quinta-feira, 30 de maio de 2013

Teaser: primeiras pranchas de «Palmas Para o Esquilo»





Palmas Para o Esquilo
Escrito por David Soares e desenhado por Pedro Serpa
Legendagem de Mário Freitas
Em Outubro pela Kingpin Books


quinta-feira, 23 de maio de 2013

Apresentação dos PPBD: Prémios Profissionais de Banda Desenhada

Amanhã, pelas 17H30, no auditório da Torre do Tombo, em Lisboa, terá lugar a cerimónia oficial da entrega dos Prémios Profissionais de Banda Desenhada 2013 (PPBD): iniciativa organizada por cinco pessoalidades pertencentes ao universo da BD portuguesa (André Oliveira, Inês Fonseca Santos, Maria José Pereira, Mário Freitas e Nuno Amado) e que tem como objectivo distinguir - em várias categorias - as melhores obras de banda desenhada editadas em 2012. O júri que avaliou as obras a concurso foi composto por diversos autores, editores, críticos e jornalistas, de igual modo pertencentes ao mundo bedéfilo português.

Em Portugal, que já foi definido como sendo não um país, mas um sítio muito mal frequentado, é comum que as iniciativas que promovam a excelência sejam embrulhadas em mantos invisíveis para que não se vejam ou sejam faladas; quando mesmo assim o são, acabam por ser mal-vistas ou mal-faladas que vai dar ao mesmo. Neste caso, o nome dos prémios tem dado que falar em alguns círculos bedéfilos portugueses, no sentido em que há quem não concorde com a escolha da palavra «profissionais», porque existem pouquíssimos artistas portugueses de banda desenhada que retirem dessa arte a totalidade dos seus rendimentos semanais, mensais ou anuais: pergunta-se qual é a lógica de baptizar de «profissionais» uns prémios que vão, nessa perspectiva, premiar "amadores", ou seja, indivíduos que não têm a banda desenhada como "profissão"; leia-se: não vivem da banda desenhada.

Esta matéria não é uma discussão nova e eu, várias vezes, em diferentes contextos, pronunciei-me sobre ela da seguinte forma: ninguém está, verdadeiramente, à espera que um artista e uma obra caracterizados como sendo profissionais se definam pelo significado mais elementar dessa palavra (significado que, de um ponto de vista semântico, até é recente, porque só data do século XIX); só se espera, de facto, que essa obra e esse artista tenham uma relevância mais alta, uma estética mais sofisticada e um valor técnico superior.
E, de facto, é esse o sentido original da palavra: o de dedicar-se a algo com rigor.
Partindo daqui é fácil observar que sendo a banda desenhada portuguesa uma arte desatractiva comercialmente e monetariamente pouco recompensadora todos os autores que escolhem dedicar-se a ela com rigor são autênticos profissionais, independentemente de recolherem rendimentos regulares desse labor.
Usar a grosseira bitola de que um verdadeiro profissional é, em exclusivo, aquele que vive (ou sobrevive) de um determinado ofício coloca no campo dos profissionais os tarefeiros que, nas artes e nas letras, produzem proficuamente os piores trabalhos possíveis e deixa de fora artistas de valor incontornável que não tiveram na realização artística a sua principal fonte de rendimentos. Nesta óptica, um escrevinhador anónimo que escreva romances para a Colecção Harlequin, por exemplo, é um profissional da escrita, enquanto que autores de luminoso génio como o Barão Corvo, que nunca lucrou com o seu trabalho, são tristes amadores - leiam um romance cor-de-rosa escrito por um profissional harlequínico e leiam um dos romances maravilhosos do amador Barão Corvo e depois digam qual desses livros tem mais coisas para ensinar sobre o ofício da escrita.

A ênfase com a qual os críticos da iniciativa PPBD relevam o carácter "monetarista" da palavra «profissionais», em prejuízo do seu significado de "dedicar-se com rigor", apenas para a menorizar, não deixa de ser miserabilista, porque é claro que ser-se profissional traduz que se pratica um ofício remunerado, isso é evidente, ninguém o desvaloriza, mas ser-se profissional não se esgota nessa designação e vale a pena recordar que as qualidades que, com efeito, diferenciam um profissional de um amador relacionam-se com a tal dedicação rigorosa a que a palavra já aludia e que essa dedicação não se arvora somente com o isco monetário na ponta do pau, à guisa de cenoura. Encontro mais profissionalismo num webcomic ou num fanzine feito com rigor, mas fora do tal âmbito do salário, do que em certas coisas que por aí vão sendo publicadas regularmente, como fonte fixa de rendimentos dos seus criadores, mas que não valem um chavelho.

É que ser-se profissional tem de definir-se, sobretudo, pela qualidade.

quarta-feira, 22 de maio de 2013

«Os Anormais»: «Sol Invicto» integral


Muitas vezes, recebo por email pedidos de leitores que me perguntam se lhes posso enviar ou disponibilizar os textos de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir: um ensaio sobre a monstruosidade e a marginalidade, erguido sobre as vidas dos indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao longo de séculos. Sem excepções, a minha resposta tem sido sempre "não", porque este trabalho foi concebido para ser ouvido e não para ser lido; contudo, porque, de facto, recebo muitos pedidos, decidi publicar os quatro textos, aqui nos Cadernos de Daath.
O quarto e último capítulo, intitulado «Sol Invicto», consiste numa generosa invocação de todos os anormais olisiponenses que, aqui, após séculos de esquecimento, retornam numa procissão "grand-guignolesca" à cidade que os rejeitou, mas à qual nunca deixaram de pertencer.
Espero que a publicação dos textos integrais de «Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense» tenha oferecido uma dimensão ainda mais palpável e especial ao universo plasmado no disco; um universo que, embora não pareça, também é o nosso.

Sol Invicto

            Vêm ao nosso encontro.

Vemo-los ao longe, saindo da sombra para a claridade.

Os fazedores de poesia – os fazedores de sonhos.

O que está em cima contemplará o que esteve em baixo.

Eles vêm ao nosso encontro!

Outrora navegantes isolados no oceano do oblívio, gente rejeitável que a civilização abandonou, ei-los a regressar a esta restritiva Jerusalém Celeste que lhes foi cruel – a esta Lisboa madrasta que se enegrece à estimação destes subordinacionistas inseparáveis para quem o Verbo não é uma criatura perfeita, mas irregular, sutural, defeituosa.

Despertados pela nossa digressão diacrónica neste monturo, do fundo da escória para a qual foram lançados pelos inscritos, todos os anormais de Lisboa se juntam ao plutónico Anão dos Assobios e à lunícola Estanqueira do Loreto neste entremeio que diferencia a história da memória, separa a ficção do facto e está a meio-caminho da lenda. A acústica admirável da algazarra dos residentes deste arrabalde ad-rectal adossa a alvenaria da muralha olisiponense e fá-la mesurar numa vénia a estes vetustos vagabundos. Uma sucessão detonante de espectros que um a um contagiam a capital com a praga da relembrança.

Pode a inexpugnável Lisboa Celeste ser conquistada – aqui?

Num lance faustoso? Por esta gente destemida?

Oh, Lisboa! Cabeça da Europa, janela do Ocidente, porto do Graal – os anormais, escumalha que o refluxo do tempo trouxe novamente às tuas muralhas, vão regenerar-te.

Vão regenerar-te, porque trazem ouro.

Trazem ouro nas almas.

