Qualquer obra artística que se inscreva num determinado género considerado
a priori menor, ou de nicho, é, em maior ou menor grau, problemática de ser avaliada com clareza por todos aqueles que ainda não foram "iniciados" nesse território, simplesmente porque, na maioria das vezes, lhes faltam conhecimentos, relacionados com o modelo em questão, que lhes permitam colocar o objecto de análise em perspectiva.
Quando essa obra é literária convém que o exegeta possua bons conhecimentos do cânone na qual o autor a quer arrolar, de modo a que o exame paute pela clareza de raciocínio e, já agora, pela justiça. É, com efeito, injusto que uma avaliação crítica (um tipo de apreciação que, mesmo quando não é especializado, possui um peso que influencia quem lê) vilipendie ou glorifique uma obra, baseando-se em informações esquemáticas ou até incorrectas sobre aquilo que se acha ser o estilo e a estética na qual ela aparentemente se implanta.
Esta é uma das razões pela qual a designação "Série B" é hoje mal utilizada na maioria dos média para caracterizar quaisquer filmes que se assumam como de género ou satíricos ou mal-comportados, quando, na verdade, Série B é uma denominação relacional a fitas de baixo oraçamento. O que significa que um filme de terror de grande orçamento não é nenhum filme de Série B, assim como um drama de costumes produzido por tuta e meia não é nenhum filme de "Série A". Em suma: apesar do preconceito voltado contra os ditos géneros menores (o Horror, a Ficção Científica, a Fantasia, o Policial), não é a catalogação de uma obra numa certa classe que a atira para o lado errado da criação artística. A qualidade de uma obra não tem nada a ver com o tom dominante que ela apresenta e que, por convenção, se encontra definido pelos géneros reconhecíveis.
Nessa óptica, é essencial que o discurso crítico seja redigido com mais sofisticação, mas esperar que isso aconteça, nestes tempos em que os textos jornalísticos encolhem até ao tamanho de simples sinopses, é, talvez, ingrato. No entanto, independentemente do tamanho das críticas (e dos conhecimentos que os críticos tenham ou não tenham), convém que as palavras e as designações sejam usadas com conhecimento de causa e prudência, não se vá enganar os potenciais leitores da resenha e levá-los a olhar de lado algo que é bom ou a aceitarem de braços abertos algo que é mau. É que a crítica especializada, além dos critérios distintivo e informativo, também deve conter um aspecto de esclarecimento, de contextualização da obra analisada, senão para que é que serve, afinal de contas? Se serve, apenas, para dizer bem ou mal, que se gostou ou que se não gostou, então a crítica de rigor - literária ou outra qualquer - não serve para nada, porque esse exercício dualista (e simplista) de triagem já é feito pelos próprios receptores, que seleccionam aquilo que lhes interessa com base em questões subjectivas de gosto pessoal.
É, pois, com prudência (no sentido de justiça para com a obra, ou seja criticá-la como merece) e conhecimento de causa que avanço na crítica do livro
Memórias de Um Vampiro, de
Rafael Loureiro (Editorial Presença, 2009), que, como o título indica, se trata de uma obra que, à partida, desperta nos leitores um leque de conceitos e referências familiares, satélites da literatura de Horror, neste caso as diversas histórias sobre vampiros.
(Essa reserva também se corresponde com o facto de que não sou crítico, mas autor de literatura fantástica, e posso correr o risco de meter a foice em seara alheia ao adoptar o discurso crítico. Mas, por outro lado, o meu trabalho enquanto escritor também envereda diversas vezes pelo registo do ensaio, no qual o discurso crítico é um instrumento imprescíndivel; sendo assim, acho que não me fica mal tecer estas considerações que a leitura de
Memórias de Um Vampiro me trouxe ao espírito e qualquer leitor compreenderá que o meu julgamento se dirige à obra e não ao autor - repudiando com veemência, aqui e agora, todos os fantasmas de agressões declaradas
ad hominem que o texto poderá invocar.)
