terça-feira, 29 de outubro de 2013

Comentário sobre «Astérix Entre os Pictos»


A capa de Astérix Entre os Pictos, novo livro de banda desenhada da série Astérix, quase resgata do esquecimento o sentimento mágico que os melhores títulos dessa colecção evocam, mas escorrega num pormenor que poderá ser ignorado pelos leitores menos sensíveis às questões relacionadas com o tom que as narrativas devem ter: é um desenho que cai no erro de nos mostrar os Pictos.
Ora, o grande truque dos álbuns de Astérix, em particular daqueles cujas histórias podem classificar-se de "grandes viagens", é, precisamente, nunca desvendar o aspecto e o carácter dos povos que os gauleses visitam - e quando aqueles aparecem nas capas, como em Astérix Entre os Bretões e Astérix na Hispânia, por exemplo, tais figurações frontais não passam de cameos (na maioria, de personagens secundárias), que nada desvendam sobre as características particulares dessas etnias. O facto é que, tal como em Jaws, de Steven Spielberg, em que o tubarão permanece oculto durante quase todo o filme, também as lacónicas capas de Astérix cumprem a função de manter misteriosa e interessante a história. Um caso paradigmático desse modus operandi será, provavelmente, a capa de Astérix e o Caldeirão, com um desenho completamente alegórico - económico, até. Esta opinião poderá parecer insignificante, mas relaciona-se com aquilo que faz as melhores histórias de Astérix serem especiais: uma boa história de Astérix nunca se apoiou em fórmulas e em lugares-comuns - e, de há uns livros para cá, o universo de Astérix transformou-se numa bula farmacêutica na qual estão listados os ingredientes e os efeitos previsíveis que provocarão.
Se os livros a solo de Uderzo inventaram e esticaram perigosamente essa fórmula, ao ponto de rebentá-la (O Pesadelo de Obélix é, na minha opinião, o livro em que se opera esse rebentamento), este novo álbum, escrito por Jean-Yves Ferri e desenhado por Didier Conrad, demonstra que ela está irremediavelmente quebrada: ou seja, nem um par novo de mentes, com algum talento, diga-se, é capaz de regenerá-la, num livro que se lê como se fosse um receituário, com a introdução de quase todos os chavões asterixianos, alguns estribilhados num espaço de poucas pranchas, o que culmina numa irritante saturação "museológica".


Não me perfilo entre os críticos dos elementos "disneyescos", chamemos-lhe isso, que Uderzo introduziu num número cada vez maior nos álbuns recentes, porque eles sempre fizeram parte do mundo de Astérix, como pode ler-se em O Combate dos Chefes, entre outros títulos - mas na escrita de Goscinny, o antropomorfismo nunca passou para o primeiro plano da narração; ou seja, sempre assinalou momentos de humor e de fantasia mais desregrada entre personagens secundárias, nunca interagindo com as principais, criando, desse modo, uma distância que mantinha coerente o cômputo dentro das linhas mestras do universo de Astérix. Podíamos ver, em segundo plano, os javalis a falar uns com os outros (em A Odisseia de Astérix, já com Uderzo a solo) ou os animais da floresta armoricana a assistir às lutas dos gauleses com os romanos, mas nunca víamos os javalis a falar com os gauleses ou os animais a interagir com estes - como na sofrível cena com o golfinho em Astérix e Latraviata. Em suma: o problema está na miscigenação daquilo que eram apontamentos secundários de humor com os elementos da narrativa central, o que quebra a cumplicidade do leitor.
Astérix Entre os Pictos traz para primeiro plano uma espécie de avatar do Monstro de Loch Ness, mas isso era expectável (afinal, está-se na Escócia), embora, neste ponto, me dê vontade de recordar outra aparição de outro avatar do monstro lochnessiano, também numa banda desenhada franco-belga, que, acredito, é muito melhor conseguido: a meio de San António na Escócia, a personagem Béru, ébrio e incompetente inspector que auxilia o comissário San António, diz, com perturbação, ter pescado o célebre Monstro de Loch Hater, mas nem as personagens, nem o leitor acreditam nele até à última vinheta do álbum, na qual o monstro aparece (e numa excelente caracterização, mais espectacular que a de Ferri e Conrad). Dava vontade de ver algo semelhante acontecer entre Obélix e o Monstro de Loch Andloll, ao qual ele chama "lontra": uma hipótese teria sido Obélix passar o álbum inteiro a falar sobre a tal "lontra" que ia vendo no lago para, no final, o monstro aparecer e assustar toda a gente, ficando Obélix sozinho, de braços cruzados e a bater o pé, gozando o facto de se ter "tanto medo de uma lontra". Também teria sido mais indicado que a personagem principal Mac Brasa, o picto que, no início, os gauleses salvam do gelo e levam de volta à sua terra, fosse uma caricatura de um actor escocês famoso nos dias de hoje (como Gerard Butler, por exemplo), o que tornaria satírico (em vez de "revisteiro") o enfatuamento que as mulheres da aldeia gaulesa sentem por ele. São, apenas, duas ideias que poderiam ter elevado a outro nível este Astérix Entre os Pictos que, infelizmente, se esgota em trocadilhos duvidosos e derivativos, em referências tão aleatórias que perdem todo o humor que poderiam ter em circunstâncias melhores e na bola-e-corrente do receituário asterixiano que pesa muitíssimo nos últimos cinco ou quatro álbuns da série.

