É consensual ver as
gárgulas que adornam a balaustrada da galeria superior da catedral parisiense
de Notre-Dame como uma das mais expressivas manifestações da escultura gótica,
mas essas endemoninhadas criaturas de pedra não têm nada de gótico, muito menos
de medieval: foram projectadas em meados do século XIX, durante a restauração
do monumento, iniciada em 1845, levada a cabo pelos arquitectos franceses
Eugène Viollet-le-Duc e Jean-Baptiste Lassus. Na verdade, essas feras
pesadelares nem sequer são gárgulas: são grotescos
(estátuas ou baixos-relevos que representam animais, fauna mitológica ou
simples motivos decorativos vegetais) – todavia foram baptizadas de quimeras (chimères, no original) por Viollet-le-Duc no documento Mémoire de Travaux de Sculpture (Memória do Trabalho de Escultura), de
1849.
A palavra gárgula tem como étimo a antiga palavra
francesa gargole: esta, de origem
onomatopaica, tanto significa garganta
como gargarejo. Um gargarejo, cujo
som indica de imediato o seu próprio nome, referia-se ao brotar da água das
fontes. Com efeito, todas as gárgulas são bicas de água, desenhadas para escoar
pelas bocas escancaradas o excedente das enxurradas; de maneira geral, são
pequenas peças escultóricas que se projectam das cercaduras superiores dos
edifícios para que a água escorra através delas. Podem ser zoomórficas (e
apresentar feitios de diferentes animais, como leões ou águias, às vezes cães)
ou antropomórficas, mas previamente à tónica cada vez mais ornamental que os
escultores imprimiram nos seus trabalhos, em principal a partir do século XIV,
a gárgula mais comum era apenas uma calha voltada para a rua. Compreenda-se que
elas eram substituídas com alguma frequência, devido à erosão provocada pela
água (eram talhadas em rochas maleáveis, mas desgastáveis, como o calcário) ou
por quedas, por isso tinham de ser componentes práticos. A ideia popular de que
se tratavam de alegorias religiosas perde sustentação quando se compreende que
as gárgulas, tanto as amorfas como as figurativas, foram adoptadas por todo o
tipo de construções, desde as monásticas às civis. Um facto que por vezes é
esquecido é o de que as esculturas medievais, fossem de madeira ou pedra, eram
quase todas pintadas (tal como as esculturas do período clássico) – assim como
partes das igrejas também eram pintadas com cores que hoje nunca lhes
associaríamos. Principalmente durante a Alta Idade Média, as igrejas eram, mais
do que casas de oração e penitência, autênticos centros comunitários, nos quais
os indivíduos se reuniam para conversar, fazer negócio e até dedicar-se a
actividades tradicionais de lazer. Existia uma atmosfera, se não de
informalidade, de familiaridade. Nesse sentido, os grotescos primitivos – e as gárgulas
ducentistas – também eram pintados.
Ducentistas porque,
embora a multiplicação das representativas gárgulas europeias continue por
descortinar com rigor, aceita-se que sejam criações da primeira metade do
século XIII (um respigar das expressivas bicas de água greco-romanas ou
influências das iluminuras dos bestiários?), pois até essa altura a água da
chuva simplesmente escorria pelos beirais. De maneira geral, as formidáveis
gárgulas feitas à imagem de animais exóticos são esculturas muito recentes: como
os (perfeitíssimos) rinoceronte e hipopótamo alados que podem ver-se na
catedral gótica francesa de Notre-Dame de Laon; ambos de finais do século XIX,
concebidos pelo arquitecto francês Émile Boeswillwald, colaborador de
Viollet-le-Duc e um dos inspectores do restauro de Notre-Dame de Paris.
