segunda-feira, 29 de abril de 2019

Sobre sacos feitos de soro de leite

Agora que foi anunciado na comunicação social que, em substituição do plástico, os sacos de supermercado para alimentos frescos, como fruta, legumes e pão, vão passar a ser feitos de leite (ou, em maior rigor, de fibras de caseína, a proteína desse soro) vale a pena lembrar que essa ideia não só não é nova (foi inventada há cem anos) como foi um dos projectos considerados mais revolucionários pelo governo fascista italiano de Mussolini — inclusive, celebrado por Marinetti no futurista Poema do Vestido de Leite.

Para simplificar o discurso, de molde a não obstaculizar a estranheza de todo este conteúdo que, provavelmente, será uma novidade para quem não conhece a história do século XX — e a história do Fascismo, em principal —, sintetize-se desta forma: depois de a Itália ter invadido a Etiópia, a Liga das Nações decidiu castigá-la com sanções, mas o desvínculo dessa medida por parte de alguns países não provocou o efeito desejado; porém, foi um sinal claro o suficiente para que Mussolini apanhasse um susto e, consequentemente, concebesse uma grande campanha de produção manufactureira e industrial italiana totalmente auto-suficiente — ora, uma das áreas em que o conceito poderia ser mais fácil de aplicar era, à partida, a dos têxteis. Foi aqui que a ideia fascista da autarkia ("auto-suficiência"), como era designada no programa político, se conjugou com o espírito revolucionário fascista (o Fascismo foi um movimento revolucionário de Direita): o de criar um material-novo para uma sociedade nova.

Nessa perspectiva, os tecidos feitos de leite — tecnologia criada em Itália no início do século XX — consistiam numa solução atractiva, pois permitiam que Mussolini fosse ao encontro desses dois desideratos. A companhia criada para a produção desse novo e tão italiano material foi a Snia Viscosa, enquanto que à lã de leite se chamou Lanital (portmanteau feito da fusão das palavras lã e Itália). No poster propagandístico que publico abaixo pode ver-se dois grupos da Juventude Fascista, de Balillas e Piccole Italiane, a puxar em sentido contrário um fio de Lanital para comprovar a força do tecido e a união que este cumpria na nação, aqui representada pelas crianças: os homens e mulheres do Amanhã e o material do Amanhã.

Não obstante o entusiasmo e a propaganda (e as vendas internacionais para a Alemanha e a Inglaterra), a experiência Lanital não surtiu os resultados previstos (o material não era muito resistente, o que limitava o âmbito da sua introdução no mercado e, em certos casos, tinha tendência para cheirar mal) e foi sendo abandonada. Isso não impediu, todavia, que continuasse a ser desenvolvida em diferentes contextos, já no pós-II Grande Guerra.

Não deixa de ser tentador observar que a aparente obsessão hodierna com a alegada perigosidade de alguns tipos muito específicos de indústrias, como, neste caso, a do plástico, foi encontrar resposta salvífica num material que já os antigos fascistas haviam rotulado de revolucionário — e que, acrescente-se, continua a não ser "verde" (ou vegan), pois é feito de leite.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Gárgulas e grotescos: Sobre as oitocentistas quimeras de Notre-Dame

É consensual ver as gárgulas que adornam a balaustrada da galeria superior da catedral parisiense de Notre-Dame como uma das mais expressivas manifestações da escultura gótica, mas essas endemoninhadas criaturas de pedra não têm nada de gótico, muito menos de medieval: foram projectadas em meados do século XIX, durante a restauração do monumento, iniciada em 1845, levada a cabo pelos arquitectos franceses Eugène Viollet-le-Duc e Jean-Baptiste Lassus. Na verdade, essas feras pesadelares nem sequer são gárgulas: são grotescos (estátuas ou baixos-relevos que representam animais, fauna mitológica ou simples motivos decorativos vegetais) – todavia foram baptizadas de quimeras (chimères, no original) por Viollet-le-Duc no documento Mémoire de Travaux de Sculpture (Memória do Trabalho de Escultura), de 1849.

