No poema God Made the Country, o poeta
setecentista inglês William Cowper escreveu: «At eve / The moonbean, sliding
softly in between / The sleeping leaves, is all the light they wish, / Birds
warbling all the music. We can spare / The splendour of your lamps; they but
eclipse / Our softer satelite.» Esta flamância estelar, que afaga o agrimundo
num manto de suave selenitude, contrasta com a abrasiva luzência da cidade, o
reino da falsa luz; domínio de elucubristas que transformaram a noite num intervalo
de intenso trabalho intelectual. Com efeito, é um paradoxo que o período das
Luzes, creditado como uma tenebrosa madrugada que dirimiu o muro das
superstições, retenha uma dívida avultada para com a factícia noite das cidades:
de facto, convocar um cenário composto por pensadores oclusivos na penumbra de
pensões, casas e cafés, redigindo à luz de velas incendiários tratados contra a
política e a religião do Antigo Regime não é, somente, uma imagem idealizada.
Este foi o tempo que o geólogo holandês François Matthes denominou no século
passado por Pequena Idade do Gelo: ápice de uma lenta refrigeração do
hemisfério norte, posta em marcha desde o século XIII, e que alcançou as
temperaturas mais baixas em meados dos séculos XVII e XVIII. Os ritmos morosos
do planeta não são os nossos: o seu tempo é vagaroso como resina sangrante num
tronco de árvore – e igualmente pegajoso para nós, à sua mercê. Sem defesa
contra noites glaciais, arautas de rios congelados e colheitas deterioradas,
restou-nos passar a dormir sob novos padrões de sono, perturbados por
temperaturas descendentes: insónias que, sem a luciferina alumiação pública,
estariam condenadas a ser tão infrutíferas quanto os campos de Cowper,
submissos à frialdade das constelações. O advento das Luzes foi, sobretudo, um prodígio
da nocturnalização da sociedade: colonizou-se a noite, como se estava a
colonizar o Novo Mundo – quando escreveu que «no início, todo o mundo era
América», referindo-se a uma primeva condição global de liberdade, o filósofo
seiscentista inglês John Locke também contemplaria a autonomização da
humanidade em relação à noite, da qual era um dos obreiros?
Arremetidos pelo frio
nocturno, os indivíduos optimizavam o calor dos corpos dormindo juntos numa
mesma cama; por vezes, por culpa da carestia, sem hipótese de escolherem outra
solução. Nessas condições prosperavam parasitas corporais, como piolhos e pulgas.
Pintado em 1621, o quadro A Caça à Pulga,
do caravagista pintor neerlandês Gerrit van Honthorst, introduziu no campo
artístico o tema da apanha à luz de velas desses insectos, em caliginosos
interiores, por mulheres semidesnudadas. Tão alabastrina e amena é a cútis da contente
rapariga que caça a pulga, que, de imediato, somos lembrados de Artemísia, a bela
bailarina exótica empregada pelo protagonista Eurípides na comédia teatral As Tesmoforiantes, de Aristófanes, para
persuadir a personagem do arqueiro cita a libertar Mnesíloco: segundo este, arrebatado,
a cada-vez-mais-nua Artemísia dança tão levemente quanto uma pulga se passeia
no velo de uma ovelha. Inspirados por Honthorst, outros artistas imaginaram
cenas análogas, como o francês Georges de La Tour, o bolonhês Giuseppe Crespi e
o veneziano Giovanni Piazzetta, mas em todas essas obras, das quais se expele
uma quasi-realista empatia para com a penúria, está ausente a ambiência alegre
