sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Caetera desiderantur: centenário da morte de Barão Corvo

A obscura obra literária de Frederick Rolfe (o apelido deve pronunciar-se Rofe, como o autor preferia), autodenominado Barão Corvo, pode (para efeito simplificativo) classificar-se como sendo um synallagmatikós entre o romance histórico e a autobiografia; porém, a ficção autobiográfica de Corvo não possui nenhum grau de parentesco com aquelas ficções interinsulares sobre escrevinhadores que lutam contra hipsobatimétricos bloqueios criativos, sempre desfeitos no último momento do prazo de entrega do texto por alguma inspiração que musos providenciais lhes insuflam quase por acidente. De facto, em romances como Nicholas Crabbe: or, The One and the Many, escrito, provavelmente, em 1904, mas somente publicado em 1958, e na sua sequela The Desire and Pursuit of the Whole, escrito entre 1909 e 1913, mas apenas publicado em 1934, é mostrado ao pormenor o dia-a-dia loxodrómico deste autor que, mesmo morrendo de fome nas ruas de Londres e Veneza, nunca deixou de trabalhar que nem um "taylorista" nos seus manuscritos, por ele caligrafados e encadernados com requinte - na verdade, poucas vezes uma palavra poderá ser tão bem aplicada como neste caso, pois caligrafia significa escrita bela (ou estilo admirável, se quisermos ser um pouco mais poéticos) e a letra de Corvo é belíssima, sempre desenhada com cores incomuns.

Nessa actividade maníaca é sedutor ver-se a herança rigorosa dos monges miniaturistas medievais, até porque Rolfe nunca aceitou o facto de lhe ter sido recusada uma carreira eclesiástica no seio da igreja católica: antes de ser escritor (e pintor e fotógrafo), apenas quis ser padre, mas foi, prematuramente, expulso do Scotts College de Roma, onde estudava os preceitos sacerdotais. Privado de ingressar num ofício sagrado, Corvo atravessou uma espécie de processo teantrópico: ou seja, do Divino para o Humano - do sacerdócio para a criação artística, entenda-se. Pioneiro da fotografia a cores e subaquática, foi nas letras que revelou ser um artista de elevada qualidade, criando desde cedo um estilo autoral distinto, mas incompreendido pelo grande público em virtude da sua ornamentalidade, que mescla referências clássicas, trechos compostos em latim e grego (sem tradução), uso de um verbomaníaco vocabulário, pejado de palavras crípticas e neologismos, mas, sobretudo, remordente no imperdoável ferrão com que espicaça os seus adversários. Melhor que ferrão: pinças!, pois o caranguejo foi seu signo zodiacal e avatar (a personagem Nicholas Crabbe é a corporização mais reconhecível). Mas, em italiano, a palavra corvo significa, gulosamente, escritor de cartas anónimas - geralmente, as verrinosas. O poeta Wystan Hugh Auden apelidou Rolfe de «mestre da vituperação», aludindo às famosas cartas (não-anónimas) com que este esfiapava os seus adversários do meio literário, da alta sociedade e da ICAR.

O estilo erudito e arisco às estruturas convencionais de enredo plasmado nos seus romances e a visibilidade catacáustica que estes foram reunindo ao longo das suas provisórias publicações têm afastado o Barão Corvo de gerações de leitores que, hoje, mais do que ontem, talvez não possuam as chaves necessárias para decifrá-lo. O mundo literário tarda em reconhecê-lo, em parte porque Corvo não teve campeões da crítica: é, sobretudo, um escritor que é lido e admirado por escritores - quando é lido, de todo.
Enquanto conhecedor e admirador da obra de Corvo, sublinho que ela se encontrava muito à frente do seu tempo, na hábil concatenação de modos diversificados de escrever: como o (autêntico) romance histórico e a ficção biográfica, que já citei, mas, também, prolepticamente, o romance neológico "joyceano" ou "proustiano". Autónoma à adversidade que o animou contra a igreja católica, enquanto instituição, a fé que professou foi intensa, mas esta nunca influíu sobre a sua obra literária: nenhum romance de Corvo apresenta as ideias de perdição e de perdão que podem ler-se nos redentoristas romances "católicos". Também não foi um decadentista, embora a sua obra toque tangencialmente nessas temáticas. Em maior espessura, Corvo poderá inscrever-se na mesma família de autores autobiográficos, como Thomas De Quincey - ou George Gissing, autor do pungente New Grub Street, que, nem de propósito, partilha proeminências com o mundo de Nicholas Crabbe: em ambos os títulos, é descrita a difícil vida dos escritores eduardianos e, em ambos, os desfechos são terríveis, embora em Nicholas Crabbe se sublevante uma maior sinistralidade, porque personagem e autor se encontram aí separados por uma membrana muito mais transparente que em New Grub Street. E isto é dizer muitíssimo, porque o final de New Grub Street é um dos mais dispépsicos que já li.
Passados cem anos após a sua morte, Corvo e a obra que deixou permanecem excêntricos - no sentido de fora do centro. Dificilmente poderia ser de outra forma: hoje, para ter sucesso, basta estar onde está o mercado - e, para isso, ser-se bom não interessa nada, quando não consiste, até, num obstáculo.

