A centenária livraria lisboeta Sá da Costa, de portas abertas no coração do Chiado desde 10 de Junho de 1913, foi declarada insolvente pelos seus credores e extinguiu-se.
A importância do papel que a Livraria Sá da Costa desempenhou na cultura portuguesa foi - e é - inestimável: como exemplo, basta mencionar a
Colecção Clássicos Sá da Costa, que a preços de capa muito baixos disponibilizou obras verdadeiramente essenciais para a formação literária e intelectual de todos os leitores. Títulos como as quatro
Décadas de
João de Barros (autor quinhentista que escreveu a primeira gramática da língua portuguesa, em 1540: ninguém poderá compreender aquilo que foi o século XVI português sem ter lido a sua tetralogia fundamental), os
Diálogos de Roma de
Francisco D'Ollanda (um dos nossos mais importantes e ilustres criadores), as cartas e a poesia completas de
Sá de Miranda (pai do soneto português), a poesia de
Bocage, a obra completa de
Gil Vicente, o indispensável
A Corte na Aldeia de
Francisco Rodrigues Lobo (quem nunca leu este livro não conhece com profundidade o nosso século XVII), a grande obra
O Verdadeiro Método de Estudar do iluminista
Luís António Verney (
sobre o qual escrevi há poucas horas), a obra (quase) completa do
Padre António Vieira (mas escrita em português, não em "acordês"), as crónicas do
Cavaleiro de Oliveira (pseudónimo do escritor setecentista
Francisco Xavier de Oliveira, pioneiro na denúncia corajosa contra a Inquisição), os relatos superiores de
Frei Luís de Sousa (necessários para compreender-se convenientemente a sociedade quinhentista portuguesa), mas também obras de escritores contemporâneos, como
António Sérgio ou
Carlos de Oliveira.
Era este o calibre dos livros de bolso editados há uns anos.
Hoje, quem os lê? (E quem os edita?)
Quem é que sabe quem foram estes autores?
Mas, por outro lado, talvez se saiba de cor os nomes dos concorrentes dos reality shows que estão a passar neste momento nos canais televisivos, os nomes de todas as namoradas que o Cristiano Ronaldo já teve ou os enredos de todas as telenovelas que são transmitidas diariamente, em muitos casos, umas a seguir às outras. E, no entanto, não se sabe quem foi Sá de Miranda, nem Rodrigues Lobo, muito menos quem foi Francisco D'Ollanda.
Vivemos em tempos bem miseráveis, mas, lá está!, cada um sentir-se-á confortável em escolher aquilo que lhe é mais adequado: não é obrigatório ler bons livros, assim como não é obrigatório encher de lixo a cabeça.
É muito natural que cada um escolha aquilo que é mais adequado às suas capacidades.
Infelizmente, o lixo quase sempre sai a ganhar, vá lá saber-se porquê; e a Livraria Sá da Costa - à qual agradeço a edição de títulos vitais (neste momento até tenho alguns à frente, sobre a secretária, que estou a consultar para a escrita de um novo trabalho) - acabou. Os credores exigiram-lhe a extinção para saldarem-se as dívidas - se, em vez de uma livraria, a Sá da Costa fosse um banco teria, certamente, recebido fundos milionários para ser resgatada.
Por toda a Baixa Pombalina é possível ver-se dezenas de agências bancárias construídas nas carcaças deixadas vazias pelos cafés típicos que foram fechando: é possível que o mesmo fenómeno aconteça com as preciosas livrarias que vão morrendo, também, pela Baixa e arredores. Confesso a minha confusão e angústia quando, numa destas tardes, me dirigi a uma delas, que era das minhas preferidas, e descobri que tinha fechado: ver as portas e a montra fechadas deu-me a sensação de terem cortado, literalmente, um pedaço da rua - para mim, ver a rua sem aquela livraria aberta, na qual comprei livros que tanto me enriqueceram, foi como ver o coto de um membro amputado.
Há coisas para as quais não tenho estômago - e a morte da cultura é uma delas.
Apareçam, indignem-se e, sobretudo, comprem um livro.