Hoje de madrugada, acabei a leitura de um título que me emocionou muitíssimo: «The Quest For Corvo: An Experiment In Biography», de A. J. A. Symons, sobre o vergonhosamente olvidado escritor, fotógrafo e pintor Frederick Rolfe (pronuncia-se "rofe"), mais conhecido pelo pseudónimo Barão Corvo.
Já escrevi diversas vezes que Rolfe é um dos meus heróis literários -
um verdadeiro génio da literatura que morreu sozinho, em Veneza (1913),
na mais abjecta miséria. Seja em Veneza ou em outro lado qualquer, os
génios, de maneira geral, comem e morrem sozinhos - só os parasitas
comem e morrem acompanhados: não é de espantar que essa palavra venha da
grega parásitos, que significa "aquele que come junto de" ou "aquele
que come do mesmo prato que". Mas este não é um costume que tenha
morrido na Grécia antiga: podem crer que ainda hoje existe quem faça
profissão do hábito de comer dos pratos dos outros.
A biografia de Symons descreve com isenção e compaixão a catabática trajectória de Corvo; autor que sempre, sempre e sempre esteve na vanguarda daquilo que se propôs a fazer, fossem fotografias (foi um dos pioneiros da fotografia a cores, numa altura em que a fotografia a cores não galvanizou ninguém), fossem pinturas (foi um dos pioneiros de um estilo expressionista, numa altura em que esse estilo não galvanizou ninguém) e foi o autêntico inventor - muito antes de Joyce, por exemplo - do romance enciclopédico e polissemântico (numa altura em que aquilo que galvanizava os leitores era o superficial e unidimensional). Costumo dizer que as pessoas inteligentes sofrem sempre mais - e a vida de Corvo comprova-o. Publicada em 1934, a biografia de Symons, livro pioneiro no género da moderna biografia (foi este o livro que credibilizou - se não inventou - a investigação biográfica), é uma biografia autêntica: ou seja, não se lê como se fosse um romance. Romance é romance, biografia é biografia: e Symons, conhecedor de ambas as linguagens, sabe muito bem o que faz, estruturando uma investigação sólida e desarmante, na qual não existe nada, mas mesmo nada, de afectado, vaidoso, pedante, paternalista ou imbecil. É uma biografia que é, em simultâneo, dura e terna para com Corvo: não é um libelo nem uma eulogia e, por manter intacto esse fino equilíbrio, é um livro extraordinário.
Existe uma passagem que, confesso, me emocionou mais do que todas as outras: perto do final do livro, depois de descrever a miserável morte de Corvo, lamentando a incapacidade para descortinar o paradeiro dos seus maravilhosos manuscritos perdidos, Symons desvenda que recebeu uma carta inesperada, endereçada de Londres, que lhe gelou a espinha, pois a caligrafia, reconheceu-a, era a de Corvo.
Leu a carta, endereçada por um sujeito chamado John Bland, e descobriu que consistia numa mensagem manuscrita pelo filho de um velho amigo de Rolfe, que tinha sete anos de idade quando conheceu o escritor; este enviara-lhe, durante algum tempo, cartas nos seus aniversários: «Rolfe was an occasional visitor to the house. I remember him as a man of charming manners to a child, who knew all about magic and charms, who wore strange rings and told fascinating histories».
A caligrafia corvina era lindíssima e o miúdo guardou todas as cartas; mais tarde, ao fazer dezasseis anos, achou que estava na altura de aprender a escrever melhor, pois tinha uma letra terrível e, então, lembrou-se das cartas de Corvo, com a espantosa caligrafia. Usou-as como modelo e aprendeu a escrever com a letra do falecido escritor: «the caligraphy of Frederick Rolfe still lives».
Felizmente, também os manuscritos perdidos foram aparecendo e, hoje, a maioria da obra de Rolfe já foi publicada, embora lhe faleça o mais que merecido reconhecimento. Porém, como costumo dizer, a obra fica para sempre e é ela o único antídoto contra a morte.
Quem se lembra, hoje, dos escritores da moda, contemporâneos de Corvo?
Quem se lembra, hoje, das críticas, dos artigos promocionais e dos prémios de compromisso, criados para promovê-los e para sustentá-los?
Ninguém: desapareceram todos, por virtude da sua própria efemeridade.
Mas lembramo-nos, hoje, do excêntrico e genial Barão Corvo que esfaimando-se e dormindo numa gôndola ainda foi capaz de escrever mais uma obra-prima antes de falecer. Infelizmente, já não existem pessoas desta cepa e as que, como ele, existiram, parecem-nos tão irreais quanto personagens de ficção. Na sua vontade indómita de criar - de criar genialmente - e, também, na sua heteronímia, Corvo foi uma espécie de Fernando Pessoa muitíssimo mais ousado, muitíssimo mais trágico. Mas para recordar Corvo, em vez de resgatar um verso de Pessoa, prefiro lembrar um de outro grande poeta português, injustamente esquecido: Sebastião da Gama. O seu «Pequeno Poema» é o melhor epitáfio que posso dar, em homenagem, a Frederick Rolfe, o Barão Corvo:
«Quando eu nasci,
ficou tudo como estava,
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
P'ra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...»