A catedral de Laon
(iniciada em meados do século XII e terminada na primeira metade do século
XIII), famosa pela lenda do boi (ou bois) etéreo que apareceu numa hora de
dificuldade para ajudar a transportar até ao local de edificação as pedras que
os cavalos eram incapazes de puxar, apresenta à guisa de tótemes dezasseis
grotescos bovinos, de corpos inteiros, nas suas torres: estes grotescos serão,
provavelmente, medievais, já que aparecem desenhados (de modo espontâneo) no
livro de esboços do artista francês ducentista Villard de Honnecourt, datado de
1230. Sobranceiras aos bois estão diversas gárgulas zoomórficas, comparáveis às
quimeras de Notre-Dame de Paris, mas Honnecourt não as desenhou, porque são
obra de Boeswillwald e Viollet-le-Duc – um dos grotescos de Laon é,
precisamente, uma anfisbena feita com as cabeças dos dois arquitectos. Não
deixa de ser caricato que os grotescos medievais da catedral de Reims, que o
historiador francês Émile Mâle disse terem sido a inspiração de Viollet-le-Duc
para as quimeras de Notre-Dame, foram desenhados pelo próprio Viollet-le-Duc
durante a restauração que realizou a esse monumento, entre 1860 e 1874: uma
fotografia tirada em 1851 à abside da catedral de Reims pelo fotógrafo francês
Henri Le Secq mostra que os grotescos não existiam nessa altura.
Na minha opinião, os
grotescos existentes mais antigos e parecidos com as quimeras “notredamescas”
poderão ser os intrigantes hunky punks
ingleses: toscas criaturinhas, em péssimo estado de conservação, que figuram em
algumas igrejas do condado de Somerset e que datam, provavelmente, da segunda
metade do século XV e do início do XVI. Antes de empreender o restauro,
Viollet-le-Duc referiu que vislumbrara vestígios de antigas quimeras “medievais”
na balaustrada de Notre-Dame: de facto, existe um desenho de 1699 que mostra
pequenos grotescos na balaustrada, mas é conjectural dizer-se que são os
vestígios vistos por Viollet-le-Duc. De qualquer das formas, esses grotescos
seiscentistas (se o são, de facto) nada têm a ver com a panóplia de cinquenta e
quatro quimeras que o arquitecto colocou à volta do monumento.
À primeira vista, a
quimérica camarilla de Notre-Dame
parece continuar a genealogia dos grotescos medievais, mas é um bestiário que
deve mais ao neo-gótico e ao revivalismo romântico que às ideias do século
XIII. Os verdadeiros grotescos medievais são criações de cariz folclórico – até
apotropaico – que exibem os genitais e representam explícitos actos sexuais.
Alguns, desatinados, puxam as barbas e os cabelos; outros os lábios. São
personagens híbridas de religiosidade e superstição e geralmente encontram-se
esculpidas nas mísulas de suporte de colunas e arquivoltas, assim como nas
chamadas “misericórdias”: os acessórios de madeira que nos coros servem de
assento aos clérigos que permanecem em pé durante as leituras dos ofícios
divinos e orações. À semelhança das criaturas iluminadas pelos copistas nos
manuscritos – que ocupam as margens das páginas e camuflam-se nas letras
maiúsculas que iniciam os parágrafos dos textos –, a maioria não está à mostra
nos lancis ou nos altares, mas oculta nos cantos, nos interstícios: à espreita,
à espera da surpresa do observador. A catedral de Notre-Dame ainda tem alguns
desses grotescos originais; como aquele que representa a Luxúria, esculpido em
inícios do século XIII, numa arquivolta do portão central (o do Juízo Final),
mas as assexuadas quimeras de Viollet-le-Duc não são folclóricas: são criações
eruditas, “literárias”, passadas a limpo em papel vegetal sobre as linhas rudes
do passado.
Algumas parecem-se
muitíssimo com as ilustrações teriomórficas que esse arquitecto desenhou para a
monumental obra em vinte e quatro volumes Voyages
Pittoresques et Romantiques dans l’Ancienne France (Viagens Pitorescas e Românticas pela Antiga França), organizada
pelos escritores franceses Isidore-Justin-Séverin Taylor e Charles Nodier e
publicada entre 1820 e 1878: Viollet-le-Duc fez duzentas e quarenta e nove
ilustrações para esse seriado, entre 1837 e 1844. Outras são, de certeza,
influenciadas por concepções raciais e fisiognomónicas, como é o caso da
célebre Stryge (Estrige), espécie de
vampiro com caricatura anti-semita. Outra quimera, às vezes chamada de
Alquimista, é na verdade o proverbial Judeu Errante (Juif Errant): está voltada para Oriente a um canto da Torre Norte.
