar por contrastes. Quero eu dizer… Como é que o ouro se
revela “o ouro”? Há uma pedra de contraste que os joalheiros usam, que consegue
riscar todos os metais, mas que não risca o ouro… E eu, ao trabalhar na zona do
contraste, estou a tentar mostrar que o ouro é ouro. Não sei se me faço
entender… Portanto, a minha preocupação ao criar essa ideia de contraste é para
revelar o verdadeiro ouro. Revelado, é claro, por esse próprio contraste. Logo
na Bíblia percebemos que a Luz vem das Trevas, há logo esse contraste inicial.
Vamos lá a ver, quando lemos o «Génesis»,
esquecemo-nos de que é um livro religioso: aquelas histórias são mitologias
paleo-hebraicas, da Idade das Trevas, do princípio dos tempos, de um
primitivismo muito grande. A gente diz “é
primitivo, é primitivo”… Não, atenção, os primitivos tinham, talvez, um
outro tipo de visão, mais límpida, não sei… Nós, hoje, já temos uma visão muito
contaminada por muita coisa. E quando eles dizem que das Trevas surgiu a Luz há
aí qualquer coisa de profundo, nesse contraste: a Luz que nasce do coração das
Trevas. E a ciência, de certa maneira, veio um bocado confirmar isso, com a
teoria do "Big Bang", quando diz que do Caos, portanto do Ponto Zero,
surgiram as primeiras partículas que foram os fotões! Ora, como é que o raio de
um tipo que escreveu a Bíblia sabia que os fotões apareceram primeiro? E, mais
ainda, quando ele começa a descrever, também na Bíblia… e não é por ser na
Bíblia, porque eu esqueço-me que aquilo é um livro religioso… eu admiro-me é
como num livro que podia ser sumério ou asteca, escrito há milhares de anos,
houve alguém que escreveu aquilo, alguém que teve a luminosidade de perceber
que no primeiro dia surgiu a luz, foi logo no primeiro dia que a divindade
disse “Faça-se a luz”, e só no segundo
e no terceiro dias é que foram surgindo isto e aquilo, mas o Sol só surgiu no
quarto dia! Ora, para aquela gente… um raciocino à “cientista” actual… para
aquela gente, o Sol é que era a única fonte de luz, por isso como é que este
estúpido disse que a luz surgiu no primeiro dia e, depois, colocou o Sol a
surgir no quarto dia? Isto não é um disparate completo? Bom, se nós virmos a
cronologia cosmológica dada pela ciência contemporânea e se dividirmos os sete
dias em milhões de anos, digamos assim…
DS – São dias
alegóricos. Simbólicos.
AdM – São dias
alegóricos. E, aí, descobrimos que a nossa galáxia só surgiu no “quarto dia”,
entre aspas. Não sei se me faço entender… Os primitivos não lhes chamavam
fotões, nem eles sabiam nada disso, mas tinham conhecimento de qualquer coisa,
e isso é extremamente interessante. Realmente, é essa ideia de que não há Luz
sem Trevas… De que sempre que há luz há sombra… a própria luz provoca sombra…
Se não houver o Mal eu não sei o que é o Bem e se não houver o Bem eu não sei o
que é o Mal e assim sucessivamente. Começamos a ficar inquietos, porque
percebemos que para apreciarmos o Bem tem de haver o Mal – então, isso é horrível.
Olhamos à nossa volta e vemos coisas horríveis, guerras, morticínios,
genocídios, crimes de todas as ordens, das mais horrorosas. E, depois, a
seguir, vemos as flores, os passarinhos, a Primavera, a beleza, um sorriso de
criança… Mas será possível que para eu apreciar um sorriso de criança tenho de,
a seguir, ver um espectáculo horrível de outras crianças a serem espetadas com
baionetas por soldados? Isto é muito esquisito: estas Trevas de um lado e a Luz
do outro. Como é que é possível? Mas isso co-existe e eu interrogo-me. É a
interrogação dos meus filmes – esse tal esoterismo, que é revelado nesse tal
contraste, é, de facto, uma pergunta. No fundo, repare, todos os meus filmes
terminam em forma de ponto de interrogação. Eu não faço afirmações dogmáticas.
Mesmo quando parece que o filme acaba, e acaba bem, fica sempre uma pergunta.
Em «As Horas de Maria», no final, a
freira vai-se embora…
DS – A Maria é a alma
humana, atrofiada pela Igreja.
AdM – Pela Igreja. E
pelo médico… Pelo dois! Pelos dois dogmatismos fanáticos, o religioso e o
materialista… Mas pela Igreja, sobretudo. A freira é que a mata, não é?
