«'Sim, lembro-me do poema que me enviou: Louco, sim, louco, porque quis grandeza. Caro Pessoa, se não soubesse o que sei até concordava consigo, não duvide.'
'Sou todo ouvidos.'
'Toda a informação que encontrei sobre D. Sebastião é factual, como lhe disse, contudo os factos servem a imaginação, se o observador for criativo na interpretação. Não vou discorrer sobre todos os pontos que me levaram à conclusão que lhe vou apresentar. A verdade é... bom, como dizê-lo? Já viu alguma vez o terreno de Alcácer-Quibir?'
'Não. Nunca estive no Norte de África, como lhe disse.'
'Muito bem, então eu descrevo-lhe. É um buraco. É um autêntico buraco.'
'Como?'
'Um funil de pedra e areia do qual apenas com muito esforço um exército conseguiria sair vitorioso depois de ser cercado como foi o português. Ouça: o próprio Sebastião viajou extensivamente em busca de um local ideal para a batalha onde desafiaria o rei Maluco. Foi ele quem quis a guerra e não o Maluco; rejeitou todas as tentativas de diplomacia intentadas por ele e pelo seu tio, Filipe II de Espanha. Foi ele quem escolheu o terreno de Alcácer-Quibir. Só ele e mais ninguém.'
'Sim, era obstinado, teimoso.'
'E onde acaba a teimosia e começa a loucura, senhor Pessoa? Oh, este louco quis grandeza, sim, mas não aquela que o senhor pensa! No dia da batalha, D. Sebastião anunciou que só iria combater à tarde e foi um capitão, um soldado espanhol chamado Aldana, que o fez mudar de ideias.'
'Sim, mas há quem diga que foi mesmo por causa dessa decisão que a batalha foi perdida. Não tiveram tempo para se preparar.'
'Qual tempo, senhor Pessoa! Começada a batalha, D. Sebastião esqueceu-se de emitir a ordem de combate. Esqueceu-se? Como é que isso é possível? Terá pensado que estava num salão de baile à espera que o convidassem para dançar? Uma ilusão difícil de visualizar com toda a gritaria, o pó e o relinchar de cavalos. A impavidez obrigou o Duque de Aveiro e D. Duarte de Meneses, mais os combatentes dos terços, a agir por conta própria. Em poucos minutos, a batalha transformou-se num massacre. Dentro de um buraco, senhor Pessoa, quando a saída está tapada, só há uma fuga possível: para baixo!'
'Está a dizer que ele foi um péssimo estratega, que não sabia comandar. Que era estúpido ou atrasado mental como lhe chamou o escritor António Sérgio.'
'Pelo contrário, senhor Pessoa! Pelo contrário. O homem foi um génio! Um génio da estratégia, frio e calculista. Veja o meu braço! Até estou com pele de galinha.' Arregaçou a manga da camisa e mostrou-lhe.
'Senhor Crowley!', disse Pessoa, surpreendido. 'Que se passa?'
'Estou excitado! Excitado por pensar no génio de tudo aquilo. Na audácia! Na coragem!'
'Pensei que a sua opinião era outra.'
'Ainda não percebeu? D. Sebastião escolheu Alcácer-Quibir porque o terreno era um buraco. Ele reuniu um exército mal treinado. Ele obrigou esse exército a dar uma volta enorme desde Portugal até ao local da contenda em África, ignorando o caminho mais curto que, ainda por cima, era o mais seguro, esgotando as energias dos soldados sem necessidade nenhuma. Ele quis adiar o combate para a tarde, como lhe sugeriu o xerife berbere caído em desgraça, uma ideia que, a ser realizada, iria dar tempo precioso ao adversário. Estas coisas, senhor Pessoa, as coisas que ele fez... Não se fazem! Lembra-se do xadrez? Para ganhar uma partida de xadrez é preciso ser-se objectivo. Ser-se objectivo! é muito simples.'
'Está a querer dizer que ele queria perder a batalha? É diabólico!'
'É genial! O homem queria perder! Ele estudou tudo ao pormenor para perder. Quando se percebe isso, a sua estratégia torna-se brilhante.'
'Mas porquê perder? Acho essa conclusão infame. Que tinha ele a ganhar com isso?'
'Para se encaixar ele mesmo nas profecias do Encoberto? Aquelas que contam como o rei é derrotado em batalha contra o inimigo para andar perdido durante uns anos antes do regresso triunfal?'
'Medonho! Acredita mesmo nisso?'
'Claro que não! Acha que um homem que estuda e planeia uma derrota destas com anos de antecedência ia confiar na sorte? O objectivo dele foi outro, senhor Pessoa. Muito mais medonho!'
'Qual?'
'A derrota em Alcácer-Quibir foi um sacrifício de sangue para carregar de energia mágica um poderoso encantamento!'»
Excerto do meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007), sobre o encontro de Fernando Pessoa com Aleister Crowley. Parabéns, Fernando! Até um dia destes.