da tela pintada pelo primeiro. Na verdade, basta observar o quadro O Filósofo Irredutível, concluído dois
anos depois, para testemunhar a mestria de Honthorst em registar a graça
feminina: nessa composição, uma mulher seminua alicia o filósofo, tentando
puxá-lo dos seus escritos para aquilo que facilmente se conjectura como sendo
um inopurtuno momento de namoro, mas este, resoluto, limita-se a olhar para o
lado oposto, afastando-a com uma mão; no entanto, examine-se o rosto corado do homem
e descubra-se que parece sorrir a contra-gosto, como se a recusa em demover-se
do estudo fosse postiça – prelúdio do consórcio desejado. É a envolvência jocosa
que atravessará a opera buffa
celeumática La Serva Padrona, do
compositor italiano Giovanni Battista Pergolesi – de riso matreiro, a mulher
parece provocá-lo, usando as palavras de Serpina: «stizzoso, mio stizzoso, voi
fate il borioso, ma non vi può giovare». O corpo dessa mulher, que arranca o
filósofo da torre de marfim, e da jovem que caça a pulga nas suas vestes de
noite resplandecem em tonalidades criselefantinas que evocam uma lua anafada
pelo sol: ebúrnea, mas nimbada por uma santificante aliança dourada. Porém, não
existe sol no quadro A Caça à Pulga: o
elemento masculino está representado por duas divertidas, mas obscuras
presenças que, dissimuladas na penumbra e pelo espaldar do leito, espiam a
rapariga e a idosa serviçal a caçarem a pulga – proveniente do estúdio de
Honthorst, outro quadro com a mesma cena, mas sob um enquadramento mais
aproximado, dá-nos a ver o ponto de vista dessas personagens que, pela
linguagem corporal exibida, aguardam ser incluídas num desfecho prazeroso.
De igual modo, a representação
da pulga como vector de epidemias está distante deste quadro: a imagem conduz-nos
a tropos orientalizantes, mas na imaginação do observador nunca germinarão
recordações de como a Arca da Aliança poderá ter contido panos pejados de
pulgas, eliminando de peste os filisteus que a roubaram na batalha de Eben-ezer;
ou da intangível praga de Atenas, que, segundo Tucídides no segundo livro da História da Guerra do Peloponeso, era
tão virulenta que abatia os necrófagos que se nutriam com os cadáveres dos
pestíferos de membros e apêndices apodrecidos em bravia necrose. No seu Viri clarissimi, conhecido pelo
hipocorístico Emblemata, o jurista
italiano Andrea Alciato ordenou os parasitas no capítulo referente ao pecado da
gula, descrevendo-os nas maneiras e nos hábitos como sendo iguais a
caranguejos, coriáceos e de mordacidade veloz: «Vós também tendes ferrões nos
pés e uma barriga grande. E perambulando de mesa em mesa a encheis, criticando acintosamente».
Por outro lado, o arcebispo hispânico Isidoro de Sevilha classificou as pulgas no
quinto capítulo das suas Etimologias como
vermes sarcofamintos, taxonomia familiar às descrições que o jesuíta baiano
Frei Vicente do Salvador, o Heródoto
brasileiro, fez do Tunga penetrans, o bicho-de-pé, «tão pequenos como
piolhos de galinha». Ainda nessas latitudes, o jesuíta alentejano Jerónimo
Rodrigues eliminou sentado no leito mais de trezentas e cinquenta pulgas numa
única noite. Pertencentes à ordem Siphonaptera,
estes – legitimamente chamados – sifões
sem asas, aglomeram no tubo digestivo um obstaculizante bolo de bactérias
que precisam de vomitar, infectando assim os hospedeiros: característica dos