Vestidas com as mais chiques saias de folhos, casacos (um pouco coçados) com rosas nas botoeiras e agarrando pequeninas malas-de-mão, Carolina e Josefina, as Manas Perliquitetes, apresentam-se à cabeça do cortejo – tornadas ainda mais coquetes pela pele polvilhada por fécula cemiterial. Atrás delas, o escaveirado Papa-Missas sorri pela primeira vez em séculos ao ver que o seu filho ri, não de loucura, que é coisa dos vivos, mas de alegria. Quem lhe põe uma mão amiga e descarnada num ombro é o Poeta de Xabregas, feito magro pela putrefacção; na outra mão, ostenta a velhíssima imagem da Virgem que foi com ele para o caixão e essa estátua, despoluída de caruncho, nunca pareceu tão sublime. De braços dados ao deteriorado José das Caixinhas vão as suas duas Manas, melhor conservadas: os três entreolham-se, enlevados, e só a ardência emitida pelas expressões de felicidade fraternal iluminam todo o baldio, como se trouxessem um Sol só seu.

Um Sol invicto.

Invicto pela mesquinhez e pela miséria, mas também invicto pela infortuna e pela inveja. Um novo Sol para um inédito e coruscante instante; irrepetível e, por isso, inestimável. Olhando para além dos irmãos é possível ver que muitos outros antigos anormais de Lisboa se juntaram ao irresistível chamamento.

Um deles, de cabelo ainda tão amarelo quanto cristais de wagnerite, é o indescritível Joaquim Oliveira, o famigerado Barata Loura, cuja ambição maior na vida foi “dar nas vistas” e que chegou a ser caricaturado por Rafael Bordallo Pinheiro no jornal satírico O António Maria; vem com a sua famosa bengala de duas libras e meia, na altura a mais cara, que comprou só para mandar cortar-lhe o castão ao meio. Ainda fedendo a esgoto, o putrescente Luciano das Ratas observa intrigado esse bordão mutilado enquanto vai contando, com dedos ossudos e experientes, quantas moedas extraviadas recobrou dos enredados labirintos de caneiros; guarda-as numa bolsa que tem dependurada à cintura, anexa às dezenas de ratazanas liquidadas que são os reclames do seu ofício. Achando que o raticida não amealhou o suficiente, o bexigoso e vesgo Rei Wamba, não dos Visigodos, mas dos arrendatários do Chiado, imortalizado por Eça de Queirós no livro póstumo A Capital, quer oferecer-lhe uma mão cheia de meias-coroas e vermes que encontrou num dos bolsos, fazendo jus à generosidade pela qual ficou conhecido em vida. De semblante mais bisonho, porque lhe falta a mandíbula, vem atrás deles o inquieto Traga-Bolas, extravagante vadio que, pelo Bairro Alto, acabava as noitadas em intensa porrada com os pretendentes a fadistas e o rapazio armado de navalhas que iam beber o pequeno-almoço aos botequins da Calçada da Bica Grande; nos braços escanifrados que foram os piores pesadelos de quem andou com ele à bulha, carrega com doçura o esqueleto do pobre polícia que matou com um único soco. Matador e matado são um Dióscuro, porque aqui, na grandiosa agregação dos banidos, todos os crimes são perdoados e todos os indivíduos são absolvidos. Aqui a relva é sempre verde – e cada momento é uma lança arremessada pelo Sol.

Quase ficando para trás por culpa de um dos achaques convulsionários do costume, o zinzilulante Homem-Macaco, que costumava saltar com espantosa energia para as varandas das casas durante os episódios de, lá está!, macacoas, está a receber das mãos do curandeiro benevolente Barão de Catânia um titanífero balde de água para apaziguar a sede tremenda de que sempre padeceu; a água choca escorre-lhe pelo queixal e pelos alvéolos abertos pelo apodrecimento nas prelúcidas costelas. Montada no seu inconfundível jerico, vestida de cores farfalhudas, com uma touca de folhos sobre a qual colocou um velho e desmedido chapéu de palha, passa por eles a Madame Collaço, incompetente preceptora de meninas que foi pioneira do feminismo, juntamente com a respeitadíssima Preta Fernanda, a quem dá boleia por causa dos dolorosos joanetes; esta cadaverina comparsa cabo-verdiana, de nome Andressa do Nascimento, predilecta de Eça de Queirós nas saídas nocturnas para os teatros e para as tertúlias intelectuais, foi imortalizada numa estátua de bronze no pedestal do monumento ao Marquês de Sá da Bandeira, abolidor da escravatura. Ao lado delas, sem vultuosidade e puxando as rédeas do jumento, vai a pé José Collaço, o filho da cavaleira, que expirou doido numa cela exígua do manicómio de Rilhafoles; é seguido pelo Gracioso das Bexigas, esse macrocéfalo mais-que-tudo, que, aos saltos e batendo com os metacarpos nas ancas, alenta o asno com o seu habitual adágio de «arre-burrinho». Sobre uma rocha, junto à entrada principal da cidade e beneficiando de um ponto de vista elevado, encarrapita-se o estupendo Sempre-Noivo pintando a óleo a comitiva completa numa tela do tamanho de um selo; pasmoso pintor da Lisboa nocturna, ele é capaz de, literalmente, estampar sem olhos a cena.

Aqui, a realidade não é a dominada pelos reis, nem a demarcada por racimosos reinos a eles consagrados pelos navegadores pós-medievais, mas a de um vastíssimo continente impossível de cartografar e onde convergem desiguais grandezas de lengalenga e fantasmagoria. Há música aqui, arreigada às vozes destes mortos simultâneos que parecem falar num prolépsico dialecto que soa a preguear de penas e brindes em copos de cristal. E, sobre todos, sobre a estupefacção esperançosa que os anima, está o Sol só deles.

O Sol invicto.

Invicto pelo sarcasmo e pela sordidez, mas também invicto pela violência e pela injustiça. Um Sol perfeito para uma insólita e rutilante ocasião; comburente e, por isso, inapreciável. Olhando para além das mulheres, dos homens e do asno, é possível ver que, como fósseis outrora cativos por grades estratigráficas ainda mais fundas, muitos outros anormais de Lisboa se aliaram à invencível convocação.

Antes dos anormais entrarem novamente em Lisboa, sem terem a certeza de que voltam para ficar, o trofoneurótico Mano das Manas aproxima-se de nós e oferece-nos com amabilidade uma caixinha de papelão pintado: as suas mãos aleijadas são pútridas, consumidas pelos sarcofamintos, mas a caixa resplandece com a luz imensa do Sol Invicto em escalas mais excelsas que as das jóias da Jerusalém Celeste. A pulcritude desse presente é tremenda – chamejante – e espiritualiza-nos os corações.

Eles trazem ouro. Trazem ouro nas almas.

As horas avançam.

O que esteve em baixo é como o que está em cima.

A procissão dos anormais é mais longa do que parecia – e a luz do Sol Invicto descasca-se agora como desgastado papel de parede sobre o horizonte. A noite aproxima-se, mas a caixa variegada, ainda por abrir, é leve nas nossas mãos.

Tão leve que parece vazia.

Mas não está.

Abrimo-la.

Olhamos lá para dentro.

Não está vazia. Está cheia.

Cheia de significado.

Cheia de revelação.


(Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense. Copyright © David Soares, Charles Sangnoir, 2012.)

terça-feira, 21 de maio de 2013

«Os Anormais»: «A Lua do Loreto» integral


Muitas vezes, recebo por email pedidos de leitores que me perguntam se lhes posso enviar ou disponibilizar os textos de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir: um ensaio sobre a monstruosidade e a marginalidade, erguido sobre as vidas dos indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao longo de séculos. Sem excepções, a minha resposta tem sido sempre "não", porque este trabalho foi concebido para ser ouvido e não para ser lido; contudo, porque, de facto, recebo muitos pedidos, decidi publicar os quatro textos, aqui nos Cadernos de Daath.
O terceiro capítulo, intitulado «A Lua do Loreto», dedicado à desgraçada Estanqueira do Loreto, figura típica lisboeta que morreu no início do século XIX, é, como o capítulo anterior, uma viagem intelectemporal.


A Lua do Loreto


        Circulares como um ponto final, embebidas em amnésico ruído de rua, as ruínas invisíveis dos Casebres do Loreto são uma Lua que ainda emulsiona os elementos de Lisboa: buzinas de automóveis, risos de mulheres, sabores artificiais provenientes de uma adjacente gelataria – mas também pedras extintas, sangue antigo – tão alucinatório quanto mênstruo estroboscópico – e surtos fantasmas de sofrimento.

