sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Lisboa, a cobaia


Estou habituado a ter opiniões que vão no sentido oposto ao da moda: para o efeito, não existe da minha parte nenhuma inclinação, nem nenhum apetite singular - simplesmente, recuso observar o mundo pelas lentes que o populismo e a transitoriedade impõem.

Hoje é notícia que Lisboa irá proibir no centro da cidade a circulação de veículos automóveis com matrículas anteriores ao ano 2000: medida que prossegue a proibição gradual de circulação automóvel na Baixa e centro da cidade iniciada em 2011 com outras medidas, igualmente restritivas, que, somadas a esta, só poderão ter como objectivo de curto-prazo a proibição completa de circulação automóvel no centro da cidade, excepto transportes públicos. Não deixa de ser curioso ler esta notícia em paralelo com outra, publicada ontem, que anunciou a expansão das coroas da rede de transportes públicos, assim como o aumento dos preços dos passes para os utentes.

Os transportes públicos de Lisboa são caros. Já andei de transportes públicos em diversas capitais europeias, de países do Sul e do Norte, e, provavelmente, Lisboa será aquela que, à luz do valor do salário mínimo nacional e da média dos restantes ordenados, tem os títulos de transportes públicos mais caros - e sublinhe-se que consiste numa rede de transportes públicos de percursos planeados de modo pedestre (trocadilho não-intencional).
Um bilhete de autocarro custa 1,85 euros, um bilhete de eléctrico custa 2,85 euros e um bilhete de ascensor custa 3,60 euros (preços de uma única viagem; ou seja, caso se pretenda efectuar uma viagem de ida e volta, o custo duplica). Um bilhete de metro custa 1,40 euros e tem um prazo de validade de sessenta minutos: caso se pretenda mais tempo de viagem existe a modalidade do bilhete diário, que custa 6,00 euros. Preços nas proximidades dos 3,00 ou dos 4,00 euros poderão parecer baratos, mas, na verdade, são preços turísticos cobrados a utentes que, na maioria, não são nenhuns turistas: são residentes de Lisboa que utilizam diariamente os transportes públicos no decurso das suas habituais rotinas.
Os percursos dos autocarros de Lisboa são demasiado longos - e, em alguns casos, até suburbanos -, logo não causará nenhum espavento que um cidadão prefira deslocar-se no seu automóvel dentro da cidade para ser capaz de chegar com maior rapidez ao seu destino. Aliás, as diferenças entre as médias dos preços dos bilhetes, dos passes e dos parques subterrâneos de estacionamento são tão ténues que mais vale uma deslocação de carro e pagar-se o estacionamento no parque, porque isso poderá corresponder a uma economia de tempo na ordem dos quarenta e cinco minutos a sessenta minutos de viagem - principalmente nas horas de ponta. Quem não entende isto não sabe o que é morar numa grande cidade.

Não me escapa a eventualidade de eu estar errado sobre este assunto e, por ignorância temporária ou limitação intelectual de longa duração, manter-me do lado negro da linha que separa os pragmáticos dos idealistas. Na realidade, não encontro idealismo nenhum na moda de, forçosamente, se querer ser popular sendo "verde", seja lá isso o que for.
A quasi-isotrópica demonização dos automóveis e a conspícua elegia das bicicletas, descritas nas bulas da comunicação social como sendo um remédio saudável e moral (a tónica colocada na moralidade é mais importante do que, à partida, se poderá pensar - andar de bicicleta à solta entre automóveis, sem respeitar o código da estrada, é um modo barato de indivíduos sem imaginação se sentirem superiores aos outros) contra a miríade de malefícios do mundo contemporâneo, irá, espero, estilhaçar-se como o pé de barro que é quando se compreender que as bicicletas são anticomércio e anti-serviços. (Já se levou alguém para o hospital numa bicicleta?)
Se, no que concerne à circulação de veículos automóveis, o objectivo é transformar Lisboa numa cidade como Londres, na qual é inaudito ver-se no centro da cidade um veiculo automóvel que não seja um transporte público (autocarros e táxis), terá de se reformular a totalidade do desenho dos actuais percursos de autocarros de Lisboa, de modo a garantir, tal como em Londres, um fluxo ininterrupto de transportes à disposição, situação que não é aquela que os utentes verificam diariamente. Verifica-se, até, o oposto: a semana passada, por exemplo, estive quase uma hora à espera de um autocarro - numa hora "morta" e numa popular zona da cidade com um volumoso trânsito turístico.

O sangue de uma cidade não são os turistas. São os habitantes e os lisboetas precisam de melhores condições de usufruto dos seus transportes públicos: bilhetes e passes mais baratos - e estacionamentos mais baratos para os automóveis - seria um excelente começo. A alternativa a soluções destas naturezas e à insistência na cristalização de uma Lisboa exclusivamente para turistas poderá ser um êxodo gradual dos jovens lisboetas (principalmente) para as vilas de dormitórios da periferia, agravando ainda mais a desertificação de uma cidade outrora vicejante, mas tornada em sede de escritórios extintos, centros comerciais fantasmas e domicílios devolutos que se erguem como dentes cariados ao lado de renovados blocos de apartamentos de luxo, acessíveis apenas a quem, em última análise, se estará nas tintas para Lisboa enquanto autêntico local de residência.
A Lisboa actual é uma Lisboa deformada: cobaia que, cada vez mais, agoniza em comportamentos absurdos.

Quem quer ser "verde" fará melhor em deixar os veículos automóveis em paz e preocupar-se, antes, com a questão do lixo electrónico, que é o grande flagelo invisível do século XXI, contaminando, a ritmos avassaladores, lagos, rios, oceanos e solos com um espectro assustador de metais pesados (chumbo, mercúrio, cádmio, entre outros) e materiais plásticos muitíssimo resistentes à erosão.
Pensem nisso sempre que, a cada seis meses, mais ou menos, pedalarem de bicicleta até à Baixa para comprar mais um novo modelo de smartphone ou tablet - deixem de ser ridículos e pensem. Bem sei que pensar poderá ser difícil, sobretudo para quem não está habituado, mas, em suma, é como andar de bicicleta: uma vez aprendido como se faz, nunca mais se esquece.