'Sou todo ouvidos.'
'Toda a informação que encontrei sobre D. Sebastião é factual, como lhe disse, contudo os factos servem a imaginação, se o observador for criativo na interpretação. Não vou discorrer sobre todos os pontos que me levaram à conclusão que lhe vou apresentar. A verdade é... bom, como dizê-lo? Já viu alguma vez o terreno de Alcácer-Quibir?'
'Não. Nunca estive no Norte de África, como lhe disse.'
'Muito bem, então eu descrevo-lhe. É um buraco. É um autêntico buraco.'
'Como?'
'Um funil de pedra e areia do qual apenas com muito esforço um exército conseguiria sair vitorioso depois de ser cercado como foi o português. Ouça: o próprio Sebastião viajou extensivamente em busca de um local ideal para a batalha onde desafiaria o rei Maluco. Foi ele quem quis a guerra e não o Maluco; rejeitou todas as tentativas de diplomacia intentadas por ele e pelo seu tio, Filipe II de Espanha. Foi ele quem escolheu o terreno de Alcácer-Quibir. Só ele e mais ninguém.'
'Sim, era obstinado, teimoso.'
'E onde acaba a teimosia e começa a loucura, senhor Pessoa? Oh, este louco quis grandeza, sim, mas não aquela que o senhor pensa! No dia da batalha, D. Sebastião anunciou que só iria combater à tarde e foi um capitão, um soldado espanhol chamado Aldana, que o fez mudar de ideias.'
'Sim, mas há quem diga que foi mesmo por causa dessa decisão que a batalha foi perdida. Não tiveram tempo para se preparar.'
'Qual tempo, senhor Pessoa! Começada a batalha, D. Sebastião esqueceu-se de emitir a ordem de combate. Esqueceu-se? Como é que isso é possível? Terá pensado que estava num salão de baile à espera que o convidassem para dançar? Uma ilusão difícil de visualizar com toda a gritaria, o pó e o relinchar de cavalos. A impavidez obrigou o Duque de Aveiro e D. Duarte de Meneses, mais os combatentes dos terços, a agir por conta própria. Em poucos minutos, a batalha transformou-se num massacre. Dentro de um buraco, senhor Pessoa, quando a saída está tapada, só há uma fuga possível: para baixo!'
'Está a dizer que ele foi um péssimo estratega, que não sabia comandar. Que era estúpido ou atrasado mental como lhe chamou o escritor António Sérgio.'
'Pelo contrário, senhor Pessoa! Pelo contrário. O homem foi um génio! Um génio da estratégia, frio e calculista. Veja o meu braço! Até estou com pele de galinha.' Arregaçou a manga da camisa e mostrou-lhe.
'Senhor Crowley!', disse Pessoa, surpreendido. 'Que se passa?'
'Estou excitado! Excitado por pensar no génio de tudo aquilo. Na audácia! Na coragem!'
'Pensei que a sua opinião era outra.'
'Ainda não percebeu? D. Sebastião escolheu Alcácer-Quibir porque o terreno era um buraco. Ele reuniu um exército mal treinado. Ele obrigou esse exército a dar uma volta enorme desde Portugal até ao local da contenda em África, ignorando o caminho mais curto que, ainda por cima, era o mais seguro, esgotando as energias dos soldados sem necessidade nenhuma. Ele quis adiar o combate para a tarde, como lhe sugeriu o xerife berbere caído em desgraça, uma ideia que, a ser realizada, iria dar tempo precioso ao adversário. Estas coisas, senhor Pessoa, as coisas que ele fez... Não se fazem! Lembra-se do xadrez? Para ganhar uma partida de xadrez é preciso ser-se objectivo. Ser-se objectivo! é muito simples.'
'Está a querer dizer que ele queria perder a batalha? É diabólico!'
'É genial! O homem queria perder! Ele estudou tudo ao pormenor para perder. Quando se percebe isso, a sua estratégia torna-se brilhante.'
'Mas porquê perder? Acho essa conclusão infame. Que tinha ele a ganhar com isso?'
'Para se encaixar ele mesmo nas profecias do Encoberto? Aquelas que contam como o rei é derrotado em batalha contra o inimigo para andar perdido durante uns anos antes do regresso triunfal?'
'Medonho! Acredita mesmo nisso?'
'Claro que não! Acha que um homem que estuda e planeia uma derrota destas com anos de antecedência ia confiar na sorte? O objectivo dele foi outro, senhor Pessoa. Muito mais medonho!'
'Qual?'
'A derrota em Alcácer-Quibir foi um sacrifício de sangue para carregar de energia mágica um poderoso encantamento!'»
Excerto do meu romance A Conspiração dos Antepassados (Saída de Emergência, 2007), sobre o encontro de Fernando Pessoa com Aleister Crowley. Parabéns, Fernando! Até um dia destes.