A primeira impressão que tive ao ver um exemplar deste título numa livraria de Lisboa foi a de que se tratava de uma co-publicação da Editorial Presença com a rádio Antena 3, ideia fortalecida pelo destaque, de tamanho e localização, que o autocolante de fundo negro com o logotipo dessa estação ocupa na capa de
Memórias de Um Vampiro: colado acima do logotipo da editora, quase que consegue ser maior que este; não fosse a inclusão da frase "Com o apoio", escrita com letras miudinhas, e ficaria convencido da ideia inicial da co-publicação. Na minha opinião é uma escolha de
marketing um bocado foleira, mas entendo que ela se relaciona com o facto de consistir numa excelente maneira de chamar a atenção dos leitores jovens, familiarizados com a referida rádio, numa associação que lhes desperta uma série de emoções positivas (felizes, até) e os leva a aceitar com facilidade um livro escrito por um autor ainda desconhecido. É bem-feito? É mal-feito? A pergunta é de retórica, porque do ponto de vista da psicologia do consumidor deve funcionar tão bem quanto a proverbial flauta de Hamelin. É a mercadologia em marcha: toda a gente sabe que é uma maneira de proceder que se tem tornado cada vez mais agressiva no mercado livreiro e, felizmente, ainda não se chegou ao ponto da intrusão de anúnicos dentro dos próprios livros, à maneira das revistas e dos
comics norte-americanos. Mas não desesperem, porque os
ebooks que aí vêm já os irão ter, provavelmente.
O título do livro não engana. São memórias escritas pela personagem principal, o vampiro
Daimon DelMoona. Este protagonista começa por ser humano e é transformado em vampiro por uma senhora encantadora chamada
La Luna. Não se tratam dos nomes de baptismo destas personagens, porque no universo ficcional imaginado por Rafael Loureiro os vampiros respondem pelo nome da alma deles, um nome que sempre tiveram, desde sempre:
«A pessoa que éreis morreu hoje e jamais será lembrada. A partir desta noite sereis chamado: Daimon DelMoona. Este é o nome da vossa alma. O nome que a vossa alma usa há já muitas eras. E assim continuará a ser (...)
» (pg. 34). Eu assumo que Loureiro não nos queira convencer que estes nomes são, mesmo, aqueles que as almas dos vampiros acabados de fazer têm desde os tempos imemoriais. Tratar-se-á de uma liberdade poética que expressa que cada novo vampiro escolhe (sem grande reflexão, ao que parece) um nome que tenha a ver com as suas qualidades intrínsecas. O que se passa é que tanto por um lado como pelo outro o artifício não funciona. A acreditar na literalidade da explicação que La Luna oferece a DelMoona, então os idiomas humanos, neste caso o
spanglish (Del Moona?...) já andava a vogar pelo cosmos ainda antes do magma arrefecer à superfície da crosta terrestre, esperando paciente que os mexicanos e os vampiros evoluíssem para lhes cair em cima. Se é, de facto, um efeito poético, qual é a razão pela qual os vampiros, independentemente das diversas nacionalidades que possam ter, escolhem todos nomes colados à língua inglesa? Há um Daimon DelMoona e uma La Luna, mas também um
Janus Moonhunter, uma
Lília Whitemoon, uma
Pandora Darkmoon, um
Philippe Moonshadow, um
Ascelli Nightstar. São escolhas autorais imaturas. Não funcionam enquanto referências à importância que a Lua tem no fenómeno do vampirismo, no universo ficcional de Nocturnus (o nome pela qual é conhecida a sociedade composta pelos vampiros dos diversos clãs que descendem dos diferentes vampiros criados pelo anjo Tiriel, o pai de todas as espécies de sugadores de sangue), nem como verdadeiros nomes de guerra das personagens.
Mas se a antroponímia não é o forte de Loureiro, o resultado é muito mais sofrível quando ele se aventura na geografia e na cronologia.
No mundo de Nocturnus, os vampiros foram criados pelo anjo Tiriel que, à semelhança de Lúcifer, foi expulso do Paraíso por Deus.
«O Criador, ouvindo nos murmúrios dos anjos que os seus corações se começavam de novo a dividir, cortou as asas brancas a Tiriel e enviou-o para a Terra (...)
Conta-se que o Anjo acordou numa praia, sozinho, em terras da Ásia» (pg. 15).