Reza-lhe a extrema-unção e ela morre. Mas morre banhada em luz. Não sei se se
vê nesta cópia que foi usada… que a luz aumenta.
DS – Sim.
AdM – Mas termina em
ponto de interrogação… Todos os meus filmes terminam dessa forma. Há um em que
isso é descarado, é o «Nojo aos Cães»,
em que no final a palavra FIM aparece mesmo com um ponto de interrogação:
“FIM?”. Em «Os Abismos da Meia-Noite»,
que termina em apoteose, o Grande Contemplador vira-se para o Magister, que
estava à espera de ser promovido, e diz-lhe “agora
vamos esperar mais uns séculos até ver” e o outro fica com um ar… “Então, espera lá? E, agora, a seguir a
isto?... E a próxima rosa?... Terá mais sorte que esta?” Todos os meus
filmes terminam com uma pergunta. No fundo, o meu problema é esse: é a
Pergunta. Aliás, já o Almada-Negreiros dizia… Cito isso no meu filme sobre o
Almada, aquela frase dele, do livro «Pierrot
e Arlequim, Personagens de Teatro», em que, no fim, o Anjo da Guarda diz
que “a tua pergunta está
tão bem perguntada, que se pensares mais um bocadinho tens já a resposta a
seguir”. A própria resposta está contida na pergunta
bem perguntada: o problema não está em responder, o problema está em bem
perguntar. E a minha preocupação, nos meus filmes, é bem perguntar. Como é que
se faz a pergunta? Pode-se fazer a pergunta malfeita – e se eu fizer a pergunta
malfeita obtenho uma resposta estúpida. Ou melhor, uma resposta correcta em
relação à pergunta feita, mas acaba por me levar pelo caminho errado. Estou-me
a lembrar de um exemplo disso, que aconteceu com o meu filme «A Promessa», que é um exercício de
sociologia aplicada… Eu parto da peça do Bernardo Santareno, mas reformulei
e reinterpretei a peça e eu próprio fui para o local… fui para os Palheiros da
Tocha e para os Palheiros de Mira, aquelas zonas em que me dava jeito que a
história se passasse, porque a peça… acho que se passa na Nazaré ou na Póvoa do
Varzim… mas eu achei que isso não era suficientemente interessante e decidi
mudar a história para os Palheiros da Tocha, para os Palheiros de Mira – que já
não existem como se vêem no filme. «A
Promessa», hoje, é um filme arqueológico, aliás é um filme precioso: não
pelo filme, em si, mas pelo aspecto histórico-documental que apresenta. E eu
fui para lá, para aquela região, com o António Casimiro, que era o cenógrafo e
o figurinista, mais o director de fotografia, o Elso Roque. Fomos uns meses
antes de começar a rodagem e eu levei um gravador e comecei a entrevistar
aquela gente para saber como eles agiam e se comportavam. Descobri que havia
certas queixas que eles tinham contra o padre… havia várias situações
interessantes e eu ia gravando tudo e, ao mesmo tempo, ia observando como é que
aquela gente falava, como se vestia, como funcionava. Recolhemos todos uma
série de dados, de informações, com as nossas perguntas todas… O António
Casimiro, também, para fazer os cenários, porque «A Promessa» tem cenários exteriores, naturais, mas, depois, há
muita coisa feita em estúdio. O exterior da casa das personagens principais é
uma das casotas da aldeia, mas o interior é feito em estúdio. O moinho, a mesma
coisa: a gente construiu lá um moinho, o exterior do moinho, num morro, mas o
interior foi feito em estúdio. Isto a propósito da pergunta bem ou mal
perguntada… Começámos a preparar tudo, os guarda-roupas todos… Quando chegou a
altura de começarmos a filmar voltámos para lá, para os Palheiros da Tocha…
Instalámo-nos num hotel na Figueira da Foz, que era, digamos, o hotel mais
próximo. Nós tínhamos de ir de carro, todos os dias, da Figueira da Foz para os
Palheiros da Tocha. Não era muito longe, cerca de vinte quilómetros, fazia-se
bem de carro num quarto de hora, mais ou menos. Logo nos primeiros dias havia
uma cena, com a Guida Maria, que fazia de Maria do Mar, a mulher do sacristão, que
era também pescador, e na qual ela vinha pela praia fora e ia para casa… Tinha
ido buscar água, vinha com uma bilha de água, e subia os degrauzinhos até
chegar a casa, que aquelas casas estavam todas assentes em grandes estacas de
madeira por causa das marés… E ali ao pé estavam umas figurantes, umas mulheres
da aldeia que nós tínhamos contratado. Aliás, a produção já tinha falado com
aquela gente toda da aldeia para arranjar figurantes e eles tinham alinhado, eles
e elas, todos contentes. Eram pessoas autênticas, que viviam ali, e davam uma
figuração realista. Em dado momento, no intervalo da filmagem, quando eu estava
a falar com a equipa, põem-se umas velhotas, umas três ou quatro figurantes, a
falar umas com as outras e eu comecei a ouvi-las. Estavam a contar a história
do filme. Dizia uma para a outra “pois,
esta é uma menina que vem de Lisboa, que faz isto assim e encontra
não-sei-quem”, enfim, uma história que não tinha nada a ver com o filme.
