sábado, 20 de março de 2010

A Ode ao Negro


Os pintores chamados impressionistas, do final do século dezanove, não acreditavam que o preto fosse uma cor, porque sabiam, com razão, que essa pigmentação não reflecte nem emite qualquer tipo de luz visível ou invisível. Apodados pelo crítico de arte Louis Leroy com base no título do quadro Impression, Soleil Levant, de Claude Monet, artista que, tal como um verdadeiro vampiro, era capaz de ver os comprimentos de onda da luz ultravioleta (o que, à distância, serve de explicação para a excentricidade da sua paleta), eles nunca poderiam relacionar-se com a cor negra do mesmo modo que se comportavam junto do púrpura, do azul ou do vermelho. Simpatia pelo laranja, sim. Amizade pelo amarelo, também. Talvez, num final de tarde chuvoso, e se o almoço tivesse caído bem, pudessem perceber a delicadeza da cor da madeira e das nuvens cor de ferrugem; mas nunca, nem em momentos luminosos como estes, poderiam sentir senão desdém pela profundeza preta, acromática, que aos seus olhos parecia roubar-lhes a luz, à guisa de cegueira.

Vivemos num mundo de luz e, por conseguinte, de cores. Somos capazes de ver algumas, enquanto que outras escapam, de modo cabal, ao nosso escrutínio. Este mundo de cores, azul de madrugada, dourado ao meio-dia e púrpura ao crepúsculo, é antigo, com cerca de catorze mil milhões de anos de idade. Na verdade, é um palimpsesto, sobre o qual o velho é rasurado para se escrevinhar o novo; um pedaço curvo de papel com, mais ou menos, noventa e quatro mil milhões de anos-luz de diâmetro: mais do que suficiente para fragilizar qualquer candidato a demiurgo; aterrorizante o bastante para provocar um infinito bloqueio de escritor. Flutuante no fluido espácio-temporal, como uma página arrancada a uma sebenta, esta quase imensurável vastidão branca não poderia valer de muito vazia e, depois de um primevo período de impedância, alguém, alguma coisa, percebeu o potencial do suporte e, sem que ninguém ou nada o impedisse, começou… a escrever!

«No princípio era o Verbo.»
Verbo ou palavra, mas não falada porque nenhuma boca existia ainda. Uma palavra escrita. E escrita a preto. Criação em formato de alto contraste: preto sobre o branco. Formas delineadas com verve sobre a desapaixonada vagueza albugínea.

O preto é a cor do universo. É a cor da primeira tinta criada pelo homem, em imitação imperfeita do autor oculto que lhe ortografou as origens. Desde a alvorada da história que o homem cria narrativas, pintadas com pigmentos puros em paredes de pedra – poesia primordial, petroglifos sequenciais, esboçados com partículas carboníferas provenientes de pedaços de ossos queimados. Quem foram estes neófitos neolíticos? Que inspiração primeva lhes lembrou de agarrar nas cinzas? Estes Ads Reinhardts primitivos, estes Wassilys Kandiskys das grutas, munidos com mais nada a não ser carbono e imaginação, deram-nos pistas pretas para pintar o porvir – para envolver os nossos próprios assuntos na abissal gramática do cosmos. Estrelas de rocha orbitam estas galáxias subterrâneas (tão pungentes quanto apaixonantes) de figuras toscas que ilustram os tectos eritematosos das cavernas: um Zodíaco de animais e homens extintos, signos sagrados que atenderam ao nascimento da fantasia.

O preto é, de maneira geral, a cor do pessimismo, da tristeza e da angústia. Costuma estar associado, na psique popular, à bruxaria e aos malefícios, mas o preto também é a cor do mistério e dos desígnios sobrenaturais. Judas é representado na iconografia cristã como tendo uma aura preta e Cristo traja paramentos pretos nas passagens em que é tentado pelo Diabo, personagem que é conhecida por Príncipe das Trevas. Em certas regiões rurais europeias ainda é praticado o invulgar jejum da galinha preta, no qual um suspeito de um crime é obrigado a jejuar durante nove dias: se ele não confessar, passado esse período, morre. Compreende-se com facilidade que o propósito da chamada Magia Negra é instrumentalizar o poder sobrenatural, na maioria das vezes sob diligência do Diabo, para desencadear danos. O mesmo Diabo que é representado num mosaico bizantino do século XIII, na catedral italiana de Torcelo, como sendo um velho de pele de antracite que tem o Anticristo ao colo. Do mesmo jaez, os diabretes da famosa Imagem da Escada do Paraíso de São João Clímaco, que puxam as pernas das almas ascendentes, para arrastá-las para o Inferno, são todos pretos. É a indicação de que se tratam de seres unidos ao mundo inferior ctoniano. Quando querem diabolizar personagens de ficção, ou dar a entender que elas são agentes do mal, os criadores têm o hábito de vesti-las de preto, como os vilões dos filmes mudos e os cavaleiros negros das canções de gesta, ou dar-lhes pele preta, como o autor belga de banda desenhada Peyo fez aos estrumpfes negros.