Considere-se esta transcrição com a leitura deste excerto decalcado de uma crítica feita a
Memórias de Um Vampiro (assinada por Joana Cardoso) no
weblog Bela Lugosi is Dead:
«Apesar de ser mais uma história de vampiros, não me senti aborrecida nem a achei semelhante a qualquer outra que tenha lido.»Infelizmente, já não posso dizer o mesmo, porque acho que a premissa de Loureiro é muitíssimo semelhante à mitologia que se pode ler em
The Book of Nod, de
Sam Chupp e
Andrew Greenberg (White Wolf Publishing Inc. 1997), obra na qual é Caim que, depois de ser banido por Deus para a Terra de Nod, dá origem a diversos clãs de raças diferentes de vampiros:
«And He exiled me to wander in Darkness, the land of Nod. I flew into the Darkness, I saw no source of light and I was afraid and alone» (pg. 25). Mas as semelhanças do livro de Loureiro com a mitologia de
The Book of Nod não se resumem à concepção do universo vampírico.
Em
The Book of Nod existe uma sociedade de vampiros moderados, formada por sete clãs, que responde colectivamente pelo nome
"The Camarilla" e
"The Masquerade" é a designação que dão à política de se imiscuir subtilmente entre os humanos, ocultando-se deles:
«Masquerade: the effort to hide Kindred from the world of mortals» (pg. 134), sendo que "Kindred" são os próprios vampiros. Agora comparem com esta transcrição de
Memórias de Um Vampiro: «
La Luna falou-me sobre Nocturnus, que é o nome dado à sociedade vampírica. Os vampiros existem desde os esgotos até à alta sociedade, caminhando em silêncio através dos séculos desde o Anjo Tiriel que, banido do céu, foi condenado a deambular imortalmente pela Terra por ciúme da humanidade...» (pg. 40).
Basta consultar o léxico de
The Book of Nod para perceber, de imediato, que o índice lexical de
Memórias de Um Vampiro é uma tradução quase literal: onde no primeiro há um
"The Beast" (
«The hateful drive that push a vampire to become a monster. The push to Frenzy») no segundo encontra-se um
"Ser Impuro" (
«Estado em que o Vampiro não controla o seu instinto e o seu lado bestial o comanda»); onde no primeiro há um
"Sire" (
«Parent or creator of a vampire. Used for both men and women») no segundo pode encontrar-se um
"Senhor/Senhora" (
«Vampiro que cria outro Vampiro»); onde no primeiro há um
"Prince" (
«The Vampiric ruler of a city») no segundo existe um
"Regente" (
«Vampiro que rege Nocturnus numa Terra»); onde no primeiro há um
"Embrace" (
«The bite. The process of making a human into a vampire») no segundo encontra-se um
"Novo Nascimento" (
«Transformação de humano em Vampiro»). E a lista de semelhanças continua por ordem alfabética...
É legítimo perguntar porque é que a autora da crítica supracitada não achou
Memórias de Um Vampiro semelhante a qualquer outra história de vampiros que tivesse lido. A resposta é que não leu
The Book of Nod, nem nunca ouviu falar no jogo de
RolePlay Vampire: The Masquerade, que está na origem de
The Book of Nod: compêndio que reune os elementos dispersos desse jogo na forma de uma mitologia coerente - um cânone, portanto.
A analogia entre as concepções de
Memórias de Um Vampiro e
The Book of Nod é tão grande que mais parece que o livro de Loureiro é uma peça de
fan fiction.
Vale a pena recordar aquilo que escrevi no início sobre os críticos com falta de conhecimentos:
Memórias de Um Vampiro até pode surgir como inovador e surpreendente aos olhos de quem não está familiarizado com o género Fantástico, e com a ficção que tem sido escrita nas últimas décadas sobre vampiros, mas não passa na inspecção de um leitor especializado que já leu mundos e fundos, muito antes das editoras, dos candidatos a autores e dos média terem "descoberto" agora o fenómeno da literatura sobre vampiros. Só quem nunca leu nada sobre eles é que será capaz de achar originalidade e inovação em
Memórias de Um Vampiro.
Acima mencionei as tíbias tentativas de Loureiro em se aventurar nos campos pantanosos da geografia e da cronologia.
Já se percebeu que
Memórias de Um Vampiro narra a vida de Daimon DelMoona (numa colagem descarada ao universo vampírico de
Vampire: The Masquerade), mas onde e em que época?