Sob estes rios de turismo e alcatrão, lado a lado aos pisos inferiores do parque de estacionamento do Chiado, hibernam esqueletos de soldados ducentistas, alguns agarrando teimosamente a tecnologia do seu tempo: lâminas fósseis, exóticas quanto cascas de pré-históricos coleóides vampiromorfos, tão entorpecidas quantos os sestércios que polvilham como pimenta a sedimentar estratocracia da Praça Luís de Camões. Pudendágrico, o vulto desse vate é um cenotáfio de seres esquecidos pelas gentes que, animadas por atavismo psicogeográfico, se conglutinam nas actuais noites de fins-de-semana para elucubrarem ébrios elmanismos: a topografia é destino e a freguesia da Encarnação é a morada celeste do satiríaco Bocage, que dela fez uma Nova Arcádia de deboche e deleitação.

Do alto do seu sadino monumento, erguido em 1871 na Praça de Bocage, imunizante mausoléu de destroços romanos relacionados com a confecção de garum, a imagem do autor de Queixumes do Pastor Elmano Contra a Falsidade da Pastora Urselina parece um gémeo alabastrino do antracítico Camões, esculpido quatro anos antes. Societários nas estaturas estatuárias e poéticas, estes leptocéfalos partilham o túmulo incógnito que aquartela todas as ossaturas tresmalhadas pelo tempo: nem um, nem outro, das alturas em que se empoleiram, como tótemes de religiões secretas ou páreos muitíssimo escantilhados, vislumbram os seus restos mortais. Desidratados pela sequidão das eras, os ossos de Bocage e Camões são palinfrasias – paronomásicos aos do bardo irlandês William Butler Yeats, esmadrigados num ossuário occitano.

Qual o siderismo que supervisiona o destino dos ossos dos poetas?

Versos que nem vértebras – e, no entanto, outro esqueleto, mais importante para esta história, ganha pó no Museu de Anatomia do Hospital de São José: desfigurado pela ancilose, o crânio grotesco já não apresenta o nariz apossemático, cujos espirros Bocage definira como sendo autênticos terramotos. A sua signografia tecidual, quasi-lunar de tão craterizada, testemunha uma vida lamentável, findada entre o entulho e as esmolas no Largo do Calhariz, situado a pouca distância dos deploráveis Casebres do Loreto onde estes ossos, enquanto sustentáculo de carne de mulher, foram donos de um estanco. Exibido como se fosse o esqueleto de um macaco, indigno é o tributo prestado – pelos que dela se riram – à Estanqueira do Loreto. À horrível Estanqueira do Loreto.

Quem é esta corcunda, de dedos torcidos como caudas de ratazanas, que fede ao tabaco que mercadeja no seu cubículo apertado onde mal lhe cabe a alma? O seu retrato, a preto-e-branco, publicado na revista Ilustração Portuguesa de Dezembro de 1923, no artigo “Retratos d’Alguns Tipos Populares Portugueses”, que também conjectura sobre como seria a fisionomia do Anão dos Assobios, copia, de modo ainda mais hediondo, a imagem colorida que decorava uma tampa de caixa de rapé pertencente ao rei D. Pedro V: nessa efígie, a Estanqueira do Loreto supera em feiura a Duquesa Margarete do Tirol, pintada em 1513 pelo artista holandês Quentin Matsys, normalmente considerada a “mulher mais feia da História”. Todavia, este quadro medonho de Matsys poderá ser somente uma alegoria da Vaidade, talvez inspirada pela leitura de Elogio da Loucura, escrito dois anos antes pelo seu compatriota Erasmus de Roterdão, o que fará da Estanqueira do Loreto a verdadeira “mulher mais feia da História”. Pagética, dissimétrica, retinacular e embrulhada como se fosse a cabeça decepada de Medusa, a carranca pintada para a caixa de rapé evoca a Terceira das Idades Femininas popularizadas pelo escritor inglês Robert Graves no livro A Deusa Branca: o estádio a que chamou de Velha. O nome inglês desta Velha, comparada por Graves ao Quarto Minguante, é crone, nome que deriva da palavra francesa caroigne que tem a dupla significação de carne morta e mulher molesta. A Velha que estiola a luxúria masculina é equivalente à carne morta: «Aquele que comer essa carne morta ficará impuro». De útero inútil, a Estanqueira do Loreto é Elli, a Velha capaz de derrotar campeões priápicos da estirpe de Thor; é Baba Yaga, a estriga canibal do folclore eslavo que voa agarrada a um pilão num almofariz – é, pois, uma bruxa, cujas tetas são balofas almofadas, recheadas de esterco, que nasce no estrume e vive para o estrume. E, no entanto, sob o medonho córtex que lhe envolve as entranhas, espantoso eidolon de espavento que faz tremelicar de nojo os fregueses mais influenciáveis, soa uma verdadeira voz de ouro.

O verbo de fada da repelente Estanqueira do Loreto resplandece mais que as setecentistas fitas de Sol que iluminam o estanco pelas frinchas nas madeiras, pois estas poluem-se com o pó que revoa, mas nada emporcalha a voz da vendedora de tabaco, porque o espírito dela é o oposto do seu feio aspecto. É esta Befana crisóstoma que os boémios e os poetas, saídos das tabernas, apupam quando passam à entrada do estanco – mas quando a ouvem falar com eles, uma vergonha incómoda, macia como bosta, escorrega-lhes pelas espinhas abaixo e sentem-se insignificantes. «A luminária do corpo é o olho, se o teu olho estiver são, todo o teu corpo andará cheio de Luz; porém se o teu olho for mau, todo o teu corpo andará cheio de Treva.» Os olhos da Estanqueira do Loreto são luminárias que reflectem a luz: os infelizes clientes que torcem o nariz ao pôr-lhe a vista em cima, os rapazinhos que desfezam e urinam à sua porta e os valdevinos que dela escarnecem nos finais das tardes são incapazes de compreender que ela é o génio daquele sítio calamitoso; um coração que desofusca as sombras do palácio descalabrado dos Marqueses de Marialva, no qual as famílias mais pobres daquela freguesia montaram com mendicância as moradas.

Em frente às igrejas da Encarnação e do Loreto, levantam-se as choças dos energúmenos, porcos prostíbulos e casas clandestinas de jogo que os bem-aventurados chamam de Casebres do Loreto: triste desmoronamento do Grande Terramoto de 1755, convertido em dezenas de barracas infectas que fariam Vitrúvio vagir de confrangimento e Euclides engolir em seco de incredulidade. Mas sob este desolado imundo – imundo no sentido de fora deste mundo –, demolido em definitivo em 1859, há vozes brilhantes ressoando do íntimo da terra: tons telúricos que a Estanqueira do Loreto escuta e responde com a doçura das suas palavras. Oh, Estanqueira! És a minha filha favorita, o meu melhor invento: quem são estes uxoricidas que, grunhindo, galhofam da tua fealdade? Desgraçados dos que olham para a Luz e lhe chamam Sombra, porque estão doentes e os seus olhos já não têm lágrimas para amar. Erguidas por biltres e galdérias, as alfurjas ordinárias, fedentes a entulho e sucos sexuais, que cingem a tua espelunca são, no todo, um elemento sagrado. Ai dos falsos afortunados que por aqui passam e não entendem que és tu, Estanqueira, que suga a peçonha deste maquiavélico sorvedouro de misérias e o transmuta de Casebres do Loreto para Santa Casa do Loreto. Eles não entendem o teu mistério e não sabem o teu nome: Helena.

A Estanqueira do Loreto tem um nome, afinal de contas.

Helena.

Existem santos secretos cujos nomes não foram listados pelos sábios em nenhum hagiológio: são hieróglifos heróicos, estreitas passagens que da tenebrosidade levam à luminosidade.

