quarta-feira, 1 de setembro de 2010

"A Luz Miserável" no Fórum Fantástico 2010


«Enquanto esperava por Joni, o grupo reunido na suite do último andar do hotel procurava decifrar os sons remissos que atravessavam o chão alcatifado. Mulheres elegantes, acompanhadas por homens vestidos com roupas escuras, olhavam para as pontas dos sapatos, e consultavam os relógios, enquanto dois serviçais deambulavam pela sala com tabuleiros nas mãos: um com comida e outro com bebidas; hoplitas do catering. Atrás da assistência disposta em círculo no centro da sala, em volta de um candelabro com velas acesas, as janelas estavam fechadas e o calor, mesmo com o ar condicionado ligado, era torturante. Um homem novo levantou-se da cadeira para que um velho, suado e cansado de esperar em pé, se sentasse e fez sinal ao criado para pedir uma flute de champanhe. O ruído dos hóspedes do piso inferior continuava a arrogar as atenções dos convidados e a despertar-lhes os nervos: era possível distinguir música e algo orgânico escondido entre as notas; como larvas alimentando-se de uma carcaça. Encostado a uma parede, um dos homens escrevia uma mensagem no telemóvel; outro chocalhava suavemente o porta-chaves que tinha no bolso. Então, Joni entrou na suite. Mortellite não vinha com ela.
'Boa tarde’, disse. ‘Obrigado por terem vindo.' Caminhou até ao centro da sala e esclareceu: ‘A Madame Mortellite não se sente bem, mas realizará a sessão. Peço-vos que aguardem uns minutos.'
'Que se passa?', perguntou uma mulher, com sotaque americano. 'Adoeceu?' A anfitriã respondeu:
'Felizmente, não.' Joni sabia que Mortellite estava deitada no quarto, cheia de dores menstruais. 'Ela está a caminho.' Agradeceu a paciência do público e saiu.
Desceu as escadas e avançou pelo corredor bem iluminado até ao quarto de Mortellite onde a encontrou de pé junto à janela. Estava a vestir um blazer branco.
'Podes fazê-lo?'
'Claro', anunciou a outra. 'A dor ajuda.' Puxou as mangas da camisa e compôs o blazer. Entrou na casa de banho por uns momentos e saiu com o cabelo amarrado num rabo-de-cavalo. O seu perfume cheirava a madeira verde. Bateu palmas e fez sinal a Joni para que abrisse a porta.
'Comeste alguma coisa?', perguntou-lhe Joni, apontando para o cesto cheio de frutas que estava em cima da cama, ainda com o revestimento de celofane inviolado.
'Não’, respondeu Mortellite. ‘Não comi.’ Subiu as escadas atrás de Joni, em direcção à suite onde os convidados a esperavam; olhou para a superfície espelhada das fotos penduradas nas paredes em busca da sua própria imagem, mas o vidro era anti-reflector.
Quando entrou no aposento sentiu a antecipação da assistência e alguma raiva. Avançou até ao centro, abanando a luz das velas com o vento dado pela sua deslocação, e, sem dizer nada, fitou com os olhos bem abertos os pavios incandescentes. Uma cãibra beliscou-lhe o ventre e o mênstruo verteu-lhe para as cuecas: esquecera-se de usar um tampão. Antes do silêncio submergir a suite, ouviu um homem ser calado de modo brusco por uma mulher; o ruído que assolava do piso inferior desapareceu progressivamente, como música afastando-se dos tímpanos de um ouvinte para seduzir outro. Enquanto se concentrava, viu um homem nu, encostado à parede do fundo da sala. Tinha cabelo e barba brancos e parecia exausto. Não estranhou a presença dele.
Encostada à porta, atrás do público, Joni apagara as luzes e observava o espectáculo: os pormenores fantásticos nunca falhavam em capturar a imaginação. Tudo tinha início inesperadamente, como se o momento tivesse esperado uma parteira desde sempre. Sentia um amor impetuoso durante as sessões. Poderia o interior do seu corpo preencher-se de amor como o fumo de tabaco preenche uma suite? Se sim, talvez fosse melhor deitar fora as fotografias e substituí-las por radiografias.
Uma matéria branca apareceu de repente sobre as pessoas.
Assustadas, elas levantaram-se das cadeiras, mas Joni sossegou-as.
'Sentem-se, por favor', disse com um sorriso. 'Não lhe toquem...', e apontou para a substância que rolava no ar. Cheirava a baunilha. 'E não serão tocados.'
Alheia aos movimentos do público, Mortellite continuava a dormir de olhos abertos. Estendeu os braços, mostrando a mão direita enluvada de branco, e a bola de matéria flutuou na sua direcção. Desfez-se em fatias como um novelo de minhocas sobre as palmas e assumiu rapidamente outra forma. Mais manifestações de matéria principiaram a aparecer na sua órbita; e no momento em que terminou a metamorfose, solidificando-se numa morfologia artropodiana, elas também se ossificaram em silhuetas raras, boiando no ar quente da respiração dos convidados: a excitação contida nesse bouquet podia ser provada.»

Um excerto do meu novo livro de contos de horror, editado pela Saída de Emergência, que será apresentado em exclusivo no próximo Fórum Fantástico.
O livro intitula-se A Luz Miserável e será composto por três contos: A Sombra Sem Ninguém (do qual é retirado o excerto reproduzido acima), A Luz Miserável e Rei Assobio.
Fiquem atentos porque, em breve, darei mais novidades sobre este lançamento.

(Imagem: The Witch of Endor Raising the Spirit of Samuel. William Blake, 1800)