A palavra gárgula tem como étimo a antiga palavra francesa gargole: esta, de origem onomatopaica, tanto significa garganta como gargarejo. Um gargarejo, cujo som indica de imediato o seu próprio nome, referia-se ao brotar da água das fontes. Com efeito, todas as gárgulas são bicas de água, desenhadas para escoar pelas bocas escancaradas o excedente das enxurradas; de maneira geral, são pequenas peças escultóricas que se projectam das cercaduras superiores dos edifícios para que a água escorra através delas. Podem ser zoomórficas (e apresentar feitios de diferentes animais, como leões ou águias, às vezes cães) ou antropomórficas, mas previamente à tónica cada vez mais ornamental que os escultores imprimiram nos seus trabalhos, em principal a partir do século XIV, a gárgula mais comum era apenas uma calha voltada para a rua. Compreenda-se que elas eram substituídas com alguma frequência, devido à erosão provocada pela água (eram talhadas em rochas maleáveis, mas desgastáveis, como o calcário) ou por quedas, por isso tinham de ser componentes práticos. A ideia popular de que se tratavam de alegorias religiosas perde sustentação quando se compreende que as gárgulas, tanto as amorfas como as figurativas, foram adoptadas por todo o tipo de construções, desde as monásticas às civis. Um facto que por vezes é esquecido é o de que as esculturas medievais, fossem de madeira ou pedra, eram quase todas pintadas (tal como as esculturas do período clássico) – assim como partes das igrejas também eram pintadas com cores que hoje nunca lhes associaríamos. Principalmente durante a Alta Idade Média, as igrejas eram, mais do que casas de oração e penitência, autênticos centros comunitários, nos quais os indivíduos se reuniam para conversar, fazer negócio e até dedicar-se a actividades tradicionais de lazer. Existia uma atmosfera, se não de informalidade, de familiaridade. Nesse sentido, os grotescos primitivos – e as gárgulas ducentistas – também eram pintados.

Ducentistas porque, embora a multiplicação das representativas gárgulas europeias continue por descortinar com rigor, aceita-se que sejam criações da primeira metade do século XIII (um respigar das expressivas bicas de água greco-romanas ou influências das iluminuras dos bestiários?), pois até essa altura a água da chuva simplesmente escorria pelos beirais. De maneira geral, as formidáveis gárgulas feitas à imagem de animais exóticos são esculturas muito recentes: como os (perfeitíssimos) rinoceronte e hipopótamo alados que podem ver-se na catedral gótica francesa de Notre-Dame de Laon; ambos de finais do século XIX, concebidos pelo arquitecto francês Émile Boeswillwald, colaborador de Viollet-le-Duc e um dos inspectores do restauro de Notre-Dame de Paris.

A catedral de Laon (iniciada em meados do século XII e terminada na primeira metade do século XIII), famosa pela lenda do boi (ou bois) etéreo que apareceu numa hora de dificuldade para ajudar a transportar até ao local de edificação as pedras que os cavalos eram incapazes de puxar, apresenta à guisa de tótemes dezasseis grotescos bovinos, de corpos inteiros, nas suas torres: estes grotescos serão, provavelmente, medievais, já que aparecem desenhados (de modo espontâneo) no livro de esboços do artista francês ducentista Villard de Honnecourt, datado de 1230. Sobranceiras aos bois estão diversas gárgulas zoomórficas, comparáveis às quimeras de Notre-Dame de Paris, mas Honnecourt não as desenhou, porque são obra de Boeswillwald e Viollet-le-Duc – um dos grotescos de Laon é, precisamente, uma anfisbena feita com as cabeças dos dois arquitectos. Não deixa de ser caricato que os grotescos medievais da catedral de Reims, que o historiador francês Émile Mâle disse terem sido a inspiração de Viollet-le-Duc para as quimeras de Notre-Dame, foram desenhados pelo próprio Viollet-le-Duc durante a restauração que realizou a esse monumento, entre 1860 e 1874: uma fotografia tirada em 1851 à abside da catedral de Reims pelo fotógrafo francês Henri Le Secq mostra que os grotescos não existiam nessa altura.