Achei muita graça àquilo: “que ignorantes
que são, coitadas também não leram o guião…” Aproximei-me e expliquei-lhes:
“Estão muito enganadas. Esta é uma menina
cá da aldeia, casada com o sacristão, que é também pescador e vai para o mar…”
“Não”, disseram elas, “é uma menina de Lisboa, vê-se
perfeitamente. Com uma saia de pregas? Nem pensar. Uma menina da aldeia tem de
ter uma saia assim, com um avental… Se ela for solteira, o avental é para cima.
Se for casada, tem o avental para baixo e se ela for casada com filhos tem o
avental não-sei-quê. O lenço, posto na cabeça, se for solteira, casada, etc. Se
o marido estiver fora, já não pode usar o lenço assim, tem de amarrá-lo
assado…” E nós começámos a mudar de cor, porque o filme estava todo errado,
de uma ponta à outra. E eu disse: “alto,
pára já a filmagem toda, pára que estou-me a aperceber que há aqui qualquer
coisa que não está bem”. Parou a filmagem. Nesse dia já não filmámos mais.
O que é se passava? Fomos ter com uma actriz do teatro amador que era natural
da terra e vivia lá, e já tinha colaborado com informações, já era nossa
conhecida… Chamámo-la e eu contei-lhe a história. “Como é que vocês fizeram isto?”, pergunta ela. “Então, o António Casimiro esteve cá, fez
umas perguntas, informou-se e a roupa que mandámos fazer…” “Não, isto está tudo malfeito, as velhotas é
que têm razão.” O avental, o lenço, não-sei-que-mais… O xaile, que se põe
por trás dos ombros, tem um significado: se for posto de determinada maneira é
porque o marido dela não-sei-quê… Ou ela é viúva ou ela é solteira… Quer
dizer…Era uma colecção de códigos que não lhe passa pela cabeça. E nós, aí,
percebemos que, naqueles meses de pesquisa antes da rodagem do filme começar,
tínhamos feito as perguntas erradas! Quer dizer, tínhamos recebido respostas
certas para uma série de perguntas erradas. Repare que isto é extraordinário. E
eu disse para comigo “perguntar é mais
importante que responder”. No saber perguntar é que está o segredo.
Conclusão: não filmámos naquele dia… Perdeu-se o dinheiro todo, porque uma
equipa parada está a ganhar… Foi uma noite inteira sem dormir, porque a
senhora, simpaticamente, resolveu ir connosco bater às portas da gente toda
daquela vizinhança, na aldeia e arredores, a pedir roupas emprestadas para os
actores e as actrizes vestirem. E ela explicou-nos os códigos certos, em
relação ao argumento do filme. Portanto, perderam-se dois dias de filmagem…
tive de refilmar tudo aquilo que já tinha filmado, mas como devia de ser… E as
velhotas, quando viram de novo, já disseram: “ah, esta sim, é, realmente, uma menina cá da aldeia que é casada com o
sacristão, que está quase a ir para a pesca”… É espantoso que, quando se
faz sociologia no local, tem de fazer-se trabalho de campo. Normalmente, cá,
faz-se sociologia “de livro”, vai-se consultar os livros dos sociólogos
anteriores e continua-se a repetir o que eles já escreveram. O Moisés Espírito
Santo sempre me ensinou que para se fazer boa sociologia tem de se fazer
trabalho de campo: é preciso sair e ir aos locais, fotografar, e fazer
entrevistas e saber fazer as perguntas certas. E eu percebi isso com a rodagem
de «A Promessa», é espantoso. Muito
antes de cursar sociologia, o que só fiz recentemente.
DS – O antropólogo
escocês James George Frazer, autor do «The
Golden Bough», orgulhava-se de nunca na vida ter visitado um único dos
países sobre os quais escreveu nos seus livros.