Mais do que qualquer outra cor, o preto emite um desafio que quase invoca as palavras que Cristo ressuscitado dirigiu a Maria Madalena: noli me tangere. O preto é uma cor austera, isenta e elegante. É uma cor inconformista, incomprometida e incompreendida. As variedades mais mansas de espécies consideradas perigosas costumam ser as melasmáticas, como o urso preto, o leopardo preto, o escorpião preto, o touro preto e o rinoceronte preto. Nem sequer o gato preto é tão tempestuoso quanto o siamês.

Serão ecos da melainacholé associada à cor negra?
Será por culpa disso que a cultura gótica tem fama de ser depressiva?
«A poesia é tanto dos túmulos!», disse o poeta Mendes Leal, melancólico autor de Os Dois Renegados, o primeiro “dramalhão” à portuguesa. E lúgubre é o Locus Horrendus luso, permeado por púrpuras pedaços de prosa, como «horror misterioso», «roxo cadáver», «ossos mirrados», «fétidas carnes», «espectros que volteiam», «pávidas sombras» e, uma das minhas preferidas, «lúcidos fantasmas», que, verdade seja dita, é um excelente nome para uma banda. Entre nós, sobretudo na literatura de folhetim da primeira metade do século XIX, encontramos um tema continuado: o do desenterramento do defunto e o resgate da sua caveira como símbolo de uma vida miserável, terminada tragicamente. Literatura de cemitério é certo, como A Caveira de Camilo Castelo Branco, mas, em primeiro lugar, uma literatura de meditação – de realce dos flagícios da alma. Baladas românticas estes contos tristes não são: sem préstimo para entreter, nem indicados para quem tem bom gosto. Contém um coração negro; um invencível pulsar nocturno e melancólico que os consubstancia. Mas melancolia não é horror… Na nossa literatura mais negra encontravam-se contos tristonhos de naufrágios, casos de amor infrutíferos, trovas saudosistas, às vezes um ou outro relato de feitiçaria ou uma partida pregada pelo Diabo, mas nenhum verdadeiro horror.

Porém, o que é a melancolia senão o «carácter da mortalidade», como expressou Burton no seu magnífico tratado? Não é ela o pomo da actuação morbígera da bílis negra em demasia, que é um dos quatro humores e torna os homens cismáticos, irritadiços e inquietos? Muitas criaturas das trevas têm sangue preto. Mesmo assim, há outros melancólicos que, sem serem vilões, vêem um arco-íris e querem pintá-lo de preto, como fizeram os Rolling Stones em 1966. Em referência aos humores negros, não é curioso que, quase trinta anos depois, a banda sueca Deranged, que fez uma cover dessa música, tenha editado outra, no mesmo disco, intitulada Vingança do Sémen Preto? Noutras latitudes, o compositor finlandês Jean Sibelius compôs o opus O Cisne de Tuonela, sobre o cisne negro que Lemminkäinen, o herói do poema épico Kalevala, é incumbido de matar, antes de ser assassinado por uma seta envenenada. Vale a pena especular sobre a coincidência de Sibelius ter sido maçon, e composto música ritualística maçónica, quando a descrição de Lemminkäinen morto pela seta é análoga à exposição do corpo inerte de Hiram Abiff na imagética do terceiro grau simbólico da Franco-Maçonaria, que, anda por cima, tem como paramento um avental preto? Por outro lado, quando penso na cor preta, a música que me lembro com maior urgência é sempre o primeiro movimento da Quinta Sinfonia de Beethoven: o Allegro Con Brio e o seu bombástico riff de abertura. Esta cor e a música nunca mais se dissociaram, mas é na arte que ela encontra representações mais sofisticadas.

No quadro Calúnia, de Sandro Botticelli, que representa a queixa do pintor jónico Apeles contra as calúnias inventadas pelo rival Antiphilus, a personificação do Remorso é uma velha vestida de preto, mas quando penso sobre a cor preta na arte aquilo que lembro com mais frequência é o caminhante solitário que está virado de costas para o observador na pintura Caminhante Sobre o Mar de Nevoeiro de Caspar David Friedrich: verdadeiro farol caliginoso que arromba a bruma branca, à laia de esporão de um navio. O tom mais terreal de preto talvez pertença ao quadro Dados: 1º A Queda de Água; 2º O Gás de Iluminação, de Marcel Duchamp: reclinada de pernas abertas sobre a vegetação áspera, a Mãe Universal sugere que está pronta para o coito; o seu rosto está oculto – não é necessário vê-lo, pois ela é toda vulva. Observando-a de dentro de um espaço indeterminado, que tanto pode ser uma caverna como uma velha casa abandonada, o espectador (o iniciado?) vê essa personagem cercada por uma sombria coloração preta que contrasta de modo hostil com o céu azul. Mesmo assim, existem lugares negros muito mais terríveis que a gruta de Duchamp, se bem que mais etéreos: o interior escuro do quarto que é exibido na tela O Pesadelo de Fuseli; os cárceres desconfortáveis que podemos ver nas telas de Francis Bacon; e a câmara fatídica em que o pintor Gabriel von Max colocou o seu Anatomista. Neste quadro, o anatomista titular prepara-se para desvendar o corpo alvo de uma mulher morta: arrancando-lhe com brandura um sudário que mais parece uma placenta, o homem arroga o papel de noivo numa hierogamia entre o preto e o branco: união que gera o cinzento; cor que, no espectro cromático, possui o valor central. Logo, do Homem.

