A atenção sem precedentes com que vi o jogo da final do campeonato de
futebol Euro 2016 entre as equipas portuguesa e francesa, assim como as
subsequentes celebrações, deram-me oportunidade de reflectir com
novidade sobre o fenómeno futebolístico. Assim, ao mesmo tempo que
constatei que, para a minha sensibilidade, o futebol, como outros
desportos, em geral, é aborrecido (os elementos excêntricos - dir-se-ia
quasi-narrativos - presentes no desafio, como a presença insólita das
traças, a dramática lesão de Ronaldo, logo no ínicio, as defesas
infalíveis do nosso guarda-redes, o golo da vitória tão puxado a ferros e
marcado habilmente por um jogador que, até ao momento, não figurava na
galeria de favoritos de ninguém, foram, com efeito, aqueles que motivaram o meu interesse), também compreendi o motivo pelo qual ele é
tão cativante - universal e transversalmente. O fascínio do futebol
opera-se ao nível do da música.
O futebol tem personagens, tem
espaço e tempo, tem contexto histórico e social, mas tudo isso lhe é,
com justiça, acessório: tudo isso é subsidiário daquilo que perdura após
a visualização de um jogo, que é, diga-se desta forma, o andamento.
Andamento, em sentido musical, incorpóreo, abstracto. No futebol, tudo
se faz de cores planas, na acepção de não-misturadas: são cores
aplicadas na tela, exactamente tal qual saem do tubo. Não há autêntica
expressão individualizada: há regra, há improviso, mas não há estilo. No
desporto não há noção de estilo, em feitio artístico: só há regra e riffs sobre essa regra - dá vontade de falar em Jazz, mas,
possivelmente, precipito-me. De qualquer das formas, o que permanece do
futebol é o andamento: é a pauta feita durante noventa minutos de
duração.
De um ponto de vista metafísico, arrisco a hipótese de
cada jogo de futebol, assim como cada prova desportiva, ser uma espécie
de comentário a uma forma ideal de jogo de futebol plasmado pelas regras
e, assim sendo, inacessível e modelar - em profunda analogia com a
disciplina medieval do comentário escolástico, em que duas equipas de
alunos de uma escola monástica comentavam, ao despique, ao desafio, e
cada qual com a sua estratégia, a matéria imutável, inquestionável, dada
pelo mestre; por conseguinte, regra e comentário, sendo que, aqui, o
comentário não tem como objectivo a procura da originalidade, nem a
produção de novo conhecimento, mas, somente, o consolidar a matéria
apresentada por meio de um texto clássico estruturado e terminado pela
autoridade. Assim é o futebol; assim é, pela larga medida, o desporto:
regra e desafio - matéria e comentário. Quem ganha é sempre o próprio
conceito de desporto.
Cântico de coreografia muscular e
velocidade, feito de técnica, ritmo e de tonalidades facilmente
reconhecíveis, o futebol age no mesmo plano da música. Não é,
verdadeiramente, visual, como um filme do qual, algum tempo depois do
visionamento, se memoria cenas preferidas ou que provocaram impacto,
perfeitamente cristalizadas na mente; nem é, verdadeiramente, verbal,
como trechos de um texto que, verbatim, se decoraram. É como a música.
Opera, em exclusivo, no plano emocional: pode-se assobiar o andamento
futebolístico, quase.