terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

No ossuário

Os ossos são lixo.
Há eras, quando a vida escumava no cadinho primordial, os pioneiros pluricelulares aprenderam a vestir-se com as suas excrementícias e foi a partir dessas armaduras acerbas que os ossos originaram.
Como uma dadaísta, a morte transforma esse lixo em arte com golpes impiedosos até abandonarmos a carne e adquirirmos formas homogéneas, às vezes emolduradas por caixões, mais adequadas à terra do que aos museus: não morremos - somos esculpidos.
Só ossos interessam, nessa imensa obra de arte. O nosso sangue, a nossa linguagem, as nossas memórias, isso é escória esvurmada; limalhas lascadas pela lâmina, tinta erodida.
A quem se destinam as ossadas?
Quem as observa, as critica, comove-se com elas?
Vermes e anjos?
Talvez o próprio universo, já que, segundo esse nome, tudo o que existe verte para uma unidade saprogénica. É sempre assim que as coisas acabam: alguém olha para o universo... e o universo, mais tarde ou mais cedo, também olha. Embebido pela luz que assinala a fronteira frágil entre o agora e o infinito.
Os ossos são lixo.
Cibórios de resíduos humanos que o solo se recusa a absorver para evitar adoecer. São armadilhas anónimas que sugam os nossos itinerários individuais - como a Cintura de Van Allen chupa a radiação proveniente da magnetosfera. Caras ocas: crateras vagadas pela esperança. Silêncios. Inteligências que fluíram: sem objectivo. Somos pó que preenche o atelier da morte; assentando tão lentamente quanto o reflexo de Atena se imprimiu na superfície espelhada do rio: «adeus, minha flauta!»
E, no entanto, inversamente à deusa, a morte não sente vergonha daquilo que cria.


Fotografia: Gisela Monteiro/Mort Safe.
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