Helena. O nome evoca uma significação mais profunda que se superioriza ao plano terreno, mas qual? O certo é que a Estanqueira do Loreto desapareceu.

Vaporizada para o campo nublado da mitografia, somente através de perigosos protocolos preternaturais poderá ser reassumida. Pelo poder da palavra falada, por que não?: arma oscilobatente dos feiticeiros paleolíticos que verbalizaram magia no âmago das grutas mais húmidas – tem de tornar-se gasto pela repetição o nome desta mulher que, nas vésperas da morte, já apartada do estanco anquilosante, sobreviveu vendendo o corpo no Largo do Calhariz a bêbedos e a rapazes esfomeados de morbidez. Todos procuravam o narigão para as suas crueldades lascivas; e ora ejaculavam, ora defecavam, no apendículo harpágico popularizado por Bocage que, segundo um soneto satírico, tinha tolos sebastianistas como burriés: «montanhoso nariz que ao mundo espantas!». Limpando do «montanhoso nariz» os sémenes e os excrementos de indivíduos tão desgraçados que, eles próprios, erravam que nem espectros pelas quelhas da paróquia da Encarnação, a Estanqueira do Loreto, que nem uma bruxa que vive para o estrume, senta-se no chão, sob o luarejar lisboeta, e conta as auferidas moedas: mister miserabilíssimo que manteve a fome à margem nestes últimos resquícios de vida. Oh, Helena! És a minha filha favorita, o meu melhor invento: quem são estes desprezíveis que, grunhindo, regozijam com a tua deformidade? Eles não entendem o teu mistério e não sabem o significado do teu nome: Helena.

A jarreta e repugnante Estanqueira do Loreto, calhandro com voz de sirena das excreções mais abomináveis, é Helena, a belíssima esposa de Menelau, rei de Esparta, prometida por Afrodite ao tíbio Páris e efectiva semeadora do pomo erístico da discórdia que despertou o derribamento da cidade de Tróia. É Helena, a luminosa mãe do imperador romano Constantino, salvadora dos destroços do Santo Lenho que, no século IV, em peregrinação à cidade galileia de Nazaré, encontrou intacto o humilde casebre em que Maria nasceu e mandou edificar uma basílica que o albergasse. Esta barraca inteira dentro do invólucro que é o novo templo, qual pérola dentro de uma ostra, é que é a Santa Casa do Loreto: aquela que, carregada por anjos através do Céu nos desenhos mais delirantes dos dominicanos, se alicerça sempre nos locais mais lastimosos. O estanco de Helena é esta casa de cura: úvula valiosa, envolvida pelo vil véu palatino que são os destroços mariálvicos, assolados pelo sismo e pelo abrasamento – e tal como na lenda da Santa Casa do Loreto a representação de Maria resiste imaculada a abalos e a incêndios, que nem uma gota de espermacete cingida pela corrupção, a estanqueira olisiponense persiste incólume numa imaginal tabacaria: um rosto beatífico, de tão monstruoso que é – carantonha que faz gargalhar os poetas, mas cuja riqueza de voz torna paupérrimos os versos deles.

Essa voz fala connosco.

Diz-nos que há pureza entre a escória e a escumalha; diz-nos que há definição entre a desordem e o desespero – diz-nos que se procurarmos atentamente, se olharmos sem receio à nossa volta, veremos que na mesma valeta onde se abatem os cães também desabrocha aquilo que os homens encerram de mais cintilante, porque no meio do breu refulge a crosta estéril da Lua – e, afinal, o nome da Estanqueira do Loreto, gema soterrada na turfa delinquente, é Helena: palavra que significa Lua. A Lua tripartida em Crescente, Plenilúnio e Minguante nos avatares de Virgem, Mãe e Velha – pintadas com supranaturalismo pelo artista alemão Hans Baldung Grien, em 1510: vaidosas e alheias à proximidade da Morte. Mas será a Lua um astro tão supérfluo quanto a vaidade? Uma moeda falsa com a qual somente se compra a loucura e a licantropia?

Sem a ascendência gravítica da Lua, torpe satélite que se apresenta eczemático no velo nocturno, nunca se teria agitado as águas primordiais: foi ela o pilão babayagano que revolveu a matéria no almofariz que é o globo e que impediu que os ingredientes da vida sedimentassem infecundos no fundo dos oceanos. Sem a Lua, arrancada da própria Terra, há cerca de cinco mil milhões de anos por uma bestial colisão com um corpo astral do tamanho de Marte, nenhum de nós existiria e o mundo seria como a Lua: um infrutífero planeta, magoado por máculas magmáticas. Sem ela, o orbe seria uma árida Aceldama: espaço horripilante de ausência e desolação, eternamente sôfrego por intestinos e cinzas. Mas foi Helena, criadora da Santa Casa do Loreto, quem se lembrou de usar a terra hostil de Aceldama para construir, para dar moradas pacíficas aos mortos… Ela é Helena, claro, como já vimos, mas também Selena, irmã do Sol: amante de pastores como Endímio e Elmano, musa de poetas como Camões e Bocage, e cujo nome significa…

Luz.

Oh, Lua! És a minha filha favorita, o meu melhor invento: desgraçados dos que olham para a tua Luz e lhe chamam Sombra.

É esta luz lunar, esta alvura argêntea, que descai sobre a matéria mortífera, entenebrecida nas horas em que o Sol se esconde, e a transmuta espagiricamente em substância salvífica. É por essa razão que as inócuas imagens de Maria cavalgam uma meia-lua. Sem Lua, meia ou inteira, não haveria poetas – e Bocage, intuindo essas afinidades antigas, orbitou em redor de uma antropomórfica lua loretiana, classificando-a como uma das “Sete Maravilhas do Chiado”. Helena, a Estanqueira do Loreto, a Velha que minguará em Virgem, é todas as Helenas e todas as luas que existiram e existirão.

É ela que ilumina os nossos passos na longa noite da alma. É ela que nos enxota o medo. E, com ingratidão, é sempre para o seu rosto paligorsquítico que enxotamos os vitupérios vinários, as secreções sensualistas e os conteúdos coprofílicos, mas a sua imaculabilidade é refractária a esse refugo. Os olhos da Estanqueira do Loreto são luminárias. Não há Lágrima nesses olhos, nem Pranto, nem Gritos, nem Dor, porque eles só reflectem a luz. Reflectem-na e retêm a treva. Assim, renovam todas as coisas.

Qual o siderismo que supervisiona o destino dos ossos dos poetas? E dos versejados? Outrora mofento na masmorra museológica, o esqueleto da Estanqueira do Loreto também desapareceu: esse alicerce do templo que foi o corpo de Helena encontra-se no mesmo túmulo incógnito que aquartela todas as ossaturas tresmalhadas pelo tempo – como as dos lunáticos Yeats, Camões e Bocage. Versos que nem vértebras – e, no entanto, outros alicerces, mais importantes para esta história, ganham força, em exclusivo, nas nossas imaginações. Estão connosco. 
  
Circulares como um ponto final, embebidos em amnésico ruído de rua, são uma Lua que ainda emulsiona os elementos de Lisboa: os nossos destinos individuais, as nossas histórias colectivas, reunidas numa única e radiante dimensão; como água acumulada num cálice ou numa sarjeta: num Crescente ou num Minguante.

Estão connosco.

São os alicerces do Santo Estanco de Helena – a Estanqueira do Loreto: sórdida e sagrada, em simultâneo.

Estão connosco, porque nunca somos nós que vamos à procura deles.

Não somos.

            São eles que vêm – sempre – ao nosso encontro.


(Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense. Copyright © David Soares, Charles Sangnoir, 2012.)


segunda-feira, 20 de maio de 2013

«Os Anormais»: «O Plutão da Pena» integral


Muitas vezes, recebo por email pedidos de leitores que me perguntam se lhes posso enviar ou disponibilizar os textos de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir: um ensaio sobre a monstruosidade e a marginalidade, erguido sobre as vidas dos indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao longo de séculos. Sem excepções, a minha resposta tem sido sempre "não", porque este trabalho foi concebido para ser ouvido e não para ser lido; contudo, porque, de facto, recebo muitos pedidos, decidi publicar os quatro textos, aqui nos Cadernos de Daath.
Acompanhado do texto integral, segue-se o segundo capítulo, intitulado «O Plutão da Pena», cujo protagonista - ou tóteme - é o Anão dos Assobios: figura típica lisboeta, que morreu nos inícios do século XIX.

O Plutão da Pena

A plúmbea antemanhã assemelha-se ao fundo encardido de um crisol abandonado por um alquimista inepto; a chuvarada dos seus nimbos enodoa que nem anitmonium os telhados e abstrai-se pelas áleas azafamadas como uma lavagem que separa as partes heterogéneas da matéria-prima que é a própria cidade. Metade da gente é “setembrista”, metade é “cartista”, mas tanto uma como a outra levam muito a sério o início do século: ligas arsenalistas, lojas maçónicas e modernos tributários do Antigo Regime – todos se vêem como poetas da política, como sonetistas da sedição; e a pobre Lisboa, ensombrada por anticirros que, em jeito de contracédulas, se sucedem uns aos outros numa simetrização sinistra, é presa por ter cão – e por não ter.

Enquanto o aguaceiro matinal metamorfoseia em lama o solo do terrádego do Rossio e alguns galegos cobrem com tábuas essa papa terrenta para que as damas não sujem as solas quando forem buscar bric-à-brac às barracas dos negociantes, tremem os topetes dos cavalos ao som de aguçados trinados, vindos da boca de uma criança. Depois de uma noitada de pândega, e gingando as ancas como uma vespilheira, o garotelho atravessa a praça em direcção a casa, soltando assobios gasólitos que embatem nas vidraças como em címbalos. É um miúdo desassossegado, de gestos quasi-garrettianos, porém uma observação atenta desvenda que ele não é miúdo nenhum, mas uma criatura saída do solo ensopado: um diabrete olhando de esguelha para as gotas de chuva que lhe alfinetam o rosto inchado por um maxilar prognático.

Entre o labirinto formado pela multidão que, àquela hora, já compressa a cota mais abatida de Lisboa, esta entidade diminuta, enfarpelada com uma sobrecasaca de saragoça e um chapéu comprido de feltro, mais parece um hectograma impresso pela precipitação na mole superfície da terra. Alguns moradores da freguesia da Pena, onde ele reside, riem alto ao vê-lo regressar e fingem querer deitar-lhe o chapeirão ao chão: sem perder a compostura, o leviano liliputiano devolve-lhes o troco das truculências na forma de assobios estridentes que dá com dois dedos metidos (como burneiros) na boca. Assobios fortes o suficiente para deitar abaixo casas. Ou reis…

Cinquenta e cinco anos antes do Grande Terramoto servir de antegare à cidade-templo pombalina, morreu em Madrid o burlesco Carlos II de Espanha: último soberano da linhagem espanhola da Casa de Habsburgo e padecente do mesmo prognatismo que faz os homens parecerem cachorros. Tão acromegálico quanto o Anão dos Assobios é hipotónico, este impotente imperador, sucessor de Filipe III de Portugal, mandava exumar os antecessores para procurar padrões haruscópicos – as únicas perguntas que era capaz de fazer, dado que a deficiência antropométrica não o deixava falar: este rei enfeitiçado, como veio a ser cognominado, só conseguia assobiar.

Que idioma sibilino é este, que evoca El Sibo, dialecto de silvos inventado pelos indígenas Guanches da ilha vulcânica de La Gomera no arquipélago canarino? Este linguajar é a gramática de Guayota, senhor infernal do vulcão Echeyde, o intróito sulfúrico de um mundo inferior feito de tórridas torrentes de lava onde habitam os Tibicenas: diabólicos anões cinocéfalos com corpos cobertos de lanugem negra. Outras culturas partilharam visões heterogéneas de anões de cabelos fulvos que, como os Guanches de La Gomera, assobiavam com aspereza: na selva amazónica, tanto os nativos como os colonos temiam o pruriginoso Curupira, de cabeleira ruiva – às vezes de fogo –, cujos assobios agudos provocavam psicolepsia. A linguagem trinada é hipocáustica – lausperénica: autêntico pleroma do qual emanam os entes elementares deste plutónico meristema. Enroupado de lã preta, o Anão dos Assobios da paróquia da Pena é um hodierno e cinocefálico Tibicena que sopra arcanos por Lisboa naquilo a que os comerciantes ingleses chamam de “assobios-de-lobo”: estrídulas gaitadas produzidas com os dedos enfiados na boca.

Quem são estes anões cuspidos pelo ventre da terra?

Para que participações plexiformes foram projectados?

Amoldados na forja de Hefesto, vejam-nos emergir desse estrato plutoniano em períodos de pestilência e guerra. Os assobios deles mimam os esguichos gasosos solfejados por extrusivas salpinges vulcânicas: comunicações de silfos do submundo de buchos cheios de ferrugem – a língua de animais com ferro na alma, pois estas criaturas fenocristalóides assenhoreiam a arte de extrair metais dos minérios: o magistério metalogénico.

Na mitologia norte-europeia, os anões, seres sapudos que povoam as partes privadas das serranias, apresentam-se como mestres metalúrgicos; tropo transmitido até aos nossos dias pelo mago suíço Paracelsus que, no século XVI, criou a – até aí inédita – figura do gnomo: elemental imaginário que reside nas cavidades intestinas e é capaz de passar por paredes de pedra. Segundo Paracelsus, os gnomos, cuja etimologia por ele inventada significa habitantes da terra, evitavam a companhia dos homens, mas nas Eddas, escritas pelo historiador islandês Snorri Sturlson, os homens são criados, justamente, pelos anões: o homem e a mulher originais – Ask e Embla –, feitos de terra e casca de árvore. Os gnomos paracelsianos são os ínfimos humanóides que, nas histórias infantis, se encovam no mundo quotidiano. Há magia velha por trás dos rodapés, por baixo dos tapetes e entre as ervas mais altas dos jardins – existem espíritos milenares entre as nossas almas bebés: e quando finalmente perecem, cansados de carregarem tanta sabedoria, convertem-se em árvores; como aquela em que foram talhados Ask e Embla.

De acordo com a dendrolatria pré-diluviana, já tivemos corpos vegetais: existem ecos da jornada de preguiçosa vida vegetal para impetuosa vida animal no espantoso livro Hypnerotomachia Poliphili do dominicano italiano Francesco Collona; existem ecos desta ligação dendrológica nas mitocôndrias que residem nas nossas células e na hemoglobina que, pasme-se!, pode encontrar-se nos caules mais carnudos das plantas. Existe ferro nos veios das montanhas e nas nossas veias… Não é a toa que, nas lendas de outrora, os anões fruam já formados das fragas: eles e nós somos descendentes da prole goblinesca dos Telamones: titãs condenados a serem cariátides das estruturas mais densas do planeta e que, com o inexorável avançar do tempo, se integraram em definitivo na própria rocha. De pedra a planta e de planta a bicho. De Pedra Bruta a Pedra Cúbica. Os ritmos da selecção natural e os da matéria amalgamada no fundo do crisol são sempre os mesmos: inícios morosos que dão lugar a cadências cada vez mais aceleradas. Caminhando pelas bulhentas ruas da freguesia da Pena com a ajuda de uma bengala – tirso recheado de fogo prometeico –, o desfigurado e fedentino Anão dos Assobios é um mercurial mensageiro metassomático: é um anão que nos lembra uma idade em que andavam gigantes sobre a terra.

