O espectáculo Bairro Alto: Uma Cirurgia, actuação em spoken word interpretada por mim (texto e voz) e por Charles Sangnoir (música) foi um êxito e quem não foi nunca saberá o que perdeu.
No belo vestíbulo do Palácio Quintela, misto de templo e salão artístico, invocou-se a história e a lenda do Bairro Alto, numa cirurgia psicogeográfica que se iniciou com a apresentação de uma canção original de Charles Sangnoir, composta propositadamente para este evento e intitulada Marinheiro de Aguardente, uma toada melancólica, de muitíssimo bom gosto; depois (e sem anestesia), seguiu-se a interpretação do meu texto, Bairro Alto: Uma Cirurgia, escalpelização erudita de quinhentos anos de história bairro-altina, exumatória de locais e personagens, como Fernando Pessoa, Aleister Crowley, Padre António Vieira, António José da Silva, o Judeu, Eça de Queirós e Júlio Verne.
Deixo-vos umas fotos do espectáculo e o texto que interpretei.
Bairro Alto: Uma Cirurgia
Tão longe deste lugar, que mais parece pertencer a um universo imaginário, repousa a imensa massa de gelo do Oceano Árctico, cujas águas frígidas cingem o norte da Islândia. Se o hostil panorama glacial é incontrastável, a vulcaniana paisagem islandesa é negra, gabra, quasilunar. Vista do espaço é uma vasta e ominosa vitiligem perdida num pélago preto – catarata no olho do mundo. Esta é a Última Thule descrita pelo geógrafo grego Píteas de Massalia, o primeiro explorador a intuir a intimidade entre os movimentos das marés e a robustez gravítica da Lua. É um território terrível, obstruído por omálgios monstros marinhos que blasonam vapor quando rompem a superfície de uma água que, segundo Píteas, não é líquida, nem sólida, mas dúctil como polpa de alforreca. Os monstros, claro, não existem: sabemo-lo, porque não foram descobertos em 2006 pela equipa científica que desbravou os ctónicos segredos dessas profundezas. No entanto, esses investigadores descobriram algo tão invulgar, tão extraordinário, que até lhe deram um nome. Chamaram-lhe Ming.
Ming é uma amêijoa.
O oceano, com todo o seu peso, envergonha-se defronte do sofrimento contido numa única lágrima e a morte de uma estrela não se compara à ruína de uma mente moribunda: existe uma especialidade nas coisas pequenas; um lirismo minimalista que, tantas vezes, oculta a linguagem encoberta que nos permite falar com ciclópicas e inflexíveis forças. O arco-íris só tem sete cores. Oito notas permitem-nos compor toda a música existente. Com vinte e seis letras escrever-se-ão todos os livros que existirão até à morte do mundo. Porém, a concha mate de Ming, vincada pelo entrecruzar das estrias radiais com as características caneluras de crescimento, esconde o maior arcano do cosmos: o da longevidade. Este molusco lamelibrânquio, achado numa das regiões mais inóspitas do planeta, morreu quando tinha quinhentos e sete anos de idade: é o animal mais velho jamais encontrado – um diminuto coração calcárico, sumido entre o abismo. Quando germinou, Cristóvão Colombo ainda não tinha chegado à América do Norte e Luís de Camões e William Shakespeare não tinham nascido.
Qual é o segredo da longevidade?
Como é que algo tão insignificante pôde viver durante mais de meio século?
Que outros tipos de organismos ditosos serão capazes de bater esse olímpico recorde?