Diz Gama que «quando eu nasci, não houve nada de novo senão eu». Atrevo-me a dizer que, em relação ao contributo de Corvo para a literatura, que também ainda não existe nada de novo, senão o dele, desde que ele nasceu.
A biografia de Symons descreve com isenção e compaixão a catabática trajectória de Corvo; autor que sempre, sempre e sempre esteve na vanguarda daquilo que se propôs a fazer, fossem fotografias (foi um dos pioneiros da fotografia a cores, numa altura em que a fotografia a cores não galvanizou ninguém), fossem pinturas (foi um dos pioneiros de um estilo expressionista, numa altura em que esse estilo não galvanizou ninguém) e foi o autêntico inventor - muito antes de Joyce, por exemplo - do romance enciclopédico e polissemântico (numa altura em que aquilo que galvanizava os leitores era o superficial e unidimensional). Costumo dizer que as pessoas inteligentes sofrem sempre mais - e a vida de Corvo comprova-o. Publicada em 1934, a biografia de Symons, livro pioneiro no género da moderna biografia (foi este o livro que credibilizou - se não inventou - a investigação biográfica), é uma biografia autêntica: ou seja, não se lê como se fosse um romance. Romance é romance, biografia é biografia: e Symons, conhecedor de ambas as linguagens, sabe muito bem o que faz, estruturando uma investigação sólida e desarmante, na qual não existe nada, mas mesmo nada, de afectado, vaidoso, pedante, paternalista ou imbecil. É uma biografia que é, em simultâneo, dura e terna para com Corvo: não é um libelo nem uma eulogia e, por manter intacto esse fino equilíbrio, é um livro extraordinário.
Existe uma passagem que, confesso, me emocionou mais do que todas as outras: perto do final do livro, depois de descrever a miserável morte de Corvo, lamentando a incapacidade para descortinar o paradeiro dos seus maravilhosos manuscritos perdidos, Symons desvenda que recebeu uma carta inesperada, endereçada de Londres, que lhe gelou a espinha, pois a caligrafia, reconheceu-a, era a de Corvo.
Leu a carta, endereçada por um sujeito chamado John Bland, e descobriu que consistia numa mensagem manuscrita pelo filho de um velho amigo de Rolfe, que tinha sete anos de idade quando conheceu o escritor; este enviara-lhe, durante algum tempo, cartas nos seus aniversários: «Rolfe was an occasional visitor to the house. I remember him as a man of charming manners to a child, who knew all about magic and charms, who wore strange rings and told fascinating histories».
A caligrafia corvina era lindíssima e o miúdo guardou todas as cartas; mais tarde, ao fazer dezasseis anos, achou que estava na altura de aprender a escrever melhor, pois tinha uma letra terrível e, então, lembrou-se das cartas de Corvo, com a espantosa caligrafia. Usou-as como modelo e aprendeu a escrever com a letra do falecido escritor: «the caligraphy of Frederick Rolfe still lives».
Felizmente, também os manuscritos perdidos foram aparecendo e, hoje, a maioria da obra de Rolfe já foi publicada, embora lhe faleça o mais que merecido reconhecimento. Porém, como costumo dizer, a obra fica para sempre e é ela o único antídoto contra a morte.
Quem se lembra, hoje, dos escritores da moda, contemporâneos de Corvo?
Quem se lembra, hoje, das críticas, dos artigos promocionais e dos prémios de compromisso, criados para promovê-los e para sustentá-los?
Ninguém: desapareceram todos, por virtude da sua própria efemeridade.
Mas lembramo-nos, hoje, do excêntrico e genial Barão Corvo que esfaimando-se e dormindo numa gôndola ainda foi capaz de escrever mais uma obra-prima antes de falecer. Infelizmente, já não existem pessoas desta cepa e as que, como ele, existiram, parecem-nos tão irreais quanto personagens de ficção. Na sua vontade indómita de criar - de criar genialmente - e, também, na sua heteronímia, Corvo foi uma espécie de Fernando Pessoa muitíssimo mais ousado, muitíssimo mais trágico. Mas para recordar Corvo, em vez de resgatar um verso de Pessoa, prefiro lembrar um de outro grande poeta português, injustamente esquecido: Sebastião da Gama. O seu «Pequeno Poema» é o melhor epitáfio que posso dar, em homenagem, a Frederick Rolfe, o Barão Corvo:
«Quando eu nasci,
ficou tudo como estava,
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
P'ra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...»
Diz Gama que «quando eu nasci, não houve nada de novo senão eu». Atrevo-me a dizer que, em relação ao contributo de Corvo para a literatura, que também ainda não existe nada de novo, senão o dele, desde que ele nasceu.