terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Observação histórica sobre a lenda hirâmica

Existem diversas versões dos rituais correspondentes aos três graus simbólicos da Franco-Maçonaria, consoante as diferentes obediências maçónicas, mas todas têm elementos comuns, de acordo com as narrativas alegóricas neles representadas. Assim, os três graus simbólicos do Ofício são os de Aprendiz, Companheiro e Mestre: neste, o iniciado interpreta o Mestre Hiram Abiff, lendário mestre-de-obras do bíblico Templo do Rei Salomão no Monte Mória e uma das personagens mais importantes da simbologia maçónica.

Segundo a mitologia do terceiro grau simbólico, Hiram Abiff foi um dos três poderes envolvidos na construção do Templo, em conjunto com o Rei Hiram de Tiro e o próprio Salomão. Os três conheciam o segredo da Palavra de Mestre: senha que protegia todos os segredos do Ofício e que apenas poderia ser proferida quando os três homens estivessem juntos, pois cada um somente conhecia uma sílaba. Os desfechos de todas as versões do mito hirâmico são unânimes em narrar como o Mestre Arquitecto foi abordado à traição ao meio-dia, vindo do ainda incompleto Sanctum Sanctorum do Templo, por três obreiros que quiseram roubar-lhe à força os segredos do Ofício: esses Três Rufiões, como são designados colectivamente, atendem por nomes diferentes em versões distintas, mas, na generalidade, os nomes mais frequentes são os de Jubela, Jubelo e Jubelum; este, o mais forte, foi o carrasco de Hiram Abiff, golpeando-o de surpresa na fronte com um golpe de malhete. Em seguida, os Três Rufiões esconderam o corpo; regressaram ao Templo à meia-noite e inumaram o Mestre numa cova pouco profunda que escavaram a Oeste da construção, no próprio Monte Mória, deixando um ramo de acácia na terra como sinal identificativo da sepultura. No dia seguinte, Salomão deu por falta de Hiram Abiff e mandou procurá-lo; passada uma quinzena, os seus homens encontraram os Três Rufiões e estes levaram Salomão e Hiram, Rei de Tiro, à sepultura do arquitecto: então, os dois reis ergueram da terra o falecido e sepultaram-no com dignidade no Sanctum Sanctorum do Templo. (Esta expressão latina, que significa O Santo dos Santos consistia na câmara mais recôndita do Templo e é um nome associado às santidades do sacerdócio e do próprio Sumo-Sacerdote: o único indivíduo autorizado a entrar nesse aposento - e apenas uma vez por ano.)

A alegoria hirâmica faz-se, também, de elementos retirados de alguns livros do Antigo Testamento. No Segundo Livro de Samuel, é descrito como Hiram, Rei de Tiro, enviou materiais de construção ao Rei David, para a construção inaugural do Templo: «Hiram, Rei de Tiro, enviou-lhe mensageiros, com madeira de cedro, carpinteiros e pedreiros, para lhe construir um palácio. Então, David reconheceu que o Senhor o confirmava Rei de Israel e exaltava a sua realeza por causa do seu povo» (5:11-12). Esta personagem não é Hiram Abiff, mas é comum encontrar fontes que confundem ambas as figuras. À frente, no Primeiro Livro dos Reis encontra-se a primeira referência a um Hiram artificie, embora seja dito que se trata de um escultor de bronze e não um arquitecto: «Depois disto [da construção do Templo - neste livro, Hiram só é chamado depois da edificação], o Rei Salomão mandou vir de Tiro um homem chamado Hiram, que trabalhava em bronze, filho de uma viúva da tribo de Neftali, cujo pai era de Tiro» (7:13-14). Nos versículos seguintes (7:15-22) é descrito como Hiram, o escultor de bronze, levantou duas colunas, com dezoito côvados de altura (mais ou menos oito metros e dez centímetros), no pórtico do Templo: chamou Boaz (força) à da esquerda e Jaquin (estabilidade) à da direita. Consequentemente, na versão da construção do Templo narrada no Segundo Livro das Crónicas, Salomão pediu a Hiram, Rei de Tiro, materiais de construção e um artífice experiente no trabalho dos metais preciosos, do ferro e do bronze (2:7); em resposta, o soberano de Tiro enviou-lhe um artificie chamado Huran-Abi, filho de uma mulher da tribo de Dan e de um pai tírio (2:12-13). Porém, não existe nenhuma descrição da morte de Hiram Abiff nestes textos, por isso, pese a base bíblica, a parte mais significativa da lenda hirâmica provém de outras fontes.