Observemos o Bairro Alto, quase tão velho quanto a amêijoa. A calandragem do tempo desgasta os detalhes e as datas. Só sabemos que os loteamentos se iniciaram em 1513 e que catorze anos depois contava com quatrocentos e oito edifícios e com mil moradores. Em 1551, ano em que os jesuítas aí assentaram, já existia a Rua do Norte, a dos Calafates, a da Atalaia, a da Salgadeira, a de São Roque, a da Rosa das Partilhas e a das Gáveas, mas esta história poderá ter começado um pouco antes. A cirurgia, afinal de contas, é sempre o último recurso, tantas vezes olhado com preconceito, principalmente em finais do século XV – outros métodos, não-invasivos, menos rústicos, diga-se, teriam, necessariamente, de ser tentados primeiro. Não se duvide que o Bairro Alto foi uma cirurgia. Lisboa estava muito doente.
A mesa de operação foi o terreno apelidado de Cotovia: montureira que, abarcando a área dos presentes Largo do Rato, Jardim do Príncipe Real e Praça da Alegria, estendia-se na direcção do Tejo, circunscrevendo em plenitude a encosta de um planalto abatido abruptamente a Norte, mas declinado com doçura para Sul. O proprietário desse arredado arrabalde, atapetado de oliveiras e alcandorado a ocidente da austera muralha fernandina, foi Mestre Guedelha Palaçano, intrigante físico e astrólogo judeu de D. Afonso V. O compêndio oitocentista Monstruosidades do Tempo e da Fortuna assinala um episódio de anti-semitismo olisiponense que consistiu na anexação na porta da Igreja de São Roque de uma pasquinada de protesto pela pretensa diligência do regente Infante D. Pedro querer edificar uma enorme sinagoga em Lisboa no ano de 1673. Nessa altura, grupos de cristãos embuçados bateram as ruas da cidade, gritando «viva Cristo» e «morte ao judaísmo», ecoando os libelos que, em 1487, tinham coagido a viúva de Guedelha Palaçano a aforar os terrenos da Cotovia ao cristão Filipe Gonçalves, estribeiro de D. Manuel I; todavia, passados onze anos, na sequência da expulsão dos judeus de Portugal, a mulher vendeu as terras ao fidalgo Luís Atouguia. Em 1513, o seu filho, Lopo de Atouguia, acordou com o aforador Bartolomeu de Andrade, genro do tal estribeiro Gonçalves, o sub-aforamento em talhões dessas herdades, aderindo ao protótipo que fora principiado poucos anos antes com o ensaio da Vila Nova da Oliveira, edificada contiguamente à cerca do vizinho Convento da Trindade. Essa afinação urbanística ganhou maior sofisticação no traçado do novo bairro que foi cognominado com o apelido do aforador: Vila Nova do Andrade. A gente pobre – pescadores, em principal – que, entretanto, se fixara fora da muralha à margem do rio, olhou para cima, pelas janelas das suas choças, e encantou-se por aquele sítio que, no proémio do século XVII, o clérigo Baltazar Teles classificou como «se não o mais frequentado, ao menos o mais gabado; o sítio mais alto da cidade (…) mais lavado dos ventos, e mais purificado dos ares». A nobreza, claro, não tardou em seguir o exemplo dos pescadores – e, poucos anos depois, o clero também aderiu, na comparência dos jesuítas. Os frades inacianos polarizaram sobre o local um magnetismo poderoso, rasurando com rapidez o anódino apelido Andrade para impor o nome Bairro Alto de São Roque.
Qual é o segredo da longevidade? Será que um bairro sonha?
Como é que este pôde viver durante meio século?
O Bairro Alto podia muito bem ter definhado ao grito primevo de partida e não passar de uma espécie de zingamocho na corola lisboeta – uncial e rebocado como um quadro falsificado. Quantos bairros e freguesias não se extinguem, em tétrica tanatocenose, no côncavo leito da história? Toda a matéria possui uma peculiar pecabilidade que empolga o estrago e nem a xilolatria, nem a litolatria podem remir da ruína esses restos. Os bairros desaparecem, como se coordenadas geográficas e temporais estiolassem ao Sol que nem fotos expostas numa vitrina. As linhas do território afunilam, absorvem-se até ao ponto e, finalmente, atravessada a fronteira da unidimensionalidade, remetem ao vácuo para nunca mais serem vistas. Existem lugares assim, à nossa volta: não-lugares, carregados de nada – ao passarmos por eles, sentimo-nos pesados no corpo e na alma, porque levamos um pouco de morte connosco. Envenenamo-nos. O Bairro Alto, contudo, persiste – com notável imutabilidade; tão macróbio quanto a concha de uma amêijoa hipermaturescente.
