sábado, 12 de outubro de 2013

Gravitas


Acho que Gravidade, de Alfonso Cuarón, é um bom filme, mas não fui capaz de emocionar-me como esperava. Para começar, o argumento é quase inexistente e a maioria dos diálogos só existe para preencher o silêncio sepulgrave do cosmos: ainda no preâmbulo da provação que se seguirá, a personagem interpretada por George Clooney alerta a personagem interpretada por Sandra Bullock sobre a conveniência de estar-se sempre a falar, mesmo que não se diga nada de concreto, de modo a que a estação terrena da NASA dê pelas suas presenças. E, com efeito, a maioria dos diálogos surge somente como um farol que vai piscando no meio do breu, embora, na minha opinião, isso não seja o maior problema do filme, porque, desde o início, somos levados pela mão com inegável mestria por uma história de pura sobrevivência, na qual a própria sobrevivência, num ambiente ultra-hostil, é, sem decorações, o único móbil. Mas, nesse sentido, o filme deveria assumi-lo sem complexos: ou seja, a haecceitas de Gravidade é, sem dúvida, a luta pela vida travada pela cosmonauta corporizada por Bullock que, ultrapassando o velho tropo do "homem (ou da mulher) contra o mundo", surge como alguém que precisa de derrotar o universo. Escreveu Catão-o-Velho, «rem tene, verbas sequentur» («agarra o tema e as palavras seguir-se-ão»), mas, em específico, o tema da sobrevivência solitária não precisa de palavras. Talvez não sejam os exemplos ideais de comparação para este caso, mas filmes como Few of Us (1996) de Sharunas Bartas ou Mãe e Filho (1997) de Aleksandr Sokurov já demonstraram como o silêncio pode ser tão conducivo da contemplação como inquietante e aquilo que falta a Gravidade é, sobretudo, inquietação. No seu quasi-hibridismo entre o ficcional e o documental, o filme de Cuarón falha em inquietar o espectador, constantemente posto fora do filme por culpa dessa indecisão que rompe toda a cumplicidade, e, por ironia, o momento mais perturbador dos seus noventa minutos de duração passa-se na Terra.
A duração do filme é, de facto, outro problema: Gravidade precisava de mais espaço - e isto não é nenhum trocadilho. Porém, é possível que o público contemporâneo não esteja preparado para fôlegos "kubrickianos", porque aos primeiros minutos do "longo" plano de sequência do início dei por mim a ouvir murmúrios de impaciência de outros espectadores - a montagem frenética dos vídeos musicais que foi transposta para o cinema na segunda metade dos anos noventa do século passado formatou toda uma geração à velocidade vertiginosa do teledisco e do videojogo, obrigando muitos realizadores a caminhar cada vez mais nessa direcção. À luz disso, este esforço de Cuarón até é heróico, contextualizado no espectro do cinema norte-americano, produzido pelos grandes estúdios: será, provavelmente, o filme-contemplativo possível, hoje em dia... Aliás, Cuarón é um cineasta de grande calibre: falando em planos de sequência, recorde-se o exemplo notável de equilíbrio de tempo e de espaço, e muitíssimo bem interpretado por Clive Owen, que pode ser visto perto da conclusão de Os Filhos do Homem (2006). De igual modo, Bullock e Clooney (ambos capazes da pior canastrice) são exemplares na composição das personagens semi-unidimensionais que lhes são dadas, granjeando sem dificuldade a nossa empatia, ficando provada a qualidade de Cuarón como director de actores.
Feito com o rigor científico possível (contornando-o quando este poderia tornar-se um obstáculo à própria linguagem do cinema, porque, no espaço, aquilo que apelidamos de "senso comum" não existe e seguir a realidade resultaria num espectáculo bizarro para o espectador), suportado por interpretações desarmantes e filmado com muita arte, Gravidade é o filme que eu ansiava por ver há bastante tempo (sóbrio, maduro, inteligente), mas, ainda assim, é demasiado curto e circunspecto para que brilhe todo o potencial que encerra, o que é uma pena. No entanto, para quem achou que Avatar, de James Cameron, foi um fiasco de filme (eu acho que Avatar é péssimo), Gravidade será o colírio certo: eye candy de elevadíssima qualidade, embora servido com um inesperado sentido de discrição.