hematófagos é a necessidade de defecarem o plasma enquanto se alimentam –
peculariedade já descrita em 1720 pelo padre teatino Rafael Bluteau no sexto
volume do seu Vocabulário Português e
Latino: «Pica a carne, & chupando o sangue, o lança logo de si por
detrás, & daqui nascem as nódoas vermelhas, que ficam na carne das
mordeduras das pulgas». Sobre o plasma, Locke conjecturou o seguinte: «O
sangue, observado a olho nu, surge vermelho, mas através de um bom microscópio
onde se vejam as suas partículas mais pequenas mostra apenas alguns glóbulos
vermelhos nadando num líquido transparente, e é uma incerteza como é que estes
glóbulos vermelhos poderiam surgir se houvesse lentes que pudessem ampliá-los
mil ou dez mil vezes mais». Lembro-me de ter visto em criança pela primeira vez
num livro sobre o século XVII a inaugural gravura de uma pulga feita com
recurso a «um bom microscópio» pelo polímate inglês Robert Hooke para o seu
livro Micrographia e como isso me
impressionou: achava que o desenho era ligeiramente antropomórfico,
assemelhando-se a um irascível e corcunda velho de barbas venerandas, e esse
hibridismo, às vezes, assustava-me (mas nem sempre); hoje, os seus tergitos e
esternitos evocam-me a morfologia do pioneiro submarino do engenheiro
neerlandês Cornelis Drebbel – que navegou no Tamisa, à profundidade de cinco
metros, no segundo quartel de Seiscentos –, enquanto que o ocelo na leptocéfala
cabeça espelha na perfeição as inconfundíveis ilhós dos ténis americanos Converse
All Star. Respigando trechos de Fausto,
do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe, o compositor oitocentista russo
Modest Mussorgsky compôs A Canção da
Pulga, celebrizada pelo baixo russo Feodor Challapin, que preconiza, nessa
interpretação, o estilo exibicionista do cantor americano Screamin’ Jay
Hawkins. Um dos filhos de Challapin ficou conhecido por ter desempenhado a
personagem Jorge de Burgos no filme O
Nome da Rosa, do cineasta francês Jean-Jacques Anaud; de facto, na Idade
Média, mais demonizadas que ratos e moscas, as pulgas eram especificamente
execradas, porque o prurido das picadas impunha aos indivíduos o alarde de uma
série de momices – do mesmo modo que o riso, diabolizado por Burgos no filme mencionado.
No seu eminente ensaio, Uma Apologia para
Raymond Sebond, o escitor francês Michel de Montaigne escarnece daqueles
que ponderam que Deus procede de feitio diferente ao ocasionar o desfecho de
uma importante batalha e o efémero salto de uma pulga; em outro ensaio, Sobre a Semelhança dos Filhos com os Pais,
ele afirma que a mesma providência que protege a toupeira e a pulga, também socorre
o ser humano. Todavia, no segundo capítulo dos Solilóquios, a Razão pergunta a Santo Agostinho se ele também ama
as pulgas e os percevejos, ao que ele responde «amo a alma e não os animais»;
em seguimento, a Razão diz-lhe que os homens são animais, objectando Agostinho
que ama os homens, porque estes têm almas racionais – inferindo que as pulgas
não têm.
Contudo, de acordo com o depoimento
de uma pulga, esta espécie é portadora de um tipo especial de almas humanas: de
obscena língua serpentina, a hedionda pulga que posou para o visionário inglês
William Blake deixa transparecer esse género de alma sob o indeterminado
craquelê da sua pele, vacilante entre o couro reptiliano e a ruína marmórea.
