Os nossos mortos estão connosco, «vibrando», como escreveu Emily Dickinson, «numa diferente medida, por trás de um véu de pouca espessura». Este é o véu da memória: o único que, no meu entender, existe entre a morte e a vida. Mas a memória, mas os sonhos - onde nos reencontramos com os nossos mortos - são mnemónicos. Os nossos mortos são prisioneiros desse envoltório sinestésico; translúcido e indevassável como celofane: impermeável, mas edaz, pia-máter que mantém as lembranças tolhidas numa incorruptível e incomunicável esfera que as aparta e é apenas atingível, em efémeros lampejos, através da alucinação ou da arte. Vale a pena acender uma vela aos nossos mortos: não para orientá-los na nossa direcção, por trás desse «véu de pouca espessura», mas para não esquecermos que a memória se gasta como cera sob o fogo e que cada vez que nos lembramos deles, na verdade, apagamo-los, devagar, de dentro de nós. Não é à toa que a trágica traça é o símbolo da alma, no seu obstino em engolfar-se no chamariz de chama. Só mais um pedacinho, pede, só mais um pedacinho de dádiva, à aproximação da luz miserável - do alvor que extingue as queridas sombras; da branca que rarefaz as recordações.
(Imagem: «A Hopeless Dawn» de Frank Bramley, 1888.)
(Imagem: «A Hopeless Dawn» de Frank Bramley, 1888.)