Escalavraduras estendendo-se pelo estreito eixo que já escorou a muralha fernandina: ferro compunge tijolo, próteses de edifícios que amparam assombrações de um tempo igualmente fatal, mas autêntico. Sobre ele, veículos escorregam como fatídicas faluas e repercutem nos carris defuntos como em cordas de piano – o ruído é estridente, que nem gritos de guebros carregados com guelritas. Perpendicularmente aos turistas apressados, cujas vozes cambalhotam no vento como acrobatas de cartão, espalham-se graffiti nas paredes: equimoses hipertricósicas, de cores tão lientéricas quanto o lixo e os mortos que medram fora da vista, mas que se mantêm – como jóias negras – nos nossos peitos. Há uma energia bizarra, aqui, neste altiplano que se contorce para o Tejo à guisa de predador infantil que gazofilou uma presa demasiado grande para a boca. Se as suas noites fossem silenciosas ouvir-se-iam os murmúrios dos três fios de água que, sob a Rua do Alecrim, a Rua da Bica de Duarte Belo e a Rua do Poço dos Negros, se entornam eternamente no Tejo, emitindo um pulsar plutónico que comunica connosco em código.
O Bairro Alto é uma cirurgia.
Mas que cirurgia é esta?
Por que é que somos, irresistivelmente, atraídos por ela?
Estas ruas centenárias, que resistiram incólumes a vários terramotos, moradas mórbidas de desesperos e desejos, são os liçaróis e os liços da urdidura central olisiponense: sem o Bairro Alto como tear, a manta de retalhos que é a Lisboa contemporânea nunca teria sido meselada; nunca teria perseguido, sôfrega, o Sol na sua libitina trajectória ocidental. Sem esse primitivo modelo, o levantamento da Lisboa Pombalina não teria acontecido: toda a Lisboa imitou o Bairro Alto, olhou para ele e ficou estupefacta com o futuro que ela própria já encerrava – ficou de queixo caído à margem do Tejo e nem Cristino da Silva nem França Borges foram fortes o suficiente para o lacerar. Persistindo incólume às calamidades provocadas por deuses e homens, ele é o único grande fóssil vivo de Lisboa – tão assombroso e anacrónico quanto um variegado celacanto. Mas não se pode compreender essa cirurgia sem uma iniciática diérese territorial.
Existem signos secretos sob o solo, somente sentidos com órgãos feitos de tempo: gritam-nos com as vozes dos nossos falecidos, mas vociferam tão alto que só animais e anjos conseguem ouvi-los. Somos surdos – estamos anestesiados. Extirpámos a morte das nossas vidas e, por culpa disso, padecemos de superficialidade, incapazes de nos reconciliar com a nossa intransmissível efemeridade. Observada pelo fio do nosso bisturi, a Lisboa quatrocentista, engelhada e rubiforme, já mostrava sintomas de trofopatia que a cinta fernandina era incapaz de calcar. A densidade populacional da Lisboa dessa época, com mais de vinte mil habitantes, cifrou-se como uma das mais elevadas da Europa e o extramurado Bairro Alto foi a lâmina que lancetou a dilatação, facultando um novo fôlego à cidade: nem de propósito, a morfologia bairro-altina ainda é a de uma sica – de ponta para baixo, como que embainhada após a inaugural incisura. Porém, levante-se o sudário cirúrgico que protege essa porção incruenta e descubra-se que as linhas ortogonais do Bairro Alto já estavam traçadas na terra, indelevelmente em tinta invisível, para serem radiografadas. Observe-se esses raios-X na mesa de luz – aí, tão madreperolados como respingos de ectoplasma, expõem-se oito diamantóides que ainda orlam o território: o Palácio do Cunhal das Bolas, o Miradouro do Jardim de São Pedro de Alcântara, a Igreja de São Roque, a Igreja do Loreto, a Igreja das Chagas de Cristo, a Igreja de Santa Catarina, a Ermida dos Fiéis de Deus e a Igreja da Nossa Senhora das Mercês. Este vigoroso octógono, sigilo que cruza o visível com o invisível, concentra todas as potências mistéricas do local.