Também já vimos que Tiriel caiu
«nas Terras da Ásia» quando foi expulso. Com efeito, causa alguma estupefacção vermos que naquela altura (no princípio dos tempos?) já existia o continente asiático e que, ainda por cima, ele era conhecido por esse nome. Mas as coisas complicam-se porque
«A nossa história perde-se aqui durante várias décadas. Deduz-se que Tiriel tivesse caído de novo no seu sofrimento e partido para outras terras, a actual Europa» (pg. 17). Depois desta viagem,
«Tiriel partiu de novo para terras distantes para de novo se isolar. Partiu para o seio da actual África» (pg. 18). Mas afinal Tiriel também viaja no tempo?! Transita da Ásia (primordial) para as actuais Europa e África? Só pode ser isso, porque, em seguida,
«ao vaguear por uma necrópole da Grécia antiga, deparou com um homem adormecido» (pg. 18). Como bom viajante no tempo, Tiriel
«de novo partiu para a sua terra natal, no Norte de África, actual Egipto» (pg. 19).
Mas Daimon DelMoona, em cujas veias corre a herança de Tiriel, também faz umas digressões temporais inesperadas:
«Continuei a minha jornada como um fugitivo e parei apenas em 1792, depois de uma viagem de barco, num país a Oriente que é o actual Japão» (pg. 74). Ou seja, de acordo com Loureiro, o Japão não existia no ano de 1792. Porquê? Porque ele não escreveu "Japão actual" (o que tornaria a viagem no tempo ainda mais extraordinária, diga-se), mas sim que a personagem chegou a um país que é o "actual Japão". Então, se esse país não era o Japão, ou não se chamava assim, como é que se chamava? Diz Loureiro na página 76 que
«O Japão já não é o que era». É a resposta possível.
Contudo, o salto no tempo mais incrível que se pode encontrar em
Memórias de Um Vampiro é este que vou descrever em seguida.
Diz a personagem principal que
«Decorria o ano de 1680» (pg. 23). Este é o início das memórias e Daimon DelMoona ainda é humano... Prossegue-se na leitura e na página 56 pode ler-se isto
«Vinte anos se passaram (...)
Estávamos a virar para o século XVII».
O quê?!... Então?... Então voltaram todos no tempo, para o início do século? Não... É que mais à frente, na página 73, pode ler-se que estamos no
«Ano de 1700. Deveria ter quarenta anos e aparentava ainda vinte e dois.»Se bem compreendi, a história de DelMoona começa no século XVII (1680). Depois há uma inversão temporal total e todas as personagens regressam ao início desse século (
«Estávamos a virar para o século XVII»). Em seguida, saltam cem anos directamente para o século XVIII (1700). E mais: as viagens no tempo têm um efeito anti-oxidante porque DelMoona, que deveria ter quarenta anos de idade (em cada perna, a acreditar na contagem dos anos que avançou), apenas aparentava ter vinte e dois.
Como é que isto se explica?
Explica-se desta forma:
Loureiro não sabe que a data de 1680 corresponde ao século XVII.Pensa que por ela começar com um "16" se refere ao século XVI e é por isso que diz na página 56 que se estava a «virar para o século XVII». Depois acha que 1700 é que é o século XVII quando é o XVIII. Alguém que lhe diga, por favor, que já estamos no século XXI, porque ele é bem capaz de achar que ainda estamos no XX, porque a data de 2009 começa com um "20".
O mais estupendo disto tudo é que
ninguém que leu o livro deu por isto!...Se tivessem dado, já o tinha lido na crítica citada (e em outras disponíveis na
internet) ou o próprio autor já o teria corrigido no seu texto. Ou seja,
ninguém percebeu que 1680 não é uma data do século XVI. O que leva a formular a seguinte pergunta: será que alguém leu, de facto, o livro?É porque 1) se não leram e dizem que sim estão a mentir e 2) se leram e não perceberam este erro monumental é porque são burros. Desculpem lá, mas isto não é culpa de distração, porque a própria narrativa deveria fazer com que os leitores achassem que algo de errado se estava a passar com a cronologia:
não perceber que seria impossível virar para o século XVII quando a narrativa tem início em 1680 é ser-se burro com todas as letras que a palavra tem.Ainda bem que Loureiro é professor de Educação Física: eu não queria que ele ensinasse geografia e história aos meus filhos.