A etimologia é destino: será coincidência que todas as palavras conhecidas para designar a cor negra provenham de sinónimos para o acto de queimar? Caldos calcinantes de ossos e terra em cadinhos alquímicos pré-históricos. O Sol e a sua sombra: enxofre e mercúrio; união enegrecida da matéria e do espírito numa pasta putrefacta preta. Nigredo da existência terrena – melancolia hermética; noites saturninas, fedendo a suor e madeira queimada. «A cor preta é o silêncio do corpo depois da morte », escreveu Kandisky, de maneira melancólica: «A conclusão da vida.» Pois se há algo que a cor preta evoca com mais facilidade é o conceito da morte.

A morte é um tema que nos é difícil de abordar; se não fosse, nunca usaríamos eufemismos como sono ou não diríamos que alguém falecido de fresco encontrou tranquilidade. O que fazemos nestas circunstâncias é antropomorfizar a morte, mas isso é errado: a morte não nos pertence. A morte criada pelo poeta John Milton devorava as vísceras da própria mãe, o que pode ser interpretado como sendo uma alusão grotesca à amamentação — ao elan vitale —, mas a introdução da morte nas nossas vidas é uma experiência devastadora. A definição clínica da morte é de que se trata da cessação permanente das funções vitais, mas como atestar, de modo infalível, o fim de todas as coisas?
A respiração pode manifestar-se em movimentos do diafragma tão suaves que são invisíveis a olho nu. A descida da temperatura corporal também não é um indicador seguro. Os músculos da íris continuam a reagir à luz horas depois da morte e o ritmo cardíaco pode ser influenciado a abrandar até à quase imobilidade. Diagnosticar um óbito não é fácil e o medo de ser enterrado vivo apavorou os nossos antepassados durante séculos. Com efeito, só existe uma maneira segura de confirmar a morte: a presença da putrefacção.

Só esse estádio é apanágio da matéria morta, mas nós não assistimos à decadência dos nossos entes queridos, nem testemunhamos como a sua pele enegrece e os corpos moles incham, libertando líquidos e gases fétidos cuja pressão empurra as vísceras para fora dos orifícios naturais. Nem sequer somos capazes de imaginar o luxo em que consistiu o banquete dos vermes, antes dos coveiros esvaziarem a sepultura e jogarem fora as ossadas. «A putrefacção é a parteira de muitas coisas grandiosas! Faz com que as coisas apodreçam, para que novos frutos nasçam», escreveu Paracelsus, mas outros espíritos inquietos, e mais modernos, também celebraram a beleza da decomposição: «Lembras-te, meu amor, de uma coisa que vimos / Nessa manhã de Verão, suave: / Na curva de um caminho um pútrido cadáver, / Num leito de pedras, sozinho. (…) Na podridão brilhava o Sol com a certeza / De quem parecia cozinhá-lo, / Para devolver com juros à Mãe-Natureza / Tudo o que ela um dia juntara», versejou Baudelaire que, tão famoso ficou por culpa deste poema, lhe chamaram Príncipe das Carcaças. Porém, por mais que se poetize a morte, ela não é mistério nenhum. E também não é nenhum castigo. Nós envelhecemos porque, entre outras coisas, consumimos oxigénio: ao queimá-lo no athanor que é o corpo, libertamos resíduos corrosivos que oxidam as estruturas celulares e impedem a sua duplicação. Em suma: nós morremos porque enferrujamos!... Somos criaturas aeróbias, pluricelulares e sexuadas: tanta diversão junta tinha de ter um preço.

O preto enquanto cor do luto ocidental invoca o nigredo alquímico que amalgama a matéria e o espírito; imagem fortificada pela ideia do velório, esse período em que todos os compostos se encontram em suspenso. «Quero ser como o corvo», bradavam os alquimistas de outrora, «quero ser como o corvo» e, estupefactos, verificamos que somos mesmo todos como ele quando nos reunimos em redor do caixão recheado com o cadáver. Somos verdadeiras luzes vigilantes que deixam que o defunto putrifique, no decorrer da longa noite da alma. Desse ponto de vista, a significação da cor preta como símbolo do solo fértil faz sentido: a terra que conserva as sepulturas, morada dos mortos e novo útero. «Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica só; mas se morrer dá muito fruto», diz-nos o Evangelho de São João, no capítulo alusivo à última Páscoa: festividade religiosa que agarra o conceito da destruição da matéria, para apresentá-la renascida. Regeneração e promessa – pareceres pugnados pelo décimo terceiro arcano de um baralho de Tarot: a Morte. Iniciática, esta “morte” é, somente, o prelúdio de um nascimento verdadeiro. O ameaçador esqueleto negro que agarra a gadanha introduz o consultado num novo ponto de partida – simbolismo que não deixa de reflectir-se no próprio algarismo 13 que enumera o arcano e que sucede ao 12, número da completude.