Segundo as suas palavras, somente ouvidas por Blake durante a nocturna sessão espírita
de desenho, todas as pulgas são veículos para as almas de homens malévolos,
cuja sanguissedência fê-los ultrapassar os limites da barbárie. Esse esboço
espiritual serviu de inspiração para a inquietante pintura Fantasma de uma Pulga, que representa, precisamente, um desses
sanguinários espectros: de tamanho aproximado ao de um comic book americano, essa obra de Blake ilude, de início, com a
sua aparente fantasia circense, mas um exame demorado desvenda sinistras
perspectivas: tudo nesse musculoso e possante écorché, de pele cucurbitínica, excita repugnância; em principal, a
impudicícia da expressão, com que cobiça um vaso cheio de sangue, e a duvidosa
postura corporal, ameaçando circinar-se a qualquer momento, que nem um tufão –
ou uma ténia. O detalhe que mais me perturba é aquele que, no meu entender,
retém ainda algo do homem que cedeu a alma à pulga: os pés exsicados, de unhas
compridas – são pés ressequidos num caixão, no qual as unhas continuaram fantasmagoricamente
a crescer. A ectoplasmática pulga confidenciara a Blake que Deus planeara a sua
espécie exoparasitária para ter o tamanho dos touros, mas, quando se apercebeu
da malícia do seu temperamento e da voracidade destrutiva que prometia, o
Criador reduziu-a à quase invisibilidade. Crítico da crença metempsicosiana,
Locke desedenhava dos «filósofos que crêem na transmigração e que são de
opinião que as almas dos homens podem, devido aos seus erros, ser devolvidas
aos corpos dos animais, como depósitos adqueados, com órgãos adaptados à
satisfação das suas tendências animalescas» (como uma homicida alma humana inoculada
numa abjecta pulga bebedora de sangue). Ainda assim, dando de barato que tal
portento fosse possível, Locke afirmaria que «ninguém, mesmo que tivesse a
certeza de que a alma de Heliogábalo estivesse num dos seus porcos, diria que
esse porco era um homem, ou o próprio Heliogábalo». Sempre enciclopédico,
Bluteau recomenda que se queime poejo para fumigar as pulgas, como faziam os
antigos romanos. Por sua vez, na entrada alusiva a 16 de Junho de 1678, no
diário das suas viagens a França, Locke lauda as virtudes das folhas de feijão
encarnado, enfiadas debaixo da almofada ou espalhadas ao redor da cama; inesperadamente,
não ofereceu esse conselho apotropaico na resposta que deu à segunda carta que
o bispo inglês Edward Stillingfleet lhe enviara para criticar o Ensaio Sobre o Entendimento Humano: é
que (de acordo com a leitura de Locke) os argumentos empregues pelo bispo de
Worcester incutem erroneamente nos leitores a ideia que ratos e pulgas têm almas!...
O poejo e o feijão encarnado poderiam facilmente alienar essa insensatez; porém,
o problema – do ponto de vista de Locke –, é um dilema de linguagem: as pulgas
– e os restantes animais – não utilizam palavras ou sinais gerais para exprimir
ideias universais (ou para comunicarem preternaturalmente as suas biografias a artistas
excêntricos, por mais sensitivos que estes fossem); somente concebem ideias
particulares, tal como as recebem dos sentidos, sem capacidade de ampliá-las
com o recurso à abstracção. Nesse sentido, recuperando o axioma agostiniano
expressado acima, o ser humano não se distinguia dos animais, porque, em
idêntico feitio, recebia as ideias directamente dos sentidos: a sua mente seria
uma tabula rasa, esvaziada de
cartesianas imagens inatas, mas, através da alma racional, esse material
sensorial era ordenado, interpretado e disposto numa míriade de maneiras. Todo
o conhecimento seria, então, tripartido nestes modos: físico, ético e lógico (e
é pela terceira via que o académico italiano Umberto Eco considera Locke o pai
da semiótica). Todavia, existe um lado pouco simpático em Locke – e, no geral, na
filosofia das Luzes: um cisma em domesticar a linguagem, subordinando-a a um
