Dizer que os americanos são incultos não é a mesma coisa que dizer que a América não tem cultura e aqui está o livro Scorpio Rising: Transgressão Juvenil, Anjos do Inferno e Cinema de Vanguarda, de Ondina Pires, para prová-lo. À superfície é uma análise do filme Scorpio Rising de Kenneth Anger, mas basta começar a lê-lo para se perceber que as intenções autorais não se esgotam nesse desiderato.
Sob o olhar de Pires, cujo Scorpio Rising consiste na publicação em livro da sua tese de mestrado em Estudos Americanos (Universidade Aberta), é nos mostrado que a cultura americana existe, de facto, mas que se trata de uma cultura ready made, usada na maioria das vezes como aríete.
Em conversas com amigos costumo dizer-lhes que a cultura americana até parece ser de esquerda, pois dirige-se sempre à ruptura e à mudança, mas isso, num país que ainda por cima não nenhumas tradições nem partidos de esquerda, pode ser entendido como um quadro fortalecido por imensos factores: a própria adolescência do país, quando comparado com a vetusta Europa (em sentido figurado: quem é que quer ser "de direita" aos quinze anos?), a constatação de que foi colonizado por peregrinos de raiz protestante que têm um pavor ingénito a tudo o que cheira a institucional e o isolamento geográfico face ao continente europeu.
Penso que é essa desconfiança sentida por qualquer espécie de cartilha institucional que faz da cultura americana uma espécie de "fartar vilanagem" pop: tudo é descontextualizado, tudo é dissolvido, interrogado e coagulado em novos formatos e linguagens. É por essa razão que, por exemplo, no filme Scorpio Rising assistimos a um entretecimento entre as iconografias nazi, gay e cristã, numa amálgama que nunca poderia ter sido sequer pensada por um europeu de 1964, ano em que esse filme de Anger foi realizado. Um escritor como Burroughs, para citar outro exemplo, nunca poderia ter nascido na Europa, assim como Anger é um cineasta essencialmente americano. Hoje em dia, com a velocidade a que se processam os cruzamentos de referências, as coisas não serão bem assim, mas nos anos sessenta, época em que não existiam os meios de comunicação e disseminação de mensagens que possuimos à nossa disposição, este carácter distintivo entre aquilo que é um modo de pensar europeu e um modo de fazer à americana apresentava distinções bem definidas, até conservadas sob visões mais ou menos preconceituosas sobre o que é a Alta ou a Baixa cultura.
Por conseguinte, ao ler Scorpion Rising de Pires de comigo envolvido numa espécie de debate muitíssimo interessante, porque nem sempre concordei com as propostas da autora, mas, ao mesmo tempo (e é para isso que servem os livros) também encontrei matéria de reflexão. A conclusão é que Scorpio Rising faz bem à cabeça: está muito bem feito, com uma sólida argumentação e ainda melhor documentado. É sempre um grande prazer ler livros escritos por quem sabe do que está a falar e Pires é um bom exemplo dessa premissa. Todavia, não existe em Scorpio Rising um único pensamento que se aventure a "sair da caixa". Uma consequência da sua prévia encarnação enquanto tese (nas quais quase nenhum raciocínio pode ser formulado sem ser apoiado por documentos existentes)? É possível - e esse é o ponto fraco de Scorpio Rising. Os pontos fortes são os momentos em que Pires discorre sobre Arte Popular, Arte Pop, culturas mainstream e underground, linguagem cinematográfica e a herança de Anger.
Entre outros excertos de mérito, posso citar este: «A falta de impacto comercial do cinema alternativo reside no condicionamento alienante das massas populares do cinema mainstream financiado por produtores, políticos e lobbies económicos a quem não convém a abertura das "portas da percepcção" (cf Aldous Huxley) desse público, preferindo o êxito fácil de melodramas sentimentalistas, pornografia e comédias de baixo coturno, divulgadas pelos mass media - um quase terrorismo cultural totalitário que tem contaminado a Cultura Popular. Pelo motivo acima apontado, o cinema de vanguarda é visto pelo público como um alienígena subversivo e complicado de entender, algo que está acima do comum espectador, como por vezes se ouve em sondagens de rua. Contudo, convém não generalizar em termos de qualidade, que todo o cinema vanguardista é bom e que todo o cinema tradicional é mau. Assim como foi dito em relação às subculturas juvenis, nem todas tiveram qualidades positivas pois nada fizeram para apresentar soluções alternativas ao Sistema. Também é importante registar que sem cinema mainstream não teria havido cinema avant-garde, pelo que foi possível a este ir ao fundo das questões high/low cultures, sem entraves económicos, políticos e artísticos» (pgs. 120-121).
Neste excerto encontram-se várias questões importantes que podem ser dirigidas, também, à literatura.
O livro Scorpio Rising é, pois, uma bela proposta conjunta da Chili Com Carne e da Thisco, que vale muito a pena ler e cujo tema de análise abre canais de comunicação para outros assuntos. Um título que foi referenciado na revista Os Meus Livros deste mês.
Não posso deixar de destacar o excelente design de edição (João Cunha) para a luxuriante capa ilustrada pelo artista João Maio Pinto. Anger iria gostar...
Sob o olhar de Pires, cujo Scorpio Rising consiste na publicação em livro da sua tese de mestrado em Estudos Americanos (Universidade Aberta), é nos mostrado que a cultura americana existe, de facto, mas que se trata de uma cultura ready made, usada na maioria das vezes como aríete.