Em 1707, a Porta de Santa Catarina foi demolida para permitir a passagem do cortejo da rainha D. Maria Ana de Áustria, mulher de D. João V. Segundo a tradição, a imagem de Santa Catarina que, até à data, encumeava essa porta derrocada está num dos nichos da fachada da Igreja da Encarnação, apresentando-se com a roda com que tentaram martirizá-la. Porém, a imagem de Santa Catarina que se encontra no templo homónimo, na Calçada do Combro, não agarra nenhum inútil instrumento de tortura, mas um livro, arma que melhor a caracteriza: esta guerreira do conhecimento, cujo vulto e vestimentas lembram uma mistura da deusa grega Atena com a artista mexicana Frida Kahlo, é a padroeira da Irmandade dos Livreiros, profissão típica do Bairro Alto e remanescente freguesia da Misericórdia.
Onde se lê livros, mormente se lê jornais e no primeiro dia de 1865 a imprensa portuguesa industrializou-se com a publicação do primeiro número do Diário de Notícias, cujo director Eduardo Coelho, imortalizado no miradouro do Jardim de São Pedro de Alcântara, inventou a figura remendada e respondona do ardina lisboeta: no início, eram trinta os garotos maltrapilhos que mercadejavam o diário pelo dédalo olisiponense, saídos, de sacolas carregadas e pés descalços, da redacção na Rua dos Calafates, mas passados três meses o seu número aumentou para uma centena. Nomes transmeáveis como Manuel Dias, Carlos dos Jornais e Papo-Seco alcançaram a maior das longitudes no universo estenobático do ardina, figura típica do Bairro Alto, representada no monumento de homenagem ao director do jornal com o qual Joaquim Seabra Pessoa, pai do poeta Fernando Pessoa, colaborou como crítico musical.
Fernando Pessoa foi, precisamente, o peregrino mais prodigioso do Palácio do Cunhal das Bolas, expirando entre essas paredes no ano de 1935, já o solar se transformara há muito no Hospital de São Luís dos Franceses. Situado a norte, acostado à Rua da Rosa, o enigmático Palácio do Cunhal das Bolas é mais antigo que o Bairro Alto – quiçá construído pelo místico Guedelha Palaçano, com o ócio cabalastrológico no pensamento. Era nesse paço, de singular grandiosidade, que, no final do século XVII, D. Francisco de Meneses, 4º Conde da Ericeira, presidia à tertúlia cultural da Academia dos Generosos: grupo heterodoxo de eruditos que, em jeito italianizante, se reunia para analisar autores clássicos, teorizar sobre novos progressos científicos e recitar poesia; dele fez parte o clérigo poliglota Rafael Bluteau, fantástico filólogo que inventou a denominação “linguagem chula” para designar o modo imaturo e imoral de falar que se tornou apanágio do Bairro Alto, habitado por marinheiros, michelas e seus rufiões e boémios de diversos temperamentos.