utilitarismo que se designaria por científico – ou a tirania do senso comum
filosófico –, em oposição à literária glossofilia barroca. Aliás, já o padre
jesuíta António Vieira havia criticado no Sermão
da Sexagésima o «xadrez de palavras», em relação à forma clara e natural
com que Deus criara o universo, sem recorrer a nenhum «xadrez de estrelas». Na
sua História da Royal Society de Londres,
o bispo inglês Thomas Sprat avizinhou-se da visão vieirina, declarando a
obrigação dos escritores em adoptar «a close, naked, natural way of speaking;
positive expressions; clear senses; a native easiness; bringing all things as
near the Mathematicall plainess as they can». Perpassava por aqui um esforço
fabricado de ir ao encontro da concisão de linguagem veiculada pelo latim
clássico, falado na Roma antiga, sem se compreender, de facto, que essa
economia de expressão devia mais à vera pobreza vocabular dessa língua que a
qualquer mapa mental constituído de aceitável contenção científica; compreendendo
os defeitos do latim, Cícero procurou enriquecê-lo – e, naquilo que lhe foi
possível, conseguiu-o –, mas foi preciso esperar pela chegada da escolástica
medieval para que se visse, finalmente, florescer o latim. Concomitante à ideia
iluminista que um texto que se queria científico sê-lo-ia ainda mais se fosse
redigido ao jeito de uma tabela contabilística, como uma fria folha de
balancete, obssessivamente purgado de vícios literários, foi a busca por um
idioma inicial – que, durante algum tempo, se pensou ser o hebraico. Nesse
aspecto, o contributo de Locke foi a desacralização da linguagem; se o seu
nominalismo provava o erro do cartesianismo – e do platonismo –, se a linguagem
era, somente, uma construção humana, uma utilitária ferramenta de interacção, e
não um secreto código inato, aboriginal, que poderia ser reconquistado pelo
estudo das múliplas línguas que dele tinham brotado pós-Babel, então poder-se-ia
subordinar toda a linguagem ao higiénico espírito das Luzes: torná-la mais
lógica, mais científica (no sentido da simplicidade matemática) e, sobretudo,
universal – nesse sentido, o pedante princípio de economia defendido pelos
filósofos das Luzes tornar-se-ia, em pouco tempo, uma mecânica questão de
optimização (como no caso do Esperanto).
O esteta William Blake
desgostava desses espartilhos: na sua casa em Hercules Road, no depauperado lado
esquerdo do Tamisa, de janelas viradas para o coruscante palácio de
Westminster, antropomorfizou a razão das Luzes na forma do titânico Urizen, um
dos quatro Zoas da sua complexa mitologia autoral. Na célebre pintura O Ancião dos Dias, Blake apresentou o satânico
Urizen inclinado sobre a negrura abissal (a já abordada treva em processo de
nocturnalização), projectando da sua mão esquerda dois reluzentes raios que se
assemelham a um compasso aberto num ângulo de noventa graus; representação que,
hoje, evocará com rapidez uma associação alegórica à maçonaria, mas o símbolo
do compasso usado por Deus para medir o mundo é muito mais antigo e pode
encontrar-se, por exemplo, no livro bíblico dos Provérbios (8:27). Na obra de Blake, o compasso assoma como símbolo
do espírito materialista das Luzes, um utensílio que restringe uma fracção da
realidade, excluindo tudo o que fica fora dessa austera circunferência: não é à
toa que o matemático e astrónomo inglês Isaac Newton – uma das três cabeças da
tríade infernal blakiana, juntamente com Locke e o filósofo inglês Francis Bacon
– é por ele pintado como sendo uma espécie de Urizen inferior, desenhando, de
espinha dobrada pela tirânica força da gravidade, formas geométricas com um
compasso. Mas a maçonaria, mutabilizada e reestruturada ao longo de todo o
período das Luzes, reserva resquícios da busca intelectual por uma linguagem
incial – ou iniciática – no mito da hirâmica Palavra Perdida: vocábulo
simbólico, cuja busca abrange o desígnio ulterior da maçonaria, como está
