Na bela cidade polaca de Wroclaw (pronuncia-se brotswaf), outrora capital da Silésia, ocorreu mais uma edição - a oitava - do Międzynarodowy Festiwal Opowiadania: ou Festival Internacional de Ficção Curta. Consiste num festival literário muito dinâmico e multilingue, em que os diversos escritores convidados, além de participarem em conversas com os leitores, realizam sessões de leitura em voz alta nas quais dão a ouvir as suas palavras nas línguas originais, enquanto é projectada, em simultâneo, uma versão em polaco desses textos. Entre outros autores, a edição deste ano (de 2 a 6 de Outubro) contou com as presenças de Valeria Parrella (Itália), Andrezj Stasiuk (Polónia), Colm Tóibín (Irlanda), além de mim. Para a sessão de leitura em voz alta, interpretei um trecho do meu romance O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência, 2010).
Esse trecho, que causou sensação, foi, ainda, publicado na revista literária Opowiadanie.
Deixo os meus votos de agradecimento à direcção (Marcin Hamkalo) e coordenação (Milka Jankowska) do festival, assim como ao Instituto Camões (José Carlos Costa Dias) e à embaixada de Portugal na Polónia. Ainda, um agradecimento especial a Weronica Murek: dziękuję.
No centro histórico da cidade, na Rynek we Wrocławiu (Praça do Mercado de Wroclaw).
Lendo um trecho de O Evangelho do Enforcado (Saída de Emergência, 2010) no auditório do Teatr Wspólczesny (Teatro Contemporâneo). «Os visitantes cheiravam Lisboa antes de lhe pôr a vista em cima. (...) Um fabuloso odor de "aqui e agora" que ia buscar essências pretéritas, fixadoras dos aromas do presente, para controlar os pensamentos dos lisboetas: o hipocentro da geologia temporal de Lisboa, impressa nas rochas, tijolos e ossos, reverberava sob a forma de lenga-lengas, cantigas estúpidas e orações de esperança. Ninguém, nem sequer um fungo, se dava ao trabalho de aprender alguma coisa com a presença do passado: e a cidade, de quando em quando, dava coices; deitava umas casas abaixo e reorganizava-se - ninguém me usa, clamava merismática.»
«Sob o solo: ruínas de uma grandiosa necrópole romana - o anfiteatro de Morta. Peças misóginas de teatro: "O poderoso Marte clama por Vénus, em segredo, enquanto lava, com lágrimas de mulheres, o seu rosto horrendo." E à superfície? Impermanência. Abortifacientes. Prejuízos post mortem.»
«Alquimia engendrada nos ventres públicos: respingos brancos em polpas carminas - do excremento à carne. E da carne ao excremento.»
Excepto a policromia, foi num prédio de apartamentos deste feitio que, na sua cidade alemã, Descartes experienciou três visões triunfais - triunfais à maneira "epifernandopessoana" - que mudaram a sua vida e o influenciaram a escrever O Discurso do Método. Tivesse morado em Wroclaw e quantas mais cintilantes visões haveria sonhado?
Wroclaw é conhecida por ser a "cidade dos gnomos": existem imensos, espalhados por todas as ruas e recantos. Apesar de figurarem num "mapa dos gnomos", tenho a ideia de que quem mora na cidade, mesmo há vários anos, ainda não descobriu todos: é um grande desafio.
Nesse sentido, Wroclaw é uma cidade amante da arte escultórica. Nesta imagem estou na antiga rua dos magarefes, que, hoje, é uma das principais ruas artísticas da cidade, cheia de galerias e estúdios de pintura e escultura. O galo faz parte de um conjunto escultórico que homenageia as espécies abatidas para consumo, ao longo dos séculos, naquela rua (imagem seguinte).
Estas lindas estátuas transmitem uma enorme ternura e, ao mesmo tempo, por se encontrarem no final da rua, um surpreendente humor deveras paraprodosquiano.
No mágico jardim botânico de Wroclaw, onde se encontra um magnífico lago com cascata. A serenidade que o local evoca é paradisíaca e lembrou-me, de imediato, a majestosa composição Five Variants of Dives and Lazarus de Ralph Vaughan Williams. Um lugar em que se respira paz e cultura: é um jardim destes que falece à cidade de Lisboa, para parafrasear Francisco D'Ollanda.
Há beleza nos milagres comuns. Para mim, um bom exemplo de um milagre comum é o café - e há muito bom café em Wroclaw: aromático e aveludado. Esta pequena pastelaria no centro da cidade tem uns cadeirões muito confortáveis.
A revista literária Opowiadanie.
Em polaco, O Evangelho do Enforcado diz-se Ewangelia Wisielca.
Apreciação crítica/apresentação do meu trabalho na brochura do programa do festival.