Mais por pseudomorfose que por pseudonímia, o Anão dos Assobios foi perfilhado como apelido pelo perverso padre José Agostinho de Macedo nos panfletos anónimos que publicava contra todos aqueles que iam em sentido contrário ao seu maníaco miguelismo anti-maçónico: a cada investida viperina chamava-lhe gaitada, em referência aos famigerados assobios do proverbial anão. Uma das mais famosas gazetilhas acusatórias, que este rival do respício poeta Bocage escreveu, intitula-se Ritornello do Pardal; impressa em 1825, quando o Anão dos Assobios tinha trinta e três anos. Mas até a este polemista setecentista, até a este vicioso “desiniciado”, o mito não foi mudo, porque o que é um ritornello senão um pequeno retorno e o que é um pardal senão uma águia anã? Este “pequeno retorno” e esta “pequena águia” evocam a alegoria desenhada por Leonardo Da Vinci, na qual pode observar-se um boi indo num barco ao retorno de uma águia coroada que tem um orbe como poleiro – e, surpreendentemente, o mastro da embarcação é uma árvore de copado prolixo. Consiste numa alegoria do princípio ctónico – o boi – transformado pelo elemento fogo – a águia – em substância humana – a coroa. Esta é que é a verdadeira riqueza guardada pelos míticos anões mineralomórficos nas furnas mais fundas da terra – tesouro tão precioso que até um anão pseudonímico tem o dever de tutelar: o talento de transmutar a pedra em carne e a carne em imaginação.

Quantos tolos perderam a razão e a vida em vã obsessão pelo ouro, em traiçoeiros enleios de territórios subterrâneos, sem encontrarem uma única pepita? Porém, o raro e valiosíssimo ouro, metal tão notável que só pode ser dissolvido pela nobre água-régia, é, afinal de contas, alienígena: não é proveniente deste planeta e só foi aqui derramado há cerca de 4 mil milhões de anos por desapiedadas tempestades de meteoritos. Nessa altura, o caroço de ferro e fogo já cá estava: ele é que é a águia bicéfila do mundo – o ouro extraterreno é apenas a auréola dourada que a circula.

Mas existe ouro dentro de nós.

Existe ouro nas estátuas que esculpimos, nos quadros que pintamos e nos livros que escrevemos – e a arte, como o ouro, é impossível de falsificar. Aquilo que produzimos de mais precioso é, como o ouro, raríssimo. Sim, há minério dentro de nós: fundações de ferro e pedra, vigas de faia e pinheiro, mas sem o nimbo refulgente que nos coroa nada disso faria sentido, por mais bem arquitectado que fosse, por mais belíssimo que se apresentasse ou por mais perdurável que provasse ser. Existe ouro dentro de nós: não somos derrelictos. Não fomos lançados no mundo sem outra perspectiva além da morte, porque através da arte – do ouro – podemos transcendê-la. Todos somos, bem vistas as coisas, Anões dos Assobios: mestres metalurgistas daquele que é o metal mais magnífico que temos, o metal mais brilhante de todos – mas quantas vezes escolhemos abandonar ou destruir os nossos melhores quilates? Quantas vezes desistimos de extrair o ouro da nossa alma, porque faz demasiado calor nessa mina profunda e a aragem aparente nos arenga com sacarinas promessas de pirite?

Quasi-ressumbrante, como se fosse feito de gelo, o esqueleto do Anão dos Assobios foi apresentado no acabado Museu de Anatomia do Hospital de São José, onde faleceu em meados do século XIX, condizentemente ao período em que a Companhia Lisbonense de Iluminação a Gás instalou os primeiros vinte e oito candeeiros públicos em Lisboa – luzes que a gente intimidada logo intintulou de “luciferinas”, sem compreender o quanto essa alcunha, de facto, era adequada do ponto de vista etimológico. Diminuto, o esqueleto do Anão dos Assobios foi o Plutão do acervo de anormais ossaturas humanas, do qual fez parte a da tenebrosa Estanqueira do Loreto.

Plutão, possuidor da chave que todos os protagonistas procuram, mas que pouquíssimos são capazes de usar, é a caliginosa divindade da profundez que benzeu com o seu nome aquele que já foi o mais pequeno planeta do sistema solar, entretanto destituído dessa categoria por culpa da falta de volume: somente seis pontos decimais do da Terra – ainda mais pequeno que a Lua. Que maravilhoso magnetismo afluíu na Cintura de Kuiper, a mais de oito mil milhões de quilómetros de distância do Sol, para desovar tão grandiosa miudeza? Que sigilos guarda a crosta gelada de Plutão, a não ser gaitadas feitas de metano, nitrogénio e monóxido de carbono – atmosfera tão hadesiana quanto a do mitológico podredouro vigiado por Cérbero?

Existe ferro, aqui, no negro calcinatório do cosmos; e existe ouro, também, mais perto de nós, para lá de Mercúrio – e entre estes dois ventos, entre o fervescente Siroco solar e a glacial Nortada plutónica, estamos nós, milagrosa matéria viva: o único verdadeiro grande milagre do universo, pois que outro nome se poderá dar ao acidente em que proteínas anarquizadas deram origem a genes civilizados? Ou será que foram os genes a dar origem às proteínas? A verdade é que uns não podem existir sem os outros, por isso… Quem nasceu primeiro? O caos ou a ordem? O ovo ou a galinha? Esta cósmica diprosopia, este universal desespero é que é o verdadeiro Inferno: aquele em que o poeta florentino Dante pôs Plutão a roer as unhas; aquele em que Carlos II de Espanha babuja para cima das tripas mumificadas dos seus antepassados, arrancando os cabelos com astral pavor do porvir e assobiando ininterruptamente como se fosse uma chaleira ao lume; aquele em que, à morte do Anão dos Assobios, “setembristas” e “cartistas” se estoqueiam, esfaqueiam e espingardam uns aos outros na pequena guerra civil que ficará conhecida como a Patuleia. Tudo isto são paráfises da História; tão filamentosas e indiferentes quanto caudas de cometas.

Na paróquia da Pena perderam-se os restos mortais de Camões, a uma pedrada de distância do local onde se perderam os do Anão dos Assobios e os da Estanqueira do Loreto. Este sorvedouro de mártires da pátria é a Cintura de Kuiper de Lisboa. Aqui, a gravidade é tão rarefacta que nada persiste, nada tem hipótese de perdurar. Nem sequer o matadouro que aí fizeram no século XVI, nem sequer o manicómio oitocentista de Rilhafoles, mais tarde Hospital Miguel Bombarda, com o seu panóptico também em forma de sorvedouro. Aqui, nesta terra negra onde apenas corpúsculos são capazes de desforrar-se, de medrar, todas as hipóteses são fúteis fosforescências: luzidias e pontiagudas num imprevisto instante, mas repentinamente esvaecidas.

Faíscam em lentíssimas órbitas plutónicas, como serenas moedas no fundo de um poço. Tremeluzem tibiamente, como resíduos no fundo encardido de um crisol abandonado por um alquimista inepto.

Como chuva escorrendo pelos telhados numa manhã sem luz.

            Ruínas tornadas invisíveis pela corrosão da fantasia.

(Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense. Copyright © David Soares, Charles Sangnoir, 2012.)

sábado, 18 de maio de 2013

«Os Anormais»: «Terra Incógnita» integral


Muitas vezes, recebo por email pedidos de leitores que me perguntam se lhes posso enviar ou disponibilizar os textos de Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense (Necrosymphonic Entertainment/Raging Planet, 2012), spoken word escrito e interpretado por mim e musicado por Charles Sangnoir: um ensaio sobre a monstruosidade e a marginalidade, erguido sobre as vidas dos indivíduos excêntricos e deformados que viveram em Lisboa, ao longo de séculos. Sem excepções, a minha resposta tem sido sempre "não", porque este trabalho foi concebido para ser ouvido e não para ser lido; contudo, porque, de facto, recebo muitos pedidos, decidi publicar os quatro textos, aqui nos Cadernos de Daath.
Assim, começo com a publicação da faixa «Terra Incógnita», primeiro capítulo do disco - acompanhado do texto integral respectivo. Em breve, seguir-se-ão os restantes.