patente nos rituais de diversos graus. A ideia que as sociedades secretas
desempenharam um papel fundamental na consolidação das Luzes tem primado pela
hipérbole, mas um dos críticos setecentistas que mais responsabilidade teve
nessa concepção foi o diplomata saboiano Joseph de Maistre; cognominado de
proto-fascista pelo filósofo anglo-russo Isaiah Berlin. Educado pelos jesuítas,
Maistre foi membro de duas obediências maçónicas; uma delas liderada pelo
místico francês Jean-Baptiste Willermoz, que fora iniciado na Ordem dos
Caveleiros Maçons Elus Coëns do Universo pelo próprio fundador Jacques Martines
de Pasqually. Tal como Pasqually, Maistre era um católico rigoroso, mas, ao
mesmo tempo, despontou como voz crítica da mitologia templária para as origens
da maçonaria, arrogando que esta deveria abandonar românticas reivindicações
cavaleirescas e consolidar-se, afirmativamente, como uma grande ordem católica,
obediente ao Papa e intermediária entre o Estado e a Igreja. Em 1816, com a
publicação de Les Soirées de
Saint-Petersbourg, Maistre expôs nos décimo e décimo-primeiro diálogos a
sua doutrina ultramontana e anti-iluminista; todavia, mais interessante para estas
linhas, é a atitude adoptada nesse livro na defesa do génio das linguagens,
numa abordagem primígena, rejeitando as hipóteses poligenéticas propostas pelos
filósofos das Luzes. Como Blake, ele recusa a ruptura trazida pela
desacralização lockiana da linguagem por culpa do desrespeito demonstrado
diante da intrinseca rede de ligações que, na sua óptica, compõe todo o
edifício do conhecimento, desde o seu tempo até às origens da Criação: o
conhecimento perfeito é, em suma, o da linguagem perfeita; mas esta perdeu-se,
tal como o verbo hirâmico. Porém, se para Maistre a maçonaria deveria ser um
poder parapapal, intermediário entre o trono e o altar, para a personagem do
conde Kotor ela deveria ser um poder inteiramente ateu.
Escrito pelo crítico
cinematográfico francês Pierre Kast, o intrigante romance Les Vampires d’Alfama, de 1975, tem como cenário uma imaginária
Lisboa setecentista, sem qualquer similitude com a autenticidade histórica. O
protagonista é o aristocrata vampiro Kotor, com quase trezentos anos de idade, antigo
protector (o misterioso tio-avô, na verdade) do siciliano conde Alessandro di
Cagliostro, e que, no momento presente da narrativa, se encontra incógnito no
bairro lisboeta de Alfama, onde tem fama de santo em virtude de transformar
doentes e moribundos em vampiros. Evadindo-se da morte pelo ardil de chupar o
sangue dos vivos, como as pulgas, o vampiro distingue-se enquanto monstro por três
características especiais que têm escapado à sua representação espúria nas
ficções mais recentes: a sede sobre-humana. o modo como a sacia e a sua predemonionância
no folclore europeu – o vampiro, na verdade, está longe de ser universal. Na
tradição tanatológica europeia, os mortos sempre se caracterizaram pela secura,
pela desidratação: os antigos gregos, por exemplo, concebiam os vivos como sendo
húmidos e os mortos como estando secos – a perda de vida era, pois, um processo
gradual de sequidão, atestada nas empíricas observações dos cadáveres desprezados
aos elementos. Ressecados também são os pés do fantasma da pulga pintado por
Blake. Assim, a tremenda sede do vampiro relaciona-se com o retardar dessa
prossecução natural, por métodos sobrenaturais; o sangue, enquanto nutrimento,
consiste num fluido de evidentes conotações mágico-religiosas poderosas. Com
efeito, em muitas narrativas, o vampiro também bebe leite – e o modo como bebe
sangue e leite, chupando como um recém-nascido, reforça a ideia de um nascimento a
cada saída de debaixo da terra – a terra como útero ctónico e o vampiro como
seu filho terrível. Dois sinais importantes para enquadrar o vampiro com maior
rigor são a cronologia e a geografia: é surpreendente que visões deste monstro se tenham
