No contexto desta notícia, sobre o desejo do patriarcado olissiponense de que a prática do exorcismo retorne ao quotidiano, vale a pena recordar, de modo sucinto, algumas considerações sobre aquele que, com efeito, terá sido o primeiro exorcista cristão: Jesus.
Segundo os evangelhos sinópticos, Cristo devotou uma parte significativa dos seus dias à prática do exorcismo, expulsando espíritos indignos e demonetes dos miseráveis que com ele se cruzavam; na verdade, tão frequentemente se devotou ao exorcismo que é legítimo dizer que seria esse o seu ganha-pão.
O étimo da nossa palavra exorcismo é a palavra grega exorkismós que apenas significa prestar juramento, mas nos evangelhos canónicos a palavra que aparece em referência à prática do esconjuro de demónios é a grega ekballein que significa repelir ou expulsar. Em S. João, por exemplo, quando Jesus diz «Tudo o que o Pai Me dá virá a Mim; e não repelirei aquele que vem a Mim» (6:37), no texto original correspondente pode ler-se «ekbaló exó». No mesmo evangelho (2:15) pode ler-se «Com umas cordas, fez um chicote e expulsou-os a todos do Templo» na passagem alusiva ao encontro com os vendilhões e também aqui é usado o verbo original ekballein.
A palavra exorkismós é tardia e revela a exclusividade da prática exorcística sistematizada por um agente eclesiástico autorizado (um clérigo exorcista que se apoia na sua fé pessoal e em textos oficiais - podem ser os textos exorcísticos do Rituale Romanum - que são por ele recitados na presença de um endemoninhado de maneira a expulsar o demónio escondido). No período narrado pelos evangelhos existiram diversos exorcistas itinerantes, de várias etnias, e em São Marcos (9:38-40) pode ler-se como os apóstolos encontraram um desses exorcistas errantes que dizia expulsar demónios em nome de Cristo: «Mestre, vimos alguém a expulsar demónios em Teu nome, sem que nos siga, e proibimos-lho». Cristo respondeu-lhes: «Não lho proibais, porque não há ninguém que faça um milagre em Meu nome e vá logo dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós». Este trecho é interessante, porque desvenda que 1) o exorcismo era uma prática comum e aceite e que 2) Cristo se considerava um irmão dos exorcistas itinerantes.
Convém esclarecer que, embora a crença demoníaca seja um elemento substancial do Novo Testamento, não há Diabo nenhum no Pentateuco, nem sequer no livro sapiencial Job. No Antigo Testamento é sempre Jeová, deus único, que faz tanto o Bem como o Mal, seja directamente ou por intermédio de um agente escolhido para o efeito (como em Job), mas o proverbial Diabo ou Satanás que a igreja popularizou não existe. Em síntese, a dicotomia cristã entre o Bem e o Mal, causados por entidades diferentes (Deus e Satanás), é uma contaminação do antigo zoroastrismo persa (século VI a.C.), religião que assenta num dualismo entre um deus bom (Aura Mazda) e um deus mau (Ariman). Estes deuses gladiar-se-ão numa batalha decisiva, na qual o Bem triunfará definitivamente sobre o Mal; crença sobre a qual se fundou o último livro do Novo Testamento, o Apocalipse (século I). Também é persa a posterior doutrina gnóstica do maniqueísmo, criada pelo profeta Mani (século III), que postula que a ulterior vitória do Bem na batalha apocalíptica no Monte Megido (Armagedão) não está garantida.
Em paralelo, os evangelhos informam-nos que Jesus operava como curandeiro. Em São Marcos (7:32-35) é descrito como Cristo curou um surdo-gago enfiando-lhe os dedos nos ouvidos e cuspindo-lhe para a boca e como curou um cego cuspindo-lhe para os olhos (8:23-26). Trata-se de um método primitivo que, de um ponto de vista histórico, se inscreve na mentalidade da época: o historiador romano Cornélio Tácito descreveu nas suas Histórias (século I) como o imperador romano Vespasiano era capaz de curar a cegueira com o seu próprio cuspo e, também, outras doenças apenas com o poder curativo do seu toque.
A crença na força salvífica do toque de um soberano continuou a ser instrumentalizada ao longo da Idade Média como sendo um sinal de divino ministerio: ou seja, de que os reis eram indigitados por Deus para governarem e, como tal, partilhavam, até certo ponto, dos seus poderes. No que concerne à religião judaica, acreditava-se que os verdadeiros rabis possuíam poderes mágicos que lhes eram oferecidos por Deus para que, desse modo, pudessem fazer magia e partilhar da Sua glória. Sublinhe-se que nos versículos supracitados de São Marcos não existe nenhuma alusão, seja directa ou indirecta, a Deus ou à fé dos doentes: Cristo cura somente com a propriedade mágica do seu cuspo. É um acto de cura o mais elementar possível e perfeitamente consonante com o universo das mezinhas caseiras.