Astérix Entre os Pictos também ignora a cronologia dos álbuns anteriores: em Astérix e os Bretões, um taberneiro "inglês" alude ao carácter avarento dos caledonianos (escoceses) que, nesse álbum, já estariam num estádio civilizacional um pouco mais desenvolvido que o dos Pictos do novo livro. O whisky também já era conhecido de outros álbuns, por isso a sua descoberta neste título não faz sentido. Reconheço que se trata de um livro humorístico, mas, ainda assim, uma observação histórica mais acertada faria maravilhas à narrativa principal. Em resumo: os pictos não foram os antepassados dos escoceses - foram um "povo" (falar-se em "povos" no que diz respeito a estas eras é sempre conjectural) assimilado pelos invasores Escoceses (do nome romano scoti, derivado de scotia, que significa goteira - uma alusão ao clima chuvoso e frio daquelas regiões setentrionais), que vieram da Irlanda do Norte. Por conseguinte, os actuais escoceses não descendem dos pictos, mas de um cruzamento de (pelo menos) duas etnias: 1) os invasores escoceses que vieram da Irlanda (Hibérnia) e 2) os pictos que assimilaram. Ainda hoje, a língua escocesa retém influências directas do dialecto desses invasores escoceses, o chamado Celta Q* - como a pitoresca palavra mac, que significa filho. O fetiche picto que os escoceses têm é, analogamente ao fetiche lusitano que têm os portugueses e ao fetiche gaulês que têm os franceses, uma mera tentativa romântica de encontrar-se um único povo, quasimítico, que seja antepassado e fonte originária das virtudes de um país, mas de um ponto de vista histórico, científico, ficções dessa natureza não se sustentam, por mais ressonância que repercutam em certos sectores da sociedade. Daí que teria sido interessante se Astérix Entre os Pictos tivesse mostrado esse conflito entre os pictos e os escoceses, injectando humor nas diferenças de dialecto (o hibérnico Celta Q e o "britânico" Celta P), nos costumes dissemelhantes e nas tentativas dos romanos de governar duas etnias ingovernáveis.

Escrevo este comentário por duas razões: porque o material que serve de inspiração ao álbum poderia, como vimos nos parágrafos anteriores, ter sido explorado de uma forma mais rica; e porque se perdeu uma oportunidade de, verdadeiramente, revitalizar Astérix.
A série Astérix tornou-se famosíssima e incontornável pela sua iconoclastia. Está, pois, na altura de quebrar a imagem construída nos últimos álbuns para que estas personagens que todos nós gostamos possam respirar um novo sopro de vida que não cheire a homenagem, muito menos a cliché. Este Astérix Entre os Pictos é um esforço fraco nessa direcção, mas é provável que ela venha a ser alcançada num próximo livro. Seja como for, esta fórmula está gasta, completamente.


* - A designação Celta Q é a corrente, mas, como já escrevi em outras ocasiões, a palavra celta é mal aplicada. Celtas deriva do nome grego keltói, que significa bárbaros ou estrangeiros. Por conseguinte, falar-se em celtas é exactamente a mesma coisa que falar-se em bárbaros. Nunca existiu nenhuma civilização, cultura ou língua celtas: existiram civilizações, culturas e línguas que dessa forma foram apelidadas, nos textos clássicos, para efeito de simplificação. Os celtas nunca existiram.