Em conversas com amigos costumo dizer-lhes que a cultura americana até parece ser de esquerda, pois dirige-se sempre à ruptura e à mudança, mas isso, num país que ainda por cima não nenhumas tradições nem partidos de esquerda, pode ser entendido como um quadro fortalecido por imensos factores: a própria adolescência do país, quando comparado com a vetusta Europa (em sentido figurado: quem é que quer ser "de direita" aos quinze anos?), a constatação de que foi colonizado por peregrinos de raiz protestante que têm um pavor ingénito a tudo o que cheira a institucional e o isolamento geográfico face ao continente europeu.
Penso que é essa desconfiança sentida por qualquer espécie de cartilha institucional que faz da cultura americana uma espécie de "fartar vilanagem" pop: tudo é descontextualizado, tudo é dissolvido, interrogado e coagulado em novos formatos e linguagens. É por essa razão que, por exemplo, no filme Scorpio Rising assistimos a um entretecimento entre as iconografias nazi, gay e cristã, numa amálgama que nunca poderia ter sido sequer pensada por um europeu de 1964, ano em que esse filme de Anger foi realizado. Um escritor como Burroughs, para citar outro exemplo, nunca poderia ter nascido na Europa, assim como Anger é um cineasta essencialmente americano. Hoje em dia, com a velocidade a que se processam os cruzamentos de referências, as coisas não serão bem assim, mas nos anos sessenta, época em que não existiam os meios de comunicação e disseminação de mensagens que possuimos à nossa disposição, este carácter distintivo entre aquilo que é um modo de pensar europeu e um modo de fazer à americana apresentava distinções bem definidas, até conservadas sob visões mais ou menos preconceituosas sobre o que é a Alta ou a Baixa cultura.
Por conseguinte, ao ler Scorpion Rising de Pires de comigo envolvido numa espécie de debate muitíssimo interessante, porque nem sempre concordei com as propostas da autora, mas, ao mesmo tempo (e é para isso que servem os livros) também encontrei matéria de reflexão. A conclusão é que Scorpio Rising faz bem à cabeça: está muito bem feito, com uma sólida argumentação e ainda melhor documentado. É sempre um grande prazer ler livros escritos por quem sabe do que está a falar e Pires é um bom exemplo dessa premissa. Todavia, não existe em Scorpio Rising um único pensamento que se aventure a "sair da caixa". Uma consequência da sua prévia encarnação enquanto tese (nas quais quase nenhum raciocínio pode ser formulado sem ser apoiado por documentos existentes)? É possível - e esse é o ponto fraco de Scorpio Rising. Os pontos fortes são os momentos em que Pires discorre sobre Arte Popular, Arte Pop, culturas mainstream e underground, linguagem cinematográfica e a herança de Anger.
Entre outros excertos de mérito, posso citar este: «A falta de impacto comercial do cinema alternativo reside no condicionamento alienante das massas populares do cinema mainstream financiado por produtores, políticos e lobbies económicos a quem não convém a abertura das "portas da percepcção" (cf Aldous Huxley) desse público, preferindo o êxito fácil de melodramas sentimentalistas, pornografia e comédias de baixo coturno, divulgadas pelos mass media - um quase terrorismo cultural totalitário que tem contaminado a Cultura Popular. Pelo motivo acima apontado, o cinema de vanguarda é visto pelo público como um alienígena subversivo e complicado de entender, algo que está acima do comum espectador, como por vezes se ouve em sondagens de rua. Contudo, convém não generalizar em termos de qualidade, que todo o cinema vanguardista é bom e que todo o cinema tradicional é mau. Assim como foi dito em relação às subculturas juvenis, nem todas tiveram qualidades positivas pois nada fizeram para apresentar soluções alternativas ao Sistema. Também é importante registar que sem cinema mainstream não teria havido cinema avant-garde, pelo que foi possível a este ir ao fundo das questões high/low cultures, sem entraves económicos, políticos e artísticos» (pgs. 120-121).
Neste excerto encontram-se várias questões importantes que podem ser dirigidas, também, à literatura.
O livro Scorpio Rising é, pois, uma bela proposta conjunta da Chili Com Carne e da Thisco, que vale muito a pena ler e cujo tema de análise abre canais de comunicação para outros assuntos. Um título que foi referenciado na revista Os Meus Livros deste mês.
Não posso deixar de destacar o excelente design de edição (João Cunha) para a luxuriante capa ilustrada pelo artista João Maio Pinto. Anger iria gostar...
E falando em João Maio Pinto, urge divulgar a primeira publicação impressa (enquanto entidade apartada de textos de outros autores) do seu trabalho como ilustrador: The Gleaming Armament of Marching Genitalia (mmmnnnrrrg, 2009). A edição é o número vigésimo primeiro do famoso fanzine português de banda desenhada Mesinha de Cabeceira, editado por Marcos Farrajota.
O título, que também é o de uma música da banda-sonora do filme Christmas on March (realizado e produzido pela banda The Flaming Lips) não é tão intrincado quanto os desenhos dendriformes de Maio Pinto, artista que tem um talento verdadeiramente paganiniano para desenhar cenas convulutas sem as transformar em objectos amorfos. Esta é, apenas, uma pequena amostra do seu belíssimo trabalho e capacidades artísticas, claro, mas sobre ela muito bem pensou Pedro Moura, crítico de BD que escreveu uma crítica a esta proposta de Pinto que eu vos convido a ler.
O título, que também é o de uma música da banda-sonora do filme Christmas on March (realizado e produzido pela banda The Flaming Lips) não é tão intrincado quanto os desenhos dendriformes de Maio Pinto, artista que tem um talento verdadeiramente paganiniano para desenhar cenas convulutas sem as transformar em objectos amorfos. Esta é, apenas, uma pequena amostra do seu belíssimo trabalho e capacidades artísticas, claro, mas sobre ela muito bem pensou Pedro Moura, crítico de BD que escreveu uma crítica a esta proposta de Pinto que eu vos convido a ler.