popularizado por toda a Europa no período das Luzes? No mesmo período em que a escuridão estava a
ser colonizada, como referi inicialmente? O ciclo de vida em morte do vampiro
reflecte, perversamente, um doentio regresso do passado: o futuro, para esses
contemporâneos das Luzes, sobreviventes da Guerra dos Trinta Anos, actores da
reorganização pós-westfaliana, habitantes de um mundo cada mais gelado e à
mercê da fome, seria ameaçador, mas o retorno do passado seria ainda mais
aterrador. Seria o regresso das mais venéficas morte e doença – a língua inglesa
conserva um lembrete dessa concepção na palavra para doente: sick, cognata de siccus, a palavra em latim para seco. Mais pragmático que perturbante
(apesar de ter começado a vida como facínora sanguinário – da estirpe de homens
violentos que, depois de mortos, vão habitar nas pulgas, na cosmologia de
Blake), Kotor tem um único objectivo: tornar-se um novo Prometeu e conceder à
humanidade (e a si próprio) o segredo de vencer definitivamente a morte. O que
leio em Les Vampires d’Alfama é a
paulatina popularização (já à data da publicação) da mundividência
trans-humanista – em particular, da corrente designada de imortalista – que,
actualmente, encontra eco nas melífluas vozes de futuristas como o engenheiro
informático americano Ray Kurzweil, CEO da empresa Calico do grupo Google –
cujo caderno de encargos tem à cabeça, explicitamente, «resolver o problema da
morte». Parafraseando o que o poeta russo Vladimir Mayakovsky disse sobre o
corpo embalsamado de Lenin ser, empalhado – seco
–, mais vivo que todos os vivos, pode dizer-se que a falsa vida transferida por
Kotor aos seus seguidores (que podem ser vencidos pela luz do sol, entre outros
meios) torna-os mais vivos que os restantes vivos: de facto, mais do que corporizar
o ideal contemporâneo do vampiro como anti-herói (aqui, um anti-herói contra o
trono e o altar), Kotor prefigura os actuais futuristas e gerontologistas que
se vendem como campões contra o envelhecimento e a morte. A dada altura, em diálogo
com a personagem maçónica Gianvittorio, o conde Kotor apresenta-se com o sinal gestual
de mestre maçon para, em seguida, deixar na dúvida a sua filiação; poucas
linhas à frente, o vampiro revela que tem ligações profundas à maçonaria, mas
que mantém a imparcialidade, porque não considera o Ofício suficientemente
radical para derrubar o sistema de Antigo Regime: só uma resistência de
inexorável ateismo terá êxito nesse empreendimento. Assim, meio-alquimista, meio-revolucionário,
Kotor releva-se destas páginas como sendo uma espécie de Joseph de Maistre ao
contrário – um Joseph de Maistre da irreligião: as Luzes e as sociedades
secretas não são descrentes o suficiente para partejar a sua nova ordem de
imortais submetidos ao papado do ateísmo, ensaiada na vampírica comuna de
Alfama.
No fundo, há um filamento
que conecta este grupo heterogéneo formado por filósofos das Luzes,
ultramontanos fundamentalistas e futuristas que perseguem a imortalidade: a
recusa em aceitar o caos – em conviver com a repentina espontaneidade da
realidade: seja ela a noite impenetrável, a babélica glossolalia barroca ou a
inevitabilidade do fenecimento. O antídoto contra essas manifestações caóticas da
realidade tem sido sempre o fracasso das mais desconchavadas e perigosas utopias;
cuja mais recente materialização parece ser o paraíso virtual de uma
inteligência artificial erguida como panaceia contra todas as limitações
humanas – sobretudo a da durabilidade. Hoje, a morte não é vista nem como uma
passagem, nem como uma meta que dá valor à própria existência, mas como um aviltante
parasita da vida que é preciso caçar com coragem e optimismo – tal como se caça
a pulga na prazenteira pintura de Honthorst. No entanto, como Blake nos
ensinou, num quadro muito mais realista, apesar de fantástico, existe sempre um terrível fantasma por trás do optimismo.