Na minha opinião, os grotescos existentes mais antigos e parecidos com as quimeras “notredamescas” poderão ser os intrigantes hunky punks ingleses: toscas criaturinhas, em péssimo estado de conservação, que figuram em algumas igrejas do condado de Somerset e que datam, provavelmente, da segunda metade do século XV e do início do XVI. Antes de empreender o restauro, Viollet-le-Duc referiu que vislumbrara vestígios de antigas quimeras “medievais” na balaustrada de Notre-Dame: de facto, existe um desenho de 1699 que mostra pequenos grotescos na balaustrada, mas é conjectural dizer-se que são os vestígios vistos por Viollet-le-Duc. De qualquer das formas, esses grotescos seiscentistas (se o são, de facto) nada têm a ver com a panóplia de cinquenta e quatro quimeras que o arquitecto colocou à volta do monumento.

À primeira vista, a quimérica camarilla de Notre-Dame parece continuar a genealogia dos grotescos medievais, mas é um bestiário que deve mais ao neo-gótico e ao revivalismo romântico que às ideias do século XIII. Os verdadeiros grotescos medievais são criações de cariz folclórico – até apotropaico – que exibem os genitais e representam explícitos actos sexuais. Alguns, desatinados, puxam as barbas e os cabelos; outros os lábios. São personagens híbridas de religiosidade e superstição e geralmente encontram-se esculpidas nas mísulas de suporte de colunas e arquivoltas, assim como nas chamadas “misericórdias”: os acessórios de madeira que nos coros servem de assento aos clérigos que permanecem em pé durante as leituras dos ofícios divinos e orações. À semelhança das criaturas iluminadas pelos copistas nos manuscritos – que ocupam as margens das páginas e camuflam-se nas letras maiúsculas que iniciam os parágrafos dos textos –, a maioria não está à mostra nos lancis ou nos altares, mas oculta nos cantos, nos interstícios: à espreita, à espera da surpresa do observador. A catedral de Notre-Dame ainda tem alguns desses grotescos originais; como aquele que representa a Luxúria, esculpido em inícios do século XIII, numa arquivolta do portão central (o do Juízo Final), mas as assexuadas quimeras de Viollet-le-Duc não são folclóricas: são criações eruditas, “literárias”, passadas a limpo em papel vegetal sobre as linhas rudes do passado. 
 
Algumas parecem-se muitíssimo com as ilustrações teriomórficas que esse arquitecto desenhou para a monumental obra em vinte e quatro volumes Voyages Pittoresques et Romantiques dans l’Ancienne France (Viagens Pitorescas e Românticas pela Antiga França), organizada pelos escritores franceses Isidore-Justin-Séverin Taylor e Charles Nodier e publicada entre 1820 e 1878: Viollet-le-Duc fez duzentas e quarenta e nove ilustrações para esse seriado, entre 1837 e 1844. Outras são, de certeza, influenciadas por concepções raciais e fisiognomónicas, como é o caso da célebre Stryge (Estrige), espécie de vampiro com caricatura anti-semita. Outra quimera, às vezes chamada de Alquimista, é na verdade o proverbial Judeu Errante (Juif Errant): está voltada para Oriente a um canto da Torre Norte. Outras, como o demónio unicórnio, foram cinzeladas com feições decalcadas de doentes mentais. O bestiário da balaustrada não expõe os terrores medievais, mas os medos do século XIX: o medo do Outro, o medo das classes inferiores, o medo da loucura. No seu livro Histoire de l’Habitation Humaine (História da Habitação Humana), publicado em 1875, Viollet-le-Duc expressou em termos arquitectónicos, mas também sociais, a teoria da desigualdade das raças, em voga nesse período e popularizada pelo livro de Gobineau (1855): o frontispício mostra um magnificente Apolo, como deus da arquitectura, a amestrar com toadas de lira um grupo de negros franzinos. O título do primeiro capítulo, «Serão Homens?», tanto interroga o leitor sobre os nossos antepassados cavernícolas como sobre as etnias julgadas incapazes de erguer edifícios tão sumptuosos como as catedrais. 
 
