A comunicação social, nacional e estrangeira, tem falado e escrito com entusiasmo sobre um suposto canguru desenhado num breviário (que, aparentemente, datará do final do século XVI ou do início do século XVII, entre 1580 e 1620) por uma hipotética freira portuguesa, chamada Caterina de Carvalho, que terá vivido num convento nas Caldas da Rainha. Esse breviário, avaliado em onze mil euros, foi vendido por um alfarrabista português à galeria nova-iorquina Les Enluminures. O conjectural canguru é, apenas, uma das muitas figuras que decoram essas páginas; em outra parte do manuscrito, por exemplo, encontra-se uma personagem de tanga e com penas na cabeça que, à superfície, facilmente pode ser identificada como sendo um indígena, embora sem etnia definida. O intrigante desenho está a servir para que se recupere, de modo mais sensacionalista do que rigoroso, a velha hipótese de que os navegadores portugueses descobriram a Austrália antes dos navegadores holandeses; ideia que, no fundo, não é improvável, mas para a qual falecem as provas. Ora, mesmo que o animal desenhado no breviário seja um canguru (pode ser, somente, um coelho mal desenhado), isso não prova que os portugueses chegaram à Austrália antes dos holandeses.
Está a assumir-se, de modo algo "disneyesco", que chegando à Austrália se verá cangurus por todos os lados - logo, se a freira portuguesa desenhou um deles num breviário cuja data de criação antecederá a da descoberta holandesa da Austrália (26 de Fevereiro de 1606, quando o navegador Willem Janszoon atracou na foz do rio Pennefather, na ponta mais nordeste do território australiano), isso só se explicará pelo facto dos portugueses lá terem chegado primeiro. Este raciocínio não faz sentido, porque, desse modo, poderia argumentar-se que Janszoon não descobriu a Austrália, porque não viu canguru nenhum. De facto, a primeira vez que essa espécie foi mencionada empiricamente por um navegador europeu foi a 12 de Julho de 1770, no diário de Joseph Banks, naturalista inglês que fez parte da expedição do tenente James Cook (ainda não era capitão nessa altura), a primeira a cartografar toda a costa oriental do continente.
O próprio James Cook também o descreveu no diário de bordo, apontando que, no dia 10 de Julho, o tenente John Gore saiu do barco (em reparações na foz do rio Endeavour) para ir à caça e matou um animal bizarro, da cor de um rato, que alguns nativos, que passaram perto numa canoa, chamaram de «Kanguroo». No dia seguinte, o canguru foi o jantar da tripulação e toda a gente o achou delicioso (John Gore também foi o primeiro europeu a matar um indígena Maori, mas não há relatos de que esse tenha servido de jantar).
A imagem acima (de fazer água na boca) foi pintada em 1772 pelo artista George Stubbs, de acordo com as descrições de Banks. Durante muito tempo achou-se que o nome canguru, dito pelos nativos na canoa, não denominava o animal, consistindo, antes, numa declaração de ignorância sobre a identidade da espécie: algo como "não sei o que é". Essa teoria relacionou-se com o facto do nome canguru não fazer parte de nenhum dialecto aborígene conhecido. Todavia, em 1971, o antropólogo John Haviland esclareceu o mistério. Os nativos que Cook encontrou na foz do rio Endeavour pertenciam à exclusiva comunidade Guugu Yimithirr: minoria autóctone (cujo nome parece ter sido inventado por J. R. R. Tolkien), ainda existente no nordeste australiano e que fala uma língua baseada em coordenadas geográficas.
Ou seja, em vez de esquerda, direita, cima e abaixo, os falantes de Guugu Yimithirr dizem Este, Oeste, Norte e Sul - "estou a sul de minha casa" ou "dá-me isso que está a norte daquilo". O seu sentido de orientação é tão apurado que crianças de oito anos são capazes de, instintivamente, encontrar o Norte numa sala sem janelas numa casa na qual nunca entraram e para a qual foram levadas de olhos vendados (desde que essa casa se situe na sua província - se forem levados para uma cidade muito distante, esses nativos não conseguem orientar-se; o que acontece frequentemente com etnias que falam línguas desta natureza, por vezes ainda mais complicadas que Guugu Yimithirr, dependentes de indicadores territoriais geográfico-atmosféricos muito particulares).
Em Guugu Yimithirr, a palavra gangurru (que Banks e Cook anotaram como kanguroo) é usada para denominar a espécie de canguru cinzento que vive no lado oriental da Austrália (existe outra espécie de canguru cinzento, mais pequena, endémica do lado ocidental) e que raramente se aproxima da costa. Foi, portanto, um canguru aventureiro que Gore caçou em Julho de 1770.
Em suma, a ser genuíno o breviário, nada nos indica que Caterina de Carvalho desenhou nele um canguru; mas se o fez, tal não siginifica que os portugueses tenham descoberto a Austrália antes dos holandeses, porque chegar à Austrália e ver cangurus são duas coisas diferentes. Os portugueses podem ter visitado a Austrália depois de Janszoon e visto cangurus nessa altura. A hipótese de que os portugueses chegaram primeiro à Austrália permanece por provar.