segunda-feira, 26 de junho de 2017

A corrosão da fantasia

 
Gradualmente, compreendi que uma das características que mais me tem afastado da leitura e da contemplação da ficção contemporânea - em principal, séries televisivas e filmes - é a sua serialização; ou seja: a continuidade - tautológica, na maioria das vezes, esclareça-se - de contínuos cosmos ficcionais. Nesse sentido, a palavra "serialização", na acepção de "produção ao modo industrial" é muitíssimo adequada. Tomemos como exemplo os actuais filmes de super-heróis: cada novo filme que estreia procura ser mais um tijolo num grande muro em que se almeja projectar todo um universo super-heroístico, no qual cada filme sequencia ou referencia determinados eventos ou situações plasmados em outros; subordinadas a essa mecânica, personagens de certos filmes têm, necessariamente, de figurar em outros, tornando-se, nesse jaez, geradoras de uma hiperatrofiada diafaneidade, ou seja, não há nenhuma opacidade - a opacidade conveniente à metáfora - entre essas produções. O efeito invisível, mas tangível, dessa abolição de distâncias é, não só a destruição de diversos pontos de fuga - por conseguinte, o rebatimento de múltiplas perspectivas num plano único -, mas a corrosão da fantasia. O que é que isto significa?

Significa que o, já aludido, carácter metafórico ou alegórico - digamos "simbólico" - da própria fantasia é desgastado pela violenta fricção com a artificial, mas duríssima, realidade virtual composta pelo empilhamento de referências cruzadas que, em estilo autofágico, vai substituindo o simbólico em favor do logicismo, da coerência sequencial. Com efeito, o valor do simbólico é a anti-reificação, qualidade cognata da sua unicidade, da sua exclusividade. O simbólico - e, por metonímia, a fantasia (que é matriz do simbólico) - vive sempre da reciprocidade entre significado, codificação e contexto. Logo, a construção sequencial de um "plano único" onde, rebatidos, como vimos, coexistem múltiplos pontos, chamemos-lhe isso, que se vão acumulando sem hipótese de escapar à unidimensionalidade, desgasta a fantasia, porque, tratando-se de um plano único auto-referencial, todos esses pontos têm de manter a coerência intrínseca - ou seja, não há liberdade para o simbólico. Um excelente exemplo desta tese é o facto de a melhor e mais ressonante - do ponto de vista simbólico - cena do filme The Dark Knight Rises ter sido a mais censurada pela crítica e pelo público: do ponto de vista simbólico, do ponto de vista da fantasia, não é válido exercer-se a descrença sobre se, naquele instante em específico do filme, o protagonista teria tido oportunidade ou meios materiais suficientes para inflamar em grande formato o seu signo num local alto o suficiente para que a população da cidade em estado de sítio o pudesse ver e saber do seu adiado regresso; do ponto de vista simbólico, do ponto de vista da fantasia, só é válida a carga emocional, transcendental, invocada, cuja comunicação passa por uma subtil dialéctica não-material. Ora, o hábito já impregnado na audiência de estar-se diante de universos auto-referenciais coerentes, faz com que a coerência, o logicismo, erga uma barreira de descrença entre o público e os poucos apontamentos de pura fantasia/simbolismo que residam em produções cada vez menos imaginativas e cada vez mais preocupadas em conservar e alimentar e reproduzir estanques lógicas internas que obrigam, provavelmente, a um virar do avesso do holismo: sob a holística, o isolado só pode ser percepcionado por via da totalidade; mas no tal muro super-heroístico, a totalidade é apenas um pretexto para se desfrutar convenientemente do isolado. No fundo, a fantasia e o simbólico são, pela sua natureza, entidades descontínuas - ou, em linguagem audiovisual, "episódicas". A serialização elimina-lhes os fins específicos.