Outras, como o demónio unicórnio, foram cinzeladas com feições decalcadas de
doentes mentais. O bestiário da balaustrada não expõe os terrores medievais,
mas os medos do século XIX: o medo do Outro, o medo das classes inferiores, o
medo da loucura. No seu livro Histoire de
l’Habitation Humaine (História da
Habitação Humana), publicado em 1875, Viollet-le-Duc expressou em termos
arquitectónicos, mas também sociais, a teoria da desigualdade das raças, em
voga nesse período e popularizada pelo livro de Gobineau (1855): o frontispício
mostra um magnificente Apolo, como deus da arquitectura, a amestrar com toadas
de lira um grupo de negros franzinos. O título do primeiro capítulo, «Serão Homens?», tanto interroga o
leitor sobre os nossos antepassados cavernícolas como sobre as etnias julgadas
incapazes de erguer edifícios tão sumptuosos como as catedrais.
Sumptuosa é Notre-Dame,
claro, mas no início do século XIX estava num estado ruinoso: expropriada de
estátuas e outras riquezas durante o período revolucionário de finais do século
XVIII, o edifício chegou a ser usado como armazém antes do culto religioso ser
reinstituído em 1803. Nessa altura, operou-se um restauro incompetente que
ainda mais a danificou. Finalmente, depois de uma longa campanha de
sensibilização, da qual fizeram parte homens de cultura como o escritor francês
Victor Hugo, inaugurou-se um concurso para a restauração de Notre-Dame e o
projecto de Viollet-le-Duc ganhou-o; em parte, porque se inclinava mais para a
função histórica do edifício que para a religiosa. Porém, o facto mais curioso
do projecto (aprovado em 1845) é que não apresenta nem menciona a colocação das
quimeras.
Elas só foram projectadas
nos anos de 1848 e 1849 – coincidindo com o rebentamento da Revolução de
Fevereiro que depôs Louis-Philippe I, último rei de França. Contudo, em 1856,
quando as quimeras lavradas pelo escultor francês Victor Joseph Pyanet
(artificie que deu dimensão aos desenhos de Viollet-le-Duc e Lassus) finalmente
observaram Paris do alto da galeria centenária não viram a Segunda República,
desbaratada no Verão de 1848, mas o governo autoritário de Louis-Napoléon
Bonaparte, dito último “monarca” de França e cabeça do chamado Segundo Império
Francês. Talvez resida aqui a autêntica afinidade das quimeras com os grotescos
medievais.
Ambos são encobertos
entes subversivos que iluminam a imaginação dos indivíduos que com eles se
cruzam e que os contemplam. São o lado endiabrado, simultaneamente desesperante
e exultante, da arte e da vida. São satélites negros que na sua magistral
órbita entre religioso e profano acabam por ser verdadeiramente sagrados.*
Apêndice: Sobre as originais quimeras medievais
"—Para quê, roubar o meu centauro?
Que ganhará o homem de ciência ao provar
que estou a confundir quimeras com a realidade?"
Violet-le-Duc, Palestras sobre arquitectura.
Viollet-le-Duc manteve a quimera de esculpir cinquenta e quatro monstros
para o seu restauro de Notre-Dame, arguindo que encontrara vestígios de
criaturas antigas na imponente balaustrada. Este desenho de Antier,
datado de 1699, que mostra seres ornitomorfos na balaustrada, comprova
que o arquitecto estava certo —
sobretudo, considerando que é consensual entre os historiadores de arte
que a fachada e as duas torres sineiras de Notre-Dame foram concluídas
na primeira metade do século XIII, nada nos desvia de considerar que as
primevas quimeras representadas no desenho seiscentista são originais.
Le-Duc não deixou que lhe roubassem o centauro e, assim, tornou-se um
dos pais da idade contemporânea, um dos pais do século XX. Quem achar
que é exagero não conhece nada de história. A lição de Le-Duc é a de que
as indomáveis e supérfluas quimeras da fantasia têm mais a dizer sobre a
natureza humana que as reguláveis e medíveis monstruosidades da razão.
*Texto publicado originalmente em SOARES, David, Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes, São Pedro do Estoril, Edições Saída de Emergência, 2012, pp. 233-239.