AdM – Correu um risco
muito grande, mas o problema era dele… Isto é interessante, porque estávamos a
falar sobre o esoterismo dos meus filmes… Eles acabam sempre com uma pergunta e
a minha grande preocupação – e dúvida – é se fiz as perguntas certas, porque as
respostas não sou eu que dou. Alguém as dará. Todo o meu esoterismo, no cinema
e na ficção literária que escrevo, é um esoterismo interrogante. Como dizia o
Anjo da Guarda do Almada-Negreiros. Esse texto, que ele escreveu em 1924, o «Pierrot e Arlequim, Personagens de Teatro»
é muito interessante. A pergunta bem feita é o grande mistério.
DS – E as suas
mensagens, as mensagens dos seus filmes, poderiam existir, ser transmitidas,
sem o componente esotérico?
AdM – Não, de maneira
nenhuma. O esoterismo não está ao serviço da ficção, faz parte da ficção. É um
esoterismo intrínseco, independentemente de se acreditar nele ou não. Isso é
secundário, até porque a ficção, ela própria, não é para ser acreditada.
DS – Qualquer pessoa
pode ver um filme do António, o seu cinema é para todos, e qualquer espectador
é livre de fazer a sua interpretação. Porém, não será erróneo dizer que aquilo
que o António, de facto, quer transmitir deverá ser perceptível para um número
reduzido de pessoas?
AdM – É verdade,
tenho consciência disso. Mas é um problema meu, que não sei ultrapassar.
DS – Haverá
espectadores que serão atraídos aos filmes do António pelo seu lado fantástico,
porque gostam de Fantástico. Haverá outros que, de maneira geral, se interessam
por cinema português e é isso que procuram. E haverá outros que, de facto, vão
ao encontro da mensagem especial que o António quer transmitir.
AdM – Eventualmente,
espero bem que sim. Pelo menos, que haja alguns.
DS – Voltando a obra
para o mainstream… Acha que ela
sofreu por ter elementos que só alguns indivíduos, pela sua cultura, pela sua
sensibilidade, conseguem captar? Ou que, por terem um contacto mais próximo com
esses elementos, chegam a eles com mais facilidade?
AdM – Sofre sempre. É
evidente que só uma faixa limitada é que compreenderá, não gosto da palavra
“compreender”, neste sentido… Há, de facto, do ponto de vista esotérico, uma
mensagem, ou uma pergunta, como dizia há pouco, e penso que essa pergunta tem
de repercutir no espectador para que este se sinta motivado a responder. É
curioso, porque uma das críticas que costumava ser feita aos meus filmes era a
de que eu fazia “piscadelas de olho” ao público: isto é, fazia um tipo de
cinema que, aparentemente, era “divertido”, entre aspas, para o grande público.
Nem que fosse um drama, como o «Domingo à
Tarde», ou um filme como o «Chá Forte
Com Limão», era visto como um cinema apetecível para o grande público. Como
se isso fosse um crime… que não é, porque… Lá está!, o grande público… há do
grande público quem seja atraído pela fantasia, outros são atraídos por outra
coisa qualquer… Mas, provavelmente, só pouquíssimos é que irão perceber os
filmes: isto é, assimilar, aceitar ou entender, mais ou menos, aonde eu quero
chegar. Mas, seja como for, aquilo que eu quero dizer está lá e mesmo a faixa
maior do público que vai assistir só pelo divertimento – “olha que engraçado, tem aqui um fantasma, que divertido que isto é” – mesmo
para esses há qualquer coisa que fica. A ideia é esta: “vamos pôr isto de uma forma o mais acessível possível”, embora
incorrendo na ira dos tais críticos que dizem que eu faço piscadelas de olho ao
grande público, como se o grande público fosse uma coisa horrível, mas,
enfim... O que eu quero dizer está lá. Mais ou menos escondido ou
não-escondido… ou não-aparente para um determinado tipo de pessoas e mais
aparente para uma faixa mais reduzida… mas o que eu quero dizer – ou perguntar
– está lá e fica semeado em todos: mesmo naqueles que vão assistir só para se
divertirem um bocado. E as coisas, quando são semeadas, germinam – mais tarde
ou mais cedo. Provavelmente, em alguns, poucos, germinarão mais cedo; em outros,
poderão germinar mais tarde – ou até nunca germinar. Essa é que é a minha
preocupação. Não estou muito preocupado com o tipo de receptividade que se
possa vir a ter, porque sei que se acabará por ter, mais tarde ou mais cedo.
Aliás, como está a haver, curiosamente, quarenta, trinta anos depois! Na altura
foi um descalabro completo. Quarenta ou trinta anos depois, está-se a ver agora
um certo tipo de público a aderir… Não sei se está a aderir pelo melhor lado ou
pelo pior lado… não me preocupo…
DS – Vão ao caminho.
AdM – Vão ao caminho.
Ou seja, aparentemente, eu tinha razão.
(Continua.)