Os documentos mais antigos que preservam prováveis registos daquilo que se pensa ser oficinas britânicas de maçons operativos medievais são conhecidos em conjunto pela designação Old Charges (Velhos Regulamentos): o mais provecto é o chamado Manuscrito Halliwell (ou Poema Regius) que data de 1390, mas o segundo mais antigo, datado de 1425 e apelidado de Manuscrito Mathew Cooke (que, na verdade, poderá ser uma cópia de um manuscrito datado de meados do século XIV - logo um texto mais antigo que o Poema Regius), menciona a história bíblica da construção do Templo, dizendo que o filho do Rei de Tiro foi o mestre-de-obras de Salomão, mas não lhe oferece um nome, nem menciona a sua morte às mãos de obreiros traiçoeiros.

De maneira geral, aceita-se que a referência maçónica mais antiga à busca (que pode chamar-se de "hirâmica", porque se assemelha à exumação do corpo de Hiram por Salomão e pelo Rei de Tiro) da sepultura de um mestre encontra-se no chamado Manuscrito de Graham, escrito em 1726: neste texto, os três filhos de Noé pretendem recuperar a sabedoria antiga comunicando com o cadáver exumado do pai. Este relato apareceu três anos depois da publicação da primeira edição das Constituições de Anderson (escritas pelo clérigo escocês James Anderson), que não mencionam a lenda hirâmica. Com efeito, a história de Hiram Abiff, tal como é contada no ritual do terceiro grau simbólico, foi publicada pela primeira vez em 1730 numa exposição escrita por Samuel Pritchard intitulada Freemasonry's Dissected (A Franco-Maçonaria Dissecada). Contudo, também em 1726, o ano em que o Manuscrito de Graham apresentou a história da exumação de Noé pelos filhos, foi publicado um texto intitulado The Whole History of the Widow's Son Killed by the Blow of a Beetle (A História Completa do Filho da Viúva, Morto com um Golpe de Malhete), o que prova que a lenda hirâmica já era conhecida - e encontrava-se mais ou menos sistematizada - antes da data de publicação da exposição de Prichard. (A designação hirâmica de filho da viúva é retirada do Primeiro Livro dos Reis.)

Em diversas mitologias se encontra o tema da morte e da ressurreição de um corpo destruído ou escondido, como no mito egípcio de Osíris ou no relato cristão da Paixão de Cristo, e o mito hirâmico, desenvolvido no século XVIII, prossegue essa linhagem. Todavia entre todas as histórias sobre "mestres falecidos e ressuscitados" existe uma que, de facto, se relaciona, não com deuses e heróis, mas com um pedreiro operativo medieval: a canção-de-gesta francesa Les Quatres Fils Aymon (Os Quatro Filhos de Aymon), cuja versão primitiva, transmitida oralmente, data, provavelmente, do início do século XII.


Nessa narrativa, os cavaleiros Renaud, Alard, Richard e Guichard, filhos do conde Aymon da Dordonha, envolvem-se em diversas aventuras características da época, nas quais não faltam um poderoso adversário (o rei dos francos Carlos Magno), um feiticeiro (o mago Maugis) e um cavalo prodigioso chamado Bayard que tem o poder de esticar-se ou encolher-se, consoante o número de cavaleiros que o montam: na minha opinião, as representações de Bayard com os quatro irmãos no dorso evocam claramente o selo da Milícia dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo de Jerusalém (os Templários, constituídos oficialmente em 1128) que mostra um cavalo partilhado por dois cavaleiros (selo apenas criado em 1191).


O cavalo Bayard pertence a Renaud que, na conclusão da história (cada vez mais negra), parte em peregrinação solitária para Jerusalém; ao regressar, descobre que a sua mulher morreu (em algumas versões, Bayard também foi afogado num rio por Carlos Magno, com uma mó amarrada ao pescoço). Então, asila-se na cidade de Colónia, na qual arranja trabalho como pedreiro nas obras de construção da Catedral de São Pedro e Maria.
O nobre Renaud não demora a sobressair pela excelência do seu trabalho e isso provoca inveja a alguns pedreiros: à traição, matam-no com um golpe de malhete na testa, enquanto dorme, e, em seguida, atiram-no ao Rio Reno. Finalmente, alguns dias depois, o corpo é recuperado e Renaud é canonizado.

Poderá esta narrativa cavaleiresca sobre um guerreiro tornado mestre-pedreiro e santo ter contribuído, em menor ou maior grau, para a criação do mito hirâmico?


(Imagens: Reprodução do selo templário de 1191; iluminura do século XV, representando Bayard e os quatro filhos de Aymon.)