Depois disto, nem sequer precisava de continuar a minha análise a
Memórias de Um Vampiro porque neste ponto desvaneceu-se qualquer ínfima porção de credibilidade que ainda restasse ao livro.
Mas há mais...
Uma capacidade admirável que os vampiros de
Memórias de Um Vampiro têm é a de conseguirem sorrir e olhar de muitas maneiras: há sorrisos
cúmplices,
saudosos,
orgulhosos,
escondidos,
tristes,
forçados,
sarcásticos,
devolvidos; há olhares
obedientes,
pregados,
sorridentes,
catapultados,
beijoqueiros... Enfim, há muitos sorrisos e olhares
à la carte, cada qual o mais requintado. Também há algumas imagens muitíssimo originais como:
«estendendo a sua mão numa gargalhada»,
«ambos se estudam como tigres»,
«A sua postura de tutora desfez-se»,
«Descemos dos cavalos e amarrámo-los a uma árvore»,
«bebem em elegantes tragos» e
«desfere um poderoso pontapé rotativo sobre a face do nosso companheiro que é projectado no chão.» Esta talvez seja auto-biográfica, considerando que o autor é praticante de artes marciais.
Realmente,
Memórias de Um Vampiro tem de tudo um pouco: viagens não-intencionais no tempo, um samurai vampiro, um lendário caçador de vampiros chamado
Claudius Van Helsing e, até prova em contrário, um
cameo role de
Mussolini, sob o disfarce de um vampiro chamado
Duce (I kid you not). Mas antes que possam acusar o autor de fascista,
Memórias de Um Vampiro contém a mais bela ode ao Comunismo que eu já li, seja onde for:
«Alimentei-me como antes, mas desta vez foi mais fácil. O conflito em mim era menor. Penso que me habituei rapidamente a ver aquele ritual como uma necessidade inócua, pois não havia mortes, não havia lembranças, não havia marcas. Era como roubar uma moeda a um rico, não lhe faria falta» (pg. 44). "Economia Robin Hood" no seu melhor. Como escreveu Engels no prefácio da edição alemã do
Manifesto Comunista:
«Quem me dera que Marx pudesse estar a meu lado para ver isto com os seus próprios olhos» (Oxford University Press, 1998. pg. 56).
A esta altura vale a pena perguntar onde é que o autor de
Memórias de Um Vampiro quer chegar com isto tudo. A pergunta é tão pertinente, tão pertinente que até lhe foi feita numa entrevista que ele deu há uns dias à rádio Antena 3 (a do autocolante na capa). Pergunta a entrevistadora:
«-Portanto, um futuro auspicioso para ti enquanto escritor?» Loureiro responde:
«-Ah... Vamos ver... Eu creio que sim, eu acredito, eh, eh.» A fé move montanhas.
Mas será que Loureiro sabe alguma coisa sobre literatura fantástica (ou de horror, na generalidade)? Ou sobre vampiros, apenas?
Pergunta a entrevistadora: «
-Todo este universo "vampiresco" foi algo que apareceu naturalmente em ti ou tem a ver com o facto de teres lido determinado livro na tua adolescência que te despertou?...» O autor responde:
«-Também, também!... (...)
mais tarde acabei por descobrir o lado romântico deste terror e aí claro que tive influências da Anne Rice, do Dracula do Bram Stoker, do próprio Nosferatu de 1940, se não me engano, e acabei por desenvolver este personagem que acaba por ser quase de terror, mas, ao mesmo tempo, é um personagem romântico. Ou ultra-romântico.» A entrevistadora enfatiza:
«-Ultra-romântico?!...»Com efeito, ele enganou-se.
Nosferatu, de
Friedrich Wilhelm Murnau, filme a preto e branco e mudo, foi realizado em 1922 (altura em que os filmes eram todos a preto e branco e mudos). Em 1940 havia cinema a cores e falado, mas já se percebeu pela leitura de
Memórias de Um Vampiro que datas e localizações temporais não são o forte deste autor.