Terra Incógnita

Quando uma cidade quer nascer, ela escolhe o local – aquilo que os homens desejam não interessa nada. A metrópole molda-se, eternamente, à semelhança de uma divindade – e na sua configuração residem todas as dimensões da vida; inclusive as invisíveis. As laborações que têm lugar dentro dos seus muramentos são momentâneas, contingentes e dialipetálicas, mas o traçado urbícola sobre as quais se extinguem, era após era, encerra persistência cósmica. Na cidade, uma cultura cunha carácter, abre alicerces, alcança esquadria e transporta-nos da selva selvagem para a civilização. O burgo é como um mundo dentro do mundo e este interjeita-se no texto da história de acordo com o protótipo cosmopolita.

Além das casas e das praças, longe da muralha feita de cheiro e ruído, difunde-se um desolado terral desconhecido: a terra ignota, denunciada pela primeira vez no ano 150 por Cláudio Ptolemeu na sua Geografia. Subúrbios umbrícolas – sílabas soltas da urdidura urbanita, habitadas por hipopótamos, elefantes e escorpiões, canibais e outros vira-casacas: «aqui há leões». Os monstros dos mapas são marginais imaginários que vinculam a fronteira entre a terra incógnita e a realidade dos indivíduos que é, em exclusivo, composta pelos territórios dominados pelo seu rei – aquele que governa, graças ao beneplácito sagrado, e cujo título substantiva as regiões conhecidas. 
 
A anatomia da realidade é influenciada por um importante conceito aristotélico, sob o qual uma coisa só existe quando a forma é adicionada à matéria: esta é passiva, prisioneira da potencialidade, e a forma activa liberta-a. Por este ponto de vista, só existem as coisas que possuem formas definidas. Mas as formas aristotélicas não são os fenótipos dos organismos e dos objectos: são os seus tipos essenciais e já contém o desígnio final. Todas procuram constantemente a nobre ideia nelas contida – e quanto mais próximas dela, mais etéreas se tornam, porque a ideia ideal é Deus: ditatorial manancial de movimento que modela o mundo à Sua imagem. Este é o significado da serpente ourobórica e do lema dos alquimistas «o uno é o todo», mas é aqui, também, que se aloja a convicção discriminante de que os deformados monstrengos, avessos às formas ideais, não têm almas, porque, segundo Agostinho de Hipona, elas têm nojo de formas imperfeitas. De formas indefinidas. No extremo, de formas anormais.

A palavra anormal significa, literalmente, sem esquadria e entenda-se que o anormal é marginal, porque não há lugar para ele no centro; daí que se oculte nas fímbrias dos mapas e nos subúrbios, onde se ocupa do papel de estandarte de perigos vários, como um vulgar sinal de trânsito. A força gravítica do centro é o ritual, nos seus mais diversos feitios, mas o anormal é, por natureza, anti-ritual, em virtude da sua essência extraordinária – extraordinária no sentido de fora da rotina. Para desenhar-se o mapa da realidade é, antes de tudo, indispensável depreender o que é a forma e o que é a falta dela. Em suma, o que é ordem e o que é caos – e como aquela pode, com facilidade, transformar-se neste. A presença no centro do anormal, esse monstro diário – trivializado –, cancela o conceito de comunidade como agregador de potência civilizacional – afronta a lei natural que assiste ao nascimento da ordem e mostra-nos um espelho que somente reflecte a balbúrdia da biologia.

No anormal, tudo é orgânico, corpóreo, elementar – grotesco. A doença, por exemplo, é um estado excepcional de anormalidade, mas o enfermo retorna saudável ao centro quando é sanado. Em oposição, a anormalidade é uma genuína irregularidade que, quando irrompe, imediatamente questiona a lei – revê-a. O indivíduo anormal é um híbrido de humano e animal, logo uma monstruosidade. É um ser interstício, como os leões dos mapas, que tanto pode evocar a pena do observador como a sua repugnância, porque nada é mais repulsivo que algo que desafia a norma; algo que se apresenta de um modo inteiramente oposto ao previsto – algo em que tom, textura e temperatura são contrários ao que era esperado.

Os mecanismos de correcção voltados contra os anormais almejam mais a sua ocultação que a sua integração. Ninguém aceita beber o próprio cuspo, vertido antes para dentro de um copo, mesmo sabendo que o fluído é seu e que não contactou, em momento algum, com agentes poluentes: uma vez proscrito – descentrado – o elemento anormal, seja ele qual for, humano ou não-humano, nunca poderá regressar ao local de onde procedeu. A verdade é que quando as cidades são iluminadas pela glória do seu deus, que nem a Jerusalém Celeste – local restrito de bem-aventurança –, nelas não entrará ninguém considerado impuro, mas unicamente quem estiver inscrito no Livro da Vida do Cordeiro.

Só os inscritos poderão entrar – nunca os proscritos.

Sob as resplandecentes muralhas de jaspe da Jerusalém Celeste, incrustadas de berilo, safira, ametista e sardónica, erguem-se as – nada celestes – barracas dos excluídos: bairros da lata do sagrado onde a anormalidade, conspícua, quase se torna normal.

Vamos visitar os volutabros imaginais de Lisboa.

Vamos ver que anormais ela excluiu para a cercania – para os arrabaldes dos anais. Não será tanto etnologia, como reologia, pois falamos de gente deformada que foi repassada e escoada pela memória da história, mas como observar essa memória e essa história? De acordo com os fundamentos da “história total”, propostos por Braudel e, antes dele, por Michelet?

É melhor confiar na diacronia.

É melhor assumir que, tal como astrónomos, estamos a olhar para luzes pré-históricas, emitidas por estrelas extintas.

Estrelas defuntas como o desgraçado setecentista Gracioso das Bexigas que, com as suas patetices e o incessante berro de «arre-burrinho», regalava os transeuntes nos dias de procissões. Estrelas defuntas como o Poeta de Xabregas, obeso frade mariano que, em meados do século XVIII, agarrando um relicário e uma imagem da Virgem, andava de tasca em tasca a reclamar contra as touradas que roubavam público às missas: «está tudo com os cornos e a Casa de Deus sem ninguém», vociferava para gáudio da garotada e dos inebriados. Estrelas defuntas como o infeliz pai que, no século XIX, arrastava todos os dias o filho doente de igreja em igreja para assistirem ao maior número possível de sacramentos: debilóide, o rapazinho anexava o seu riso aos dos múltiplos paroquianos que troçavam do homem, apelidando-o de Papa-Missas, e, virando-se para o pai, gritava repetidas vezes «não é Papa-Missas, é Papa-Merda». Estrelas defuntas como as infelizes irmãs órfãs Carolina e Josefina, as Manas Perliquitetes, que, em meados do século XIX, depois de serem exploradas até à exaustão por um canalha desprezível que lhes deu a ridícula alcunha, tornaram-se injustamente no arquétipo da dondoca, antes de morrerem de fome na maior das misérias. Estrelas defuntas como o inexplicavelmente indigente José das Caixinhas, o Mano das Manas, sujeito magérrimo, escalavrado e esfarrapado, que vendia lindíssimas caixas coloridas feitas com arte em cartão e papel encontrados no lixo. «É para as manas, muita pobreza», apregoava: «comprem que é para as manas». Quem eram as manas? Ninguém sabia – e, a quem lhe perguntava, o Mano das Manas somente respondia: «estão muito doentes… Muito trabalho. Muita miséria». Ninguém acreditava nele e riam-se-lhe na cara, desprezando as fabulosas caixinhas multicolores que ele acarretava penosamente às costas, sem nunca as amarrotar; às vezes, até aos últimos andares dos prédios mais altos, à procura de clientes. E, no entanto, as manas – duas – existiam mesmo: no número 22 da Rua do Carrião, na freguesia de São José. Foram descobertas, já falecidas de fome, pouco tempo depois do Mano ter morrido e deixado de sustentá-las com o artesanato amoroso.