Um pouco antes, o Imperador da Língua Portuguesa que Pessoa mais admirava, o Padre António Vieira, entrou na Igreja de São Roque e, entre os túmulos dos sebastianistas aí sepultados, como D. Francisco Tregian e Simão Gomes, pregou o Sermão das 40 Horas, no qual declamou: «ponha-se neste formoso teatro a memória defronte da vista, e a vista defronte da memória (…) Digam, agora, os olhos e a memória, se é isto o que vimos, e o que vemos. Mas, porque ainda visto parece fábula, vejamos em um espelho, também fabuloso, a causa de tão estranha mudança». É possível que este inaciano iluminado se referisse ao milenarismo quinto-imperial que lhe foi tão precioso, mas, sob outro ponto de vista, tão adequadas que são estas palavras ao próprio Bairro Alto, que alcança a «estranha mudança» que é permanecer imudável.
Talvez a inalterabilidade seja o mistério abscôndito pela alegoria azulejar que pode ver-se no debrum mais ocidental à banda do bairro, na Igreja da Nossa Senhora das Mercês, e que mostra um raro basilisco, misto de galo e serpentão, a mirar-se num espelho; na legenda em latim que encima uma das mais secretas e singulares imagens de Lisboa, lê-se «ipse peribit», que significa ele mata-se, mas não é verdade que o basilisco é imune à sua toxicidade? Quando se olha para um espelho contempla-se sempre o infinito – e este basilisco olisiponense, entre o vaidoso e o suicida, refractário ao seu olhar venefícuo, pode ser percebido como uma parábola para a perdurabilidade.
Qual é o segredo da longevidade? Será que o Bairro Alto sonha?
E com quê, há meio século? Com D. Maria Ana de Áustria derrubando uma porta e uma santa para abrir caminho ao Chiado moderno? Com ardinas, correndo, que nem pequenos Mercúrios, de jornais aos ombros e asas nos pés, na «constante ginástica da rua» como a descreveu Christo Anil? Talvez com os intelectivos debates glotológicos da generosa academia ou com o cataléptico catarro de Fernando Pessoa. Sonhará com as ornadas orações de António Vieira ou com as vaidades suicidárias de um clandestino basilisco que, em boa verdade, poderia ter sido invocado por algum salomónico rito realizado por Guedelha Palaçano. Oniromancia. Necrordenamento territorial. Práticas preternaturais que os mais espaventados confundem com magia negra.
Para Eça de Queirós, o Bairro Alto era somente o dos cafés de leppe, dos chulos bluteaunianos e da amantezinha do Visconde da Ermidinha, que não queria abandonar o mister de meretriz-fadista, mas para Júlio Verne, um dos seus ídolos literários, que chegou a simular em O Mandarim, o Bairro Alto era apenas o dócil domicílio do seu editor David Corazzi. Editor de As Farpas, dardejadas por Queirós e Ramalho Ortigão, Corazzi recebeu Verne duas vezes no seu gabinete na Rua da Atalaia; na segunda ocasião teve de ir com ele de emergência comprar carvão e óleo a uma carvoaria das redondezas, porque ao contrário do célebre submarino Nautilus, o iate do escritor não operava com futurísticas baterias de mercúrio.
Bairro Alto: existem imaginais polvos gigantes sob a sua calçada, muito mais arcifinais que os cefalópodes vernianos – e se é possível dar uma volta ao mundo em oitenta dias, uma volta à freguesia da Misericórdia, na qual o bairro, arctofiláxio, se tauxia desde o ano passado, faz-se em mais de oitenta ruas, que só peripatéticos, psicogeógrafos e feiticeiros poderão agrimensurar. Uma oportunidade para que tivesse sido feito esse sortilégio ocorreu na noite de 9 de Setembro de 1930, quando o truculento mago inglês Aleister Crowley, virgiliado pelo não menos truculento Fernando Pessoa, se dirigiu até à casa do nérveo poeta Raul Leal, na Rua da Salgadeira. Nessa altura, Sodoma Divinizada, a obra mais controversa do «único verdadeiro doido do Orpheu», já havia sido incinerada pelo governo civil de Lisboa, marionetado por uma associação de estudantes católicos formada por futuros ministros de Salazar. É crível que somente uma cirurgia psicosexual praticada por Crowley – e por «via nefanda», segundo eufemismo do próprio bruxo – fosse capaz de fazer renascer das cinzas a chamada Literatura de Sodoma. Mas segundo o histerómano Henoch, que era como Leal gostava de se chamar, a cirurgia megatheriana, fosse ela qual fosse, correu muito mal: despertou-lhe uma doença mortífera; ainda assim, com fantasmática funestice ou sem ela, Leal viveu mais trinta e seis anos e viu publicada a segunda edição de Sodoma Divinizada. Sincronismo ou iniciação? Sodomia ou magia? No Bairro Alto, estúrdia e encantamento são sinónimos. Poucos territórios serão tão generosos quanto este, que é pai dos desditosos e um anfitrião para os afortunados. Intelectuais e iletrados, artistas e artesãos, santas e prostitutas, visionários e vigaristas: ele é de todos e todos lhe pertencem. Já lá vão quinhentos anos.