A maioria das biografias existentes sobre Frederick Rolfe (são apenas quatro - e uma foi publicada no passado mês de Abril) insistem em vê-lo como um verrinista que injustiçou aqueles que, no fundo, até o quiseram ajudar, mas observando com atenção as informações factuais e as correspondências que chegaram até nós é flagrante que Corvo estaria, de facto, nas listas negras de algumas publicações, editoras e até de certas esferas católicas. O seu feitio frontal e a intolerância que tinha à mediocridade facilmente o faziam cair em desgraça diante dos bonzos da altura. Fascinado pela sua queda, o biógrafo A. J. A. Symons compôs em The Quest For Corvo um retrato empático, ainda influente, mas algo pseudoepigráfico - faz-me lembrar a biografia de Fernando Pessoa escrita por João Gaspar Simões, que até é uma leitura empolgante, mas nubivagante. Robert Scoble, autor de Raven: The Turbulent World of Baron Corvo, beneficia de informações mais apuradas e corrigidas, mas, ainda assim, desenha um perfil psicológico assente na crença de que o autor de Hadrian The Seventh sofria de um transtorno de personalidade paranóide, para o qual não existia medicação.
Com maior ou menor razão para isso é sempre tentador ver sinais de doença mental no comportamento dos artistas, porque dessa maneira o seu carácter único - que o têm - excresce de uma deficiência e não do génio. A verdade é que os homens pequenos não gostam dos homens grandes - se estes forem doentes, encontrar-se-ão mais próximos da pequenez daqueles. É possível que Rolfe padecesse de paranóia - ou até de transtorno de personalidade limítrofe, sabemos lá -, mas eu acho que aquilo que o atormentava e que, concomitantemente, o levava à depressão, era o simples facto de ter plena consciência de que era um gigante entre anões; era o simples facto de, por culpa desse isolamento intelectual, ter de tolerar, consentir, deixar passar, o comportamento, a boçalidade e a deslealdade de homens de menor qualidade.

Poucos escritores declararam a sua admiração por Corvo: Ronald Firbank, Evelyn Waugh, Graham Greene e Alexander Theroux serão, provavelmente, os casos mais conhecidos - e entusiastas. Descobri a obra de Rolfe com o romance Hadrian The Seventh, publicado em 1904, que tem como protagonista outro avatar corvino: a personagem George Arthur Rose, amigo de Nicholas Crabbe, que, numa reviravolta inesperada, é eleito Papa. Há poucas linhas escrevi que Rolfe passara por um processo teantrópico e, na verdade, o Humano que encontrou ao descer do Divino foi ele próprio: Rose, ou Hadrian VII, não perde tempo com assuntos espirituais, como os Papas comuns; antes prefere moldar "maquiavelicamente" os assuntos seculares (e é bom que haja tabaco suficiente até o mundo ser refeito à sua imagem). Aquilo que me atrai na obra de Rolfe é a sua omnivagância, a sua visuriência, o sentimento libertador de que se está a ler um autor que não está preocupado com mais nada a não ser a indulgência de imergir-se completamente no seu próprio mundo.
Este texto, publicado neste dia, é a minha contribuição para que se mantenha viva a memória e a obra deste criador único, que, como poucos, foi movido por um fogo interior de uma enormíssima resistência.    

Frederick Rolfe, o Barão Corvo, morreu em 25 de Outubro de 1913, num quarto do hotel Palazzo Marcello, à beira do Grande Canal, em Veneza. Conseguira convencer o dono do hotel a dar-lhe, finalmente, guarida, depois de passar meses a dormir na rua, onde contraíu bronquite e foi constantemente mordido por ratazanas. No entanto, nunca deixou de escrever e, ao falecer, deixou terminado mais um romance: The Desire and Pursuit of the Whole - um título aristotélico que dá o sopro de vida a uma espécie de sequela, com final feliz, de Nicholas Crabbe. Mas Corvo não teve um final feliz. Morreu sozinho, ignorado e sem ver a sua obra reconhecida. Está sepultado no cemitério veneziano de San Michele e serão pouquíssimos aqueles que o visitam.
Todos os homens morrem sozinhos - mas existem alguns que têm tanta solidão dentro deles que morrem mais sozinhos que os outros. Caetera desiderantur - ainda falta o resto.
A verdade é que ainda falta o resto todo.