Na minha opinião, o mais insólito exorcismo de Cristo não é o célebre escorraçar dos espíritos impuros do corpo de um desgraçado para uma vara de porcos (São Mateus 8:28-32; São Marcos 5:1-13; São Lucas 8:27-33 - não há menção desta história em São João, porque este evangelho caracteriza-se por não referir nenhuns exorcismos, embora, como vimos, use o verbo ekballein em outras circunstâncias), mas a expulsão de um demónio do corpo de um paralítico na cidade de Cafarnaum, ao Norte do Mar da Galileia (São Marcos 2:1-12). A paralisia, como a mudez, a surdez, a cegueira, a lepra e a esquizofrenia, era considerada um sinal típico de possessão diabólica.
Nesse curioso episódio, Cristo pede que o endemoninhado seja transportado num catre para dentro da casa onde residia na altura (a de Pedro, presume-se pelo texto antecedente), através de um buraco feito no telhado; naquele tempo, os telhados das tradicionais casas israelitas eram terraços feitos de madeira unida com canas e cobertos de barro misturado com palha. Quatro homens desceram o catre com o paralítico pelo buraco aberto no telhado e Jesus disse-lhe «Meu filho, os teus pecados te são perdoados»; em seguida, ordenou-lhe que voltasse à sua casa: curado, o homem obedeceu e saiu pelo seu pé. Esta descrição faz lembrar um primitivo ritual de exorcismo, no qual os populares tentam ludibriar o demónio da seguinte maneira: descem o possesso para dentro de casa por um buraco no telhado, como neste trecho de São Marcos, ou transportam-no através de uma janela, o que tem o efeito de fazer crer ao demónio que apenas é possível entrar na habitação por essa via. Logo que o exorcista expulsa o demónio, este sai por onde entrou e de imediato é vedado o buraco ou a janela, ficando a casa livre de futuras intromissões dessa entidade sobrenatural.
Em diversos países europeus, as casas medievais ainda eram construídas com portinholas ou postigos para que o Diabo saísse, em herança desse ritual de exorcismo; essas passagens deram origem, mais tarde, às portas exclusivas pelas quais se retiravam os mortos de dentro das casas. O livro Faust: Eine Tragödie, de Johann Wolfgang von Goethe (1808), ainda alude a este conhecimento popular de demonologia nas seguintes palavras de Mefistófeles a Fausto: «Diabos e espíritos obedecem a uma lei, como deves saber: devem usar o mesmo caminho para entrar e para sair. Entramos por onde queremos, mas não podemos escolher a saída» (verso 1410, página 44; Oxford University Press, 1998).
(Imagem: Mosaico bizantino do século VI na basílica italiana de Santo Apolinário, o Novo, em Ravena.)
Segundo os evangelhos sinópticos, Cristo devotou uma parte significativa dos seus dias à prática do exorcismo, expulsando espíritos indignos e demonetes dos miseráveis que com ele se cruzavam; na verdade, tão frequentemente se devotou ao exorcismo que é legítimo dizer que seria esse o seu ganha-pão.
O étimo da nossa palavra exorcismo é a palavra grega exorkismós que apenas significa prestar juramento, mas nos evangelhos canónicos a palavra que aparece em referência à prática do esconjuro de demónios é a grega ekballein que significa repelir ou expulsar. Em S. João, por exemplo, quando Jesus diz «Tudo o que o Pai Me dá virá a Mim; e não repelirei aquele que vem a Mim» (6:37), no texto original correspondente pode ler-se «ekbaló exó». No mesmo evangelho (2:15) pode ler-se «Com umas cordas, fez um chicote e expulsou-os a todos do Templo» na passagem alusiva ao encontro com os vendilhões e também aqui é usado o verbo original ekballein.
A palavra exorkismós é tardia e revela a exclusividade da prática exorcística sistematizada por um agente eclesiástico autorizado (um clérigo exorcista que se apoia na sua fé pessoal e em textos oficiais - podem ser os textos exorcísticos do Rituale Romanum - que são por ele recitados na presença de um endemoninhado de maneira a expulsar o demónio escondido). No período narrado pelos evangelhos existiram diversos exorcistas itinerantes, de várias etnias, e em São Marcos (9:38-40) pode ler-se como os apóstolos encontraram um desses exorcistas errantes que dizia expulsar demónios em nome de Cristo: «Mestre, vimos alguém a expulsar demónios em Teu nome, sem que nos siga, e proibimos-lho». Cristo respondeu-lhes: «Não lho proibais, porque não há ninguém que faça um milagre em Meu nome e vá logo dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós». Este trecho é interessante, porque desvenda que 1) o exorcismo era uma prática comum e aceite e que 2) Cristo se considerava um irmão dos exorcistas itinerantes.