Mas qual será o segredo dessa longevidade?
Como é que organismos tão insignificantes quanto amêijoas e bairros vivem durante meio século?
Existe uma especialidade nas coisas pequenas; um lirismo minimalista que, tantas vezes, oculta a linguagem encoberta que nos permite falar com ciclópicas e inflexíveis forças. Aquilo que a amêijoa Ming tem para nos revelar sobre nós próprios é uma verdade tão antiga quanto a aracnóide estelar que reveste a arca do cosmos: a longevidade, e porque não a imortalidade?, relaciona-se com a fertilidade. Comprimida por toneladas de água friíssima, Ming viveu uma vida livre, longa e lucrativa, dando o ser a milhões de descendentes e só morreu quando ficou estéril. Quando termina o período fértil de uma criatura, ela verte vertiginosamente para a morte e aquelas que vivem mais anos são, precisamente, aquelas que adiam a sua reprodução ou que são capazes de conservar a fertilidade na velhice, à guisa de vetustos patriarcas veterotestamentários. Que nem estafetas estafados passando os testemunhos a velocistas cheios de fôlego, nós começamos a morrer quando transmitimos genes às nossas descendências – e a diátese é veloz, total e irreversível. Estranhos mecanismos movimentam-se nas nossas células e o efeito é que envelhecemos: na verdade, oxidamos – enferrujamos. O segredo da longevidade é, pois, ser-se fecundo, produtivo, inventivo. Tudo isso é o Bairro Alto e é por essa razão que ele, na sua constância, ainda está tão jovem: é o mais vigoroso genésico de variedade que Lisboa tem – é o seu coração florescente, próspero, feliz. Felizes estão, também, muitas personagens bairro-altinas preteridas pelo tempo, mas que, agora, se juntam a nós nesta prosopopeia cirúrgica que as animou dos sedimentos mais opacos do passado.