Porém, pese o pouco jeito para números, ele tenta bastantes coisas com este livro. Tenta ser a
Anne Rice, por exemplo, plagiando sem grande engenho as regras do código deontológico vampírico que essa autora foi desenvolvendo nas
Vampire Chronicles. Em
Memórias de Um Vampiro pode ler-se:
«-O Silêncio? - perguntei. -É uma das principais leis de Nocturnus. 1º Lei: A Opção: Nunca oferecerás o Novo Nascimento contra a vontade do escolhido. 2º Lei: O Silêncio: Nunca revelarás a tua verdadeira natureza ao Homem. 3º Lei: A Cortesia: Nunca desafiarás a palavra do Regente da Terra onde estiveres. 4º Lei: A Linhagem: Nunca criarás um Filho sem a permissão do Regente. 5º Lei: A Segunda Morte: Se as leis forem violadas aplicar-se-á a Segunda Morte ao Vampiro que as quebrou» (pg. 50).
As regras supracitadas provém de diversos títulos escritos por Anne Rice, assim como de
The Book of Nod (que também as usa, mas de um modo original que
Memórias de Um Vampiro é incapaz de mimetizar). Introduzir essas transcrições é um exercício exaustivo e este texto já é longo o suficiente sem incluir, ainda, essas informações. Mesmo assim, porque é mais breve e também mais acertado, transcrevo alguns diálogos da adaptação cinematográfica de
Interview With the Vampire, realizada por
Neil Jordan, que se encontram reproduzidas de modo muito semelhante no texto de Loureiro. Aliás, deste modo fica em evidência que quando Loureiro admitiu ter sido influenciado por Anne Rice, não se referia aos romances, mas às adaptações cinematográficas desses trabalhos. É, portanto, com referências a filmes e a jogos de
RolePlay, que se faz esta proposta de literatura fantástica portuguesa...
Louis em
Interview With the Vampire:
«Then out of curiosity, boredom, who knows what, I left the old world and came back to my America. And there, a mechanical wonder allowed me to see the sun rise for the first time in two hundred years. And what sunrises, seen as the human eye could never see them: silver at first, then, as the years progressed, in tones of purple, red, and my long lost blue.»Em
Memórias de Um Vampiro:
«A tecnologia trouxe a cor às telas de cinema, e o dia, o nascer do Sol, entrou em casa de cada vampiro através da televisão» (pg. 145. Mencionar o cinema, tal como no trecho anterior, era demasiado flagrante, por isso fala-se em televisão.)
Em
The Book of Nod:
«Raphael cursed me, saying: "Then, for as long as you walk this earth, you and your children will fear the dawn and the sun's rays will seek to burn you like fire where ever you hide always. Hide now for the Sun rises to take its wrath on you"» (pg. 32).
Em
Memórias de Um Vampiro:
«Pela maldição de Deus a Tiriel, não conseguimos suportar a luz do Sol. Esse é o nosso maior inimigo, pois nos tornaria em cinzas em segundos» (pg. 40)
.
Daniel Molloy e Louis em
Interview With the Vampire:
«- What about crucifixes? - Crucifixes? - Yes, can you look at them? - Actually I am quite fond of looking at crucifixes. - What about the old stake through the heart? - Nonsense.»
Em
Memórias de Um Vampiro:
«De maneira nenhuma temos medo de cruzes, há até alguns de nós que as usam como adorno. Não são as cruzes que nos afectam, mas sim a Fé - somente a verdadeira Fé de quem as segura nos pode afectar! As estacas de madeira no nosso coração apenas nos paralisam, não nos matam. A única forma de nos tirarem a vida é decapitando-nos» (pg. 40).
Enfim, que Loureiro tente ser a Anne Rice é compreensível, mas é inaudito que tente ser o
Paulo Coelho. Não acreditam? Então leiam os excertos seguintes:
O Alquimista, de Paulo Coelho:
«E quando você quer uma coisa, todo o Universo conspira para que se realize o seu desejo» (pg. 47).
Lília Whitemoon e Daimon DelMoona em
Memórias de Um Vampiro:
«-Sabes que o Destino conspira a nosso favor. Ele coloca ao nosso lado as pessoas mais importantes para a nossa jornada, almas que foram forjadas ao mesmo tempo que a nossa» (pg. 177).