Convém esclarecer que, embora a crença demoníaca seja um elemento substancial do Novo Testamento, não há Diabo nenhum no Pentateuco, nem sequer no livro sapiencial Job. No Antigo Testamento é sempre Jeová, deus único, que faz tanto o Bem como o Mal, seja directamente ou por intermédio de um agente escolhido para o efeito (como em Job), mas o proverbial Diabo ou Satanás que a igreja popularizou não existe. Em síntese, a dicotomia cristã entre o Bem e o Mal, causados por entidades diferentes (Deus e Satanás), é uma contaminação do antigo zoroastrismo persa (século VI a.C.), religião que assenta num dualismo entre um deus bom (Aura Mazda) e um deus mau (Ariman). Estes deuses gladiar-se-ão numa batalha decisiva, na qual o Bem triunfará definitivamente sobre o Mal; crença sobre a qual se fundou o último livro do Novo Testamento, o Apocalipse (século I). Também é persa a posterior doutrina gnóstica do maniqueísmo, criada pelo profeta Mani (século III), que postula que a ulterior vitória do Bem na batalha apocalíptica no Monte Megido (Armagedão) não está garantida.
Em paralelo, os evangelhos informam-nos que Jesus operava como curandeiro. Em São Marcos (7:32-35) é descrito como Cristo curou um surdo-gago enfiando-lhe os dedos nos ouvidos e cuspindo-lhe para a boca e como curou um cego cuspindo-lhe para os olhos (8:23-26). Trata-se de um método primitivo que, de um ponto de vista histórico, se inscreve na mentalidade da época: o historiador romano Cornélio Tácito descreveu nas suas Histórias (século I) como o imperador romano Vespasiano era capaz de curar a cegueira com o seu próprio cuspo e, também, outras doenças apenas com o poder curativo do seu toque.
A crença na força salvífica do toque de um soberano continuou a ser instrumentalizada ao longo da Idade Média como sendo um sinal de divino ministerio: ou seja, de que os reis eram indigitados por Deus para governarem e, como tal, partilhavam, até certo ponto, dos seus poderes. No que concerne à religião judaica, acreditava-se que os verdadeiros rabis possuíam poderes mágicos que lhes eram oferecidos por Deus para que, desse modo, pudessem fazer magia e partilhar da Sua glória. Sublinhe-se que nos versículos supracitados de São Marcos não existe nenhuma alusão, seja directa ou indirecta, a Deus ou à fé dos doentes: Cristo cura somente com a propriedade mágica do seu cuspo. É um acto de cura o mais elementar possível e perfeitamente consonante com o universo das mezinhas caseiras.
Na minha opinião, o mais insólito exorcismo de Cristo não é o célebre escorraçar dos espíritos impuros do corpo de um desgraçado para uma vara de porcos (São Mateus 8:28-32; São Marcos 5:1-13; São Lucas 8:27-33 - não há menção desta história em São João, porque este evangelho caracteriza-se por não referir nenhuns exorcismos, embora, como vimos, use o verbo ekballein em outras circunstâncias), mas a expulsão de um demónio do corpo de um paralítico na cidade de Cafarnaum, ao Norte do Mar da Galileia (São Marcos 2:1-12). A paralisia, como a mudez, a surdez, a cegueira, a lepra e a esquizofrenia, era considerada um sinal típico de possessão diabólica.
Nesse curioso episódio, Cristo pede que o endemoninhado seja transportado num catre para dentro da casa onde residia na altura (a de Pedro, presume-se pelo texto antecedente), através de um buraco feito no telhado; naquele tempo, os telhados das tradicionais casas israelitas eram terraços feitos de madeira unida com canas e cobertos de barro misturado com palha. Quatro homens desceram o catre com o paralítico pelo buraco aberto no telhado e Jesus disse-lhe «Meu filho, os teus pecados te são perdoados»; em seguida, ordenou-lhe que voltasse à sua casa: curado, o homem obedeceu e saiu pelo seu pé. Esta descrição faz lembrar um primitivo ritual de exorcismo, no qual os populares tentam ludibriar o demónio da seguinte maneira: descem o possesso para dentro de casa por um buraco no telhado, como neste trecho de São Marcos, ou transportam-no através de uma janela, o que tem o efeito de fazer crer ao demónio que apenas é possível entrar na habitação por essa via. Logo que o exorcista expulsa o demónio, este sai por onde entrou e de imediato é vedado o buraco ou a janela, ficando a casa livre de futuras intromissões dessa entidade sobrenatural.
Em diversos países europeus, as casas medievais ainda eram construídas com portinholas ou postigos para que o Diabo saísse, em herança desse ritual de exorcismo; essas passagens deram origem, mais tarde, às portas exclusivas pelas quais se retiravam os mortos de dentro das casas. O livro Faust: Eine Tragödie, de Johann Wolfgang von Goethe (1808), ainda alude a este conhecimento popular de demonologia nas seguintes palavras de Mefistófeles a Fausto: «Diabos e espíritos obedecem a uma lei, como deves saber: devem usar o mesmo caminho para entrar e para sair. Entramos por onde queremos, mas não podemos escolher a saída» (verso 1410, página 44; Oxford University Press, 1998).
(Imagem: Mosaico bizantino do século VI na basílica italiana de Santo Apolinário, o Novo, em Ravena.)