A atarracada, mas ágil silhueta de Chico Áú, o aguadeiro-poeta mais famoso do Bairro Alto, que fingia ser galego para angariar balastro mítico, surge ao saltinhos, como um pardal, carregando um barril cheio de água às costas e ululando o usual mimologismo que lhe deu a alcunha. Atrás dele vem o velhaco Diogo Alves, falsamente acusado de ter sido o assassino em série do Aqueduto das Águas Livres, mas que chegou a ser boleeiro no Loreto; desumano com as bestas e ainda mais bestial com os clientes, a sua cabeça contempla-nos de dentro de um frasco de formol na Faculdade de Medicina de Lisboa. Na sege desquiciada que este decapitado dirige, senta-se Alda Gracinda de Carvalho, a mais famosa meretriz-fadista do Bairro Alto, imortalizada n’O Livro de Alda, escrito pelo seu vizinho Abel Botelho, pai da bandeira da república portuguesa e autor de O Barão de Lavos, primeiro romance gay português; ao lado dela encontra-se o irrequieto Bombinhas, formidável chulo com o Santo-Cristo sempre em riste, de calça justa e casaco de astracã, atirando fulminantes para o interior da taberna Tacão para meter medo aos embriagados que fadistam. Entre estes, encontra-se o Pirilau, assim cognominado por ter sido serviçal de um célebre palhaço que tinha esse nome artístico: exímio tocador de pífaro e bêbedo extraordinário, ficou famoso por ter gasto em vinho um grande prémio que ganhou numa lotaria. A pouca distância deste simpósio vulgar, passa a pé por nós Andresa do Nascimento, a Preta Fernanda, que foi uma das cocotes mais requisitadas do bas-fond bairrista; esta deslumbrante ninfa negra vem de braço dado com Helena, a repugnante Estanqueira do Loreto, mas ambas são douradas por dentro. D. Catarina de Bragança, embaixadora do chá na corte inglesa e inspiração para o nome do maior distrito da cidade de Nova Iorque, intervém vestida com roupa de homem, como gostava de apresentar-se: é acompanhada pelo malquisto dramaturgo António José da Silva, o Judeu, carbonizado pela Inquisição por culpa das suas peças heréticas de teatro, representadas por fabulares fantoches no Teatro do Bairro Alto, antigo Palácio dos Condes de Soure, que foi onde D. Catarina tomou residência quando voltou viúva de Inglaterra. Os dois entram novamente nesse palacete imaginal, seguidos pelos maravilhosos bonifrates Gil Vaz, Fuas, Clóris, Nise, Semicúpio e Sevadilha, personagens criadas para a peça Guerras do Alecrim e Manjerona, que aí foi estreada no Carnaval de 1737. Apercebendo-se da celebração, o Cinco Réis, moço de fretes reconhecido no Bairro Alto pela sua extrema somiticaria, tenta entrar no teatro sem pagar bilhete, pulando por uma janela partida, mas desajeita-se e pisa um caco de vidro com o calcanhar, repetindo um incidente pelo qual ficou famoso. Entretanto, à porta, a gaivota Rita, vitripénico talismã da Tasca do Manel, dócil com o dono, mas autêntico terror dos cães e dos gatos que tentam capturá-la, persegue com prudência os fios que as marionetas arrojam pelo chão. Sobre o palco estão todos os galegos aguadeiros que foram expulsos da rua que tinha o seu nome e que passou, a partir de 1867, a chamar-se Rua do Duque, um dos balaústres do Bairro Alto, entalhado entre este e a Calçada do Carmo; quem os conduz, extravagante, num coro de baixos profundos é Théophile Dupineant, utopista francês que, em 1693, riscou um plano mirabolante para abastecer de água todo o bairro, sem o recurso a nenhuns mecanismos.
Cheira a éter.
Como nas salas de operações. Como nos andares superiores do empíreo.
Os homens e as horas são unos quando a história é feita.
E os bairros são todos mistérios – cada um é toda uma cidade a sós.
Tão perto que, muitas vezes, nem lhe prestamos atenção, viceja a imensa massa urbanadmirável do Bairro Alto, cujas vernantes vielas cingem o norte do centro histórico de Lisboa. Esta é a soberba discissão que impediu a implosão lisboeta e lhe deu a cofragem arquitectotémica para os seus alicerces actuais. Zenónico, o Bairro Alto conserva um estoicismo zenital que é prerrogativa dos poetas, dos ascetas e dos valdevinos. A nossa cirurgia chegou ao fim: suture-se o terreno intervencionado, retire-se os hemostátos para que o sangue volte a circular. Sobre a nudez forte da verdade, coloquemos, como escreveu Eça, cuja estátua aqui perto nos serve de farol, o manto diáfano da fantasia – e escutemos com atenção.
Ele bate.
O coração do bairro bate, sob esse telurismo: ruidoso como água de seltz – fértil, cornucopiante, semibárbaro.
E infatigável.
Infatigável o bastante para concluir um milénio.