No seu livro When Things Start to Think (Henry Holt & Co., 1999), o professor Neil Gershenfeld, do Massachusetts Institute of Technology (MIT), enumera as vantagens que os livros têm em relação aos computadores: «Books boot instantly, and have a high-contrast/high-resolution display; they are viewable from any angle, in bright or dim light; they offer fast random access to any page, with instant visual and tactile feedback; they are easily annotated with no need for batteries or maintenance; and are robustly packaged.» A conclusão é: «If the book had been invented after the laptop it would be hailed as a great breakthrough!» (pg. 13).
Não sou tecnófobo, mas não acredito que tudo aquilo que a tecnologia oferece é capaz de simplificar ou resolver os nossos problemas; e no que diz respeito à leitura o único problema é a incapacidade de agarrar um livro, ler o conteúdo e compreendê-lo. O cérebro não é um músculo, mas trabalha como se fosse um, no sentido em que se fortifica e agiliza quanto mais for exercitado, e a leitura, que também não é um exercício, dá tanto trabalho como um grande esforço físico. É por esta razão que se lê tão pouco e tão mal: ler dá trabalho, ponto final. Nenhuma tecnologia é ou será capaz de resolver o problema da iliteracia, por mais fé com que se observe os gadgets.
Transfiro o que Gershenfeld escreveu sobre a vantagem dos livros em relação aos computadores para a problemática dos eBooks e dos aparelhos que permitem a sua leitura: os eReaders. A primeira pergunta a fazer é esta: o que é que se tem a ganhar com um eReader que não se ganhe, à partida, com um livro? A resposta é: nada. Pelo contrário: o eReader consome energia e, tal como qualquer outro electrodoméstico, como a torradeira ou o espremedor de citrinos, pode avariar-se de um momento para o outro ou até "comportar-se" de modo temperamental, escusando-se de funcionar por culpa das mais variadíssimas causas (as máquinas são sensíveis às condições climáticas, atmosféricas, ao pó, etc.).
Ler faz-se com livros. O que se faz com um eReader não é ler: é brincar. E se for com um eReader com ligação à Internet, então a brincadeira assume contornos quase multidimensionais, com múltiplas hiperligações para sites de venda de livros, pop-ups com anúncios a outros livros e ícones que abrem janelas para as últimas novidades do fabricante do próprio eReader. Em suma: é um universo de informação delirante e veloz, mas que tem tanto a ver com leitura como as batatas fritas que se vendem nas cadeias de fast-food têm a ver com batatas: zero. Ler num ecrã, mesmo que seja num ecrã supostamente preparado para o efeito, como os dos eReaders, não é conveniente à absorção - quanto mais à compreensão de textos - que tenham um tamanho maior que dois ou três parágrafos. Tenho muitas dúvidas sobre a qualidade de uma leitura feita num eReader e tenho quase a certeza de que o tempo irá demonstrar que a leitura e esta tecnologia não são compatíveis.
O modo como eu observo este problema é o seguinte: a mente humana é um produto do cérebro, mas, independentemente disso, é amoldada pelo corpo inteiro, o que significa que o modo como o corpo de um indivíduo experimenta o mundo influencia de forma cabal o desenvolvimento da mente; se fosse possível transplantar uma mente para um corpo diferente, ela mudaria passados poucos dias, porque o novo invólucro lhe forneceria diferentes sensações e experiências. É deste enunciado que parto para a análise da leitura nos eReaders: a leitura faz-se com o livro, porque o próprio livro, enquanto objecto, vai influenciar o leitor - o acto de agarrar e folhear um livro é parte constituinte da prática da leitura. A experiência de ler num eReader é uniforme: sem sobressaltos. O eBook é um "livro transplantado", tal como a hipotética mente transplantada do meu exemplo: extirpado do seu hardware natural (o papel), aquilo que o software (o texto) oferece é outro tipo de experiência. Não é leitura.
A atracção dos eReaders consiste em exclusivo na sua interactividade e isso ocorre porque vivemos numa época que valoriza as experiências empíricas que apelam à emotividade e não ao intelecto. Passem os olhos por um bloco publicitário em qualquer canal televisivo: a mensagem principal da maioria dos anúncios é "Na companhia dos teus amigos tudo é possível". Tudo é possível quando se está em grupo, comunicável e acessível no momento. O grupo é afectivo, aditivo e perigosamente uniformizador: as ideias não valem por si, mas têm que estar hiperligadas às experiências validadas pelo grupo, e os factos, seja de que área forem, são olhados com desconfiança quando não provém de dentro do grupo (o público) e são fornecidos por fontes de autoridade nos correspondentes campos de especialidade. Por oposição, a leitura apela ao ascetismo, à razão, à individualidade. Não admira que esteja fora de moda e a ser substituída. Será possível que, no futuro, ninguém terá a capacidade cognitiva ou competências intelectuais para ler e compreender uma narrativa longa, que exija um prolongamento temporal para além do momento da recepção, de maneira a ser usufruída? A tónica colocada na interactividade de que depende a comercialização de gadgets, como os eReaders, irá criar uma tendência ainda maior por experiências que sejam altamente estimulantes, em prejuízo de outras que se construam com a reflexão e a análise?