O Alquimista, de Paulo Coelho:
«Como sabes que não voltarás a vender ovelhas. -Quem lhe disse isso? - perguntou o rapaz, assustado. - Maktub - disse simplesmente o velho Mercador de Cristais. E abençoou-o» (pg. 96).
Lília Whitemoon e Daimon DelMoona em
Memórias de Um Vampiro, de Rafael Loureiro:
«-Tu enfeitiçaste-me? Parece que te conheço desde sempre. - Misteriosos são os desígnios de Deus.» (pg. 177).
O Alquimista, de Paulo Coelho:
«Escuta o teu coração. Ele conhece todas as coisas, porque veio da Alma do Mundo, e um dia retornará para ela» (pg. 196).
Memórias de Um Vampiro, de Rafael Loureiro:
«Os vampiros podem continuar a ter Fé» (pg. 131).
Excerto da entrevista de Rafael Loureiro à Antena 3:
«-Que conselhos darias a quem nos ouve que tenha o sonho de ser escritor? -Olha, eu já tenho algumas pessoas que me vão enviando mails com algumas... com alguns parágrafos ou alguns capítulos de... de... livros também deles e o meu conselho é sempre esse: não desistam. Não desistam porque toda a energia que... que vocês estão a emanar... ela há-de... há-de dar fruto, tal como eu. Foi um processo longo... de quase cinco anos ou seis anos, mas... teve os seus frutos. -É não deixar a esperança ir embora.»
O Alquimista, de Paulo Coelho:
«Maktub - disse. -Se eu for parte da tua Lenda Pessoal, voltarás um dia» (pg. 159).
Neste trecho de uma resenha crítica que retirei do
weblog As Leituras do Corvo pode ler-se: «(...) esta relação que se cria entre o leitor e as personagens que torna Memórias de um Vampiro num livro tão tocante e tão belo. A todos os apreciadores do fantástico e principalmente aos fãs de histórias de vampiros, não posso deixar de recomendar esta história em que o único defeito que encontro é o de terminar demasiado depressa. Resta-me, pois, esperar pelo próximo tomo desta excelente aposta (...)»Citei este excerto para dar a entender que, aparentemente, a minha opinião vai no sentido contra-corrente daquilo que vai sendo escrito sobre
Memórias de Um Vampiro. Contudo, apesar de isolada, acho que demonstra aquilo de que é feito este livro e porque é que ele, apesar de já ter sido um produto de Série B (edição de autor), continua a ser mau agora que é um produto de Série A (publicado por uma editora com um grande orçamento). Não é culpa do género em que se insere. O livro é mau porque, como se viu acima, está mal pensado, está mal escrito, contém erros imperdoáveis e, sobretudo, pelo modo como tem sido apresentado ao público, só prejudica o género Fantástico.
Se eu não fosse um conhecedor de literatura fantástica e até tivesse preconceitos voltados contra ela, graças a isso, não seria com
Memórias de Um Vampiro que eu iria convencer-me de que este género de ficções são tão boas quanto as aprovadas pelo cânone da dita literatura erudita.
O facto é que há quem diga que ser reconhecido pelos
literati não interessa nada e que, isso sim, é que é prejudicial ao género Fantástico. Eu também concordo que nós não precisamos do
imprimatur da academia para nada, para que fique clara a posição em que me situo sobre esse tema, mas o que é fatal é que livros como
Memórias de Um Vampiro e quejandos não dignificam em nada o género no qual se inserem e talvez fosse mais proveitoso, já que o objectivo era cavalgar a onda da moda vampírica na literatura que o mercado atravessa neste momento e facturar umas massas, gastar-se mais uns trocos e mandar traduzir obras de referência como
Some of Your Blood, de Theodore Sturgeon,
The Vampire Tapestry, de Suzy McKee Charnas,
Hotel Transylvania, de Chelsea Quinn Yarbro,
Lost Souls, de Poppy Z. Brite,
Anno Dracula, de Kim Newman,
The Dracula Tapes, de Fred Saberhagen,
The Travelling Vampire Show, de Richard Laymon,
Sunglasses After Dark, de Nancy Collins, e muitos outros. Até mesmo os livros do vampiro
Varney, de
James Malcolm Rymer.
É que, dessa maneira, vampirizavam à mesma os vampiros, mas ao menos punham cá fora obras de qualidade.