Vergonha, amargura, tristeza. Plangências profundas que envolvem os espíritos.
Que cidade é esta?

Esta não é a Lisboa que nos foi prometida à esplêndida portada, feita de jaspe.

Estas não são as personagens castiças do folclore que ela engendra para gazofilar turistas.

Há angústia autêntica aqui. Mensagens de sofrimento real, escrevinhadas no pó. Dor e raiva verdadeiros – espremendo corações nos peitos.

Quando uma cidade quer nascer, ela escolhe o local – aquilo que os homens desejam não interessa nada. A metrópole molda-se, eternamente, à semelhança de uma divindade – e na sua configuração residem todas as dimensões da vida; inclusive as invisíveis.

E nós estamos no invisível cosmos dos anormais.

Um Inferno inescrutável.

Antes de chegarmos, nada perturbava este espaço morrinhento, mas agora é possível distinguir dois distantes lampejos que nos iluminarão o caminho. Despertámos duas melancólicas presenças do passado que, como dois quasares que o vácuo não teve forças para apagar, possuem luz suficiente, balastro memorativo suficiente, para serem a voz de todos aqueles que já a perderam. Para serem nossos Virgílios.

A escuridão dilui-se à aproximação destas luzes inseguras. Os contornos indistintos dos séculos transactos acentuam-se, como estampas talhadas de fresco. Passando o estável proscénio em que nos achamos, vamos cobrir os narizes e avançar para estes pestíferos panoramas.

            O que é isto? Está?… Está a chover?!...


(Os Anormais: Necropsia De Um Cosmos Olisiponense. Copyright © David Soares, Charles Sangnoir, 2012.)

quinta-feira, 16 de maio de 2013

A Fatrasia

Hugo Ball, criador do Cabaret Voltaire, vestido com um fato dadaísta feito de cartão

Em meados da Primeira Grande Guerra, no ano de 1916, nasceu em Zurique no clube nocturno Cabaret Voltaire um movimento artístico que se internacionalizou com grande popularidade: o Dadaísmo, criação do poeta e músico romeno Tristan Tzara e do poeta alemão Hugo Ball (fundador e dono do Cabaret Voltaire). Buscando aleatoriamente o nome à palavra francesa para “cavalinho-de-balouço” (embora também possa ter originado de uma conhecida marca homónima de loção para o cabelo), o movimento artístico Dada pretendia romper com os códigos culturais e os valores da sua época, considerados culpados pelo conflito mundial, imprimindo para efeito sanatório uma receita exclusiva de exposição ao absurdo, através de obras de estética revolucionária – colagens de diversos materiais e também engenhosas fotomontagens –, mas, em principal, improvisadas interpretações de poesia e música absurdas que chocavam os espectadores. Importa reter que a premissa dadaísta mais apurada por cultores como o artista francês Marcel Duchamp e pela poetisa e artista germano-americana Elsa von Freytag-Loringhoven (a verdadeira criadora da famosa “fonte” feita com um urinol atribuída a Duchamp) foi o constante recurso ao refugo – ao lixo – para fazer arte. Foi por essa via que se criou o conceito de “descontextualização”, posteriormente adoptado pela Pop Art, pelo Surrealismo e pelo Pós-Modernismo. Porém, a noção de respigar refugo para fazer arte é mais antiga do que Tzara ou Ball talvez pensassem e esteve na génese de um famoso género literário medieval: a Fatrasia.

La Farce de Maistre Pierre Pathelin
O étimo de Fatrasia provém do occitano (língua medieval, falada no Sul de França e na Catalunha, derivada do latim, que esteve na origem do fenómeno trovadoresco e que possui no catalão hodierno o seu descendente directo) e consiste na palavra fatras que significa farrapo ou refugo. Nesse feitio, a Fatrasia foi um novo estilo poético que, através da reunião de referências populares (o refugo), sem sofisticação e, sobretudo, sem relação entre si (uma manta de farrapos, lá está!), apresentava histórias de forte componente absurda (por exemplo, a peça quatrocentista La Farce de Maistre Pierre Pathelin, de autor anónimo). Não eram obras moralistas, como as fábulas ou os exemplos, mas exercícios que, hoje, só podem ser baptizados de puro nonsense. Na própria província da Langue d’oc, não raro se declamavam Fatrasias musicadas, enquanto se dançava cabriolescamente com acrobacias de inspiração árabe que se aproximavam muitíssimo da breakdance contemporânea: em suma, era puro dadaísmo avant la lettre.

Breakdance medieval
Creio que a Fatrasia foi, certamente, seminal para o desenvolvimento de outro género, com cujo nome rima: a Fantasia – que, até à data, não existia, fora da hegemonia mitológico-religiosa, enquanto família de narrativas auto-coerentes, algo que só se cristalizou a partir do século XVIII. O conceito de “fantasia” enquanto modo fantástico de narrar ainda não tinha, sequer, sido fixado: na Península Ibérica medieval, assim como no Norte de África e no Próximo Oriente, chamava-se fantaziiâ, que é um nome árabe, aos exercícios equestres de corrida e destreza cavaleiresca, por exemplo, não havendo relação particular nem especial entre essa palavra (que provém do étimo grego phantasia, com o significado de aparição e ilusão) e o mundo literário coevo. Contudo, a partir do século XVI já se encontram obras que, na esteira dos cânones da Fatrasia (usando temas “popularuchos” – o refugo: humor grotesco e crítica ao clero e à nobreza), se assumem, declaradamente, como autênticas Fantasias (mas mais ou menos alegóricas, não apresentando, ainda, mundos fantásticos auto-contidos), como o inaugural diptíco de François Rabelais, Pantagruel (1532) e Gargantua (1534), e os influentes Don Quixote de Miguel de Cervantes (1605 e 1615) e Gulliver’s Travels de Jonathan Swift (1726).

Gargantua, em bebé, por Gustave Doré
Tenho defendido que o Fantástico foi (continua a ser?) uma importante arma de contestação social, uma literatura de ruptura com o sistema, e a Fatrasia medieval contribuiu, decididamente, com a injecção do absurdo, do delírio mais desbragado que – isto é importante – não precisava de arreigar-se rigidamente às referências clássicas, nem às hagiológicas. Contribuiu, pois, com esse hibridismo característico de caldear o absurdo (o impossível) com o real, que foi redescoberto pelos dadaístas e, a partir deles, contaminou a literatura pós-moderna e até o chamado “realismo mágico”.

Mas existe outra afinidade entre a Fatrasia, a Fantasia e o Dadaísmo: a guerra.

A cruzada sangrenta que o papa Inocêncio III instigou contra os heréticos cátaros da região da Langue d’oc coincidiu com o período áureo do fenómeno trovadoresco e da Fatrasia. As reinvenções ocidentais da Fantasia ocorreram em força nos períodos subsequentes às duas Grandes Guerras. E o Dadaísmo foi uma consequência directa da frustração cultural e artística sentida durante a Primeira Grande Guerra. Vale a pena reflectir sobre estas coincidências. No fundo, o que elas nos mostram é a profunda inquietação da imaginação humana, a recusa da barbárie e do fratricídio e a busca dessa qualidade redentora, tão luminosa, que somente o sonho pode oferecer com generosidade. A verdade é que hoje, como ontem, somente a Fantasia, em tudo aquilo que ela encerra, é capaz de nos salvar.

Representação de época de um comum teatro medieval de rua, em que as peças eram improvisadas pelos actores, mas também pelo público - todos mascarados, porque o anonimato era a regra de ouro nestas interpretações vadias, feitas de canções, poemas e improvisos variados, sempre com o absurdo em mente. Dadaísmo ducentista, portanto.