Sumptuosa é Notre-Dame, claro, mas no início do século XIX estava num estado ruinoso: expropriada de estátuas e outras riquezas durante o período revolucionário de finais do século XVIII, o edifício chegou a ser usado como armazém antes do culto religioso ser reinstituído em 1803. Nessa altura, operou-se um restauro incompetente que ainda mais a danificou. Finalmente, depois de uma longa campanha de sensibilização, da qual fizeram parte homens de cultura como o escritor francês Victor Hugo, inaugurou-se um concurso para a restauração de Notre-Dame e o projecto de Viollet-le-Duc ganhou-o; em parte, porque se inclinava mais para a função histórica do edifício que para a religiosa. Porém, o facto mais curioso do projecto (aprovado em 1845) é que não apresenta nem menciona a colocação das quimeras.

Elas só foram projectadas nos anos de 1848 e 1849 – coincidindo com o rebentamento da Revolução de Fevereiro que depôs Louis-Philippe I, último rei de França. Contudo, em 1856, quando as quimeras lavradas pelo escultor francês Victor Joseph Pyanet (artificie que deu dimensão aos desenhos de Viollet-le-Duc e Lassus) finalmente observaram Paris do alto da galeria centenária não viram a Segunda República, desbaratada no Verão de 1848, mas o governo autoritário de Louis-Napoléon Bonaparte, dito último “monarca” de França e cabeça do chamado Segundo Império Francês. Talvez resida aqui a autêntica afinidade das quimeras com os grotescos medievais.

Ambos são encobertos entes subversivos que iluminam a imaginação dos indivíduos que com eles se cruzam e que os contemplam. São o lado endiabrado, simultaneamente desesperante e exultante, da arte e da vida. São satélites negros que na sua magistral órbita entre religioso e profano acabam por ser verdadeiramente sagrados.*


Apêndice: Sobre as originais quimeras medievais

"—Para quê, roubar o meu centauro?
Que ganhará o homem de ciência ao provar
que estou a confundir quimeras com a realidade?"
Violet-le-Duc, Palestras sobre arquitectura.


Viollet-le-Duc manteve a quimera de esculpir cinquenta e quatro monstros para o seu restauro de Notre-Dame, arguindo que encontrara vestígios de criaturas antigas na imponente balaustrada. Este desenho de Antier, datado de 1699, que mostra seres ornitomorfos na balaustrada, comprova que o arquitecto estava certo — sobretudo, considerando que é consensual entre os historiadores de arte que a fachada e as duas torres sineiras de Notre-Dame foram concluídas na primeira metade do século XIII, nada nos desvia de considerar que as primevas quimeras representadas no desenho seiscentista são originais. Le-Duc não deixou que lhe roubassem o centauro e, assim, tornou-se um dos pais da idade contemporânea, um dos pais do século XX. Quem achar que é exagero não conhece nada de história. A lição de Le-Duc é a de que as indomáveis e supérfluas quimeras da fantasia têm mais a dizer sobre a natureza humana que as reguláveis e medíveis monstruosidades da razão.


*Texto publicado originalmente em SOARES, David, Compêndio de Segredos Sombrios e Factos Arrepiantes, São Pedro do Estoril, Edições Saída de Emergência, 2012, pp. 233-239.