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baseado no livro Batalha de David Soares.»
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«O fenómeno religioso observado pelos animais
Um dos mais conceituados autores portugueses de literatura fantástica, David Soares, esteve em Castelo Branco, no passado dia 17 de Agosto, para apresentar o seu quarto romance, Batalha. O escritor, que soma distinções da crítica nacional e internacional, conversou com o "Povo da Beira", à margem da sessão de autógrafos promovida pela livraria Bertrand e pelo Castrum Bar, nas Docas.
Povo da Beira (PB) - Comecemos pelo novo livro. De que fala o “Batalha”?
David Soares (DS) – É um romance de literatura fantástica que fala sobre o fenómeno religioso, observado do ponto de vista dos animais. Na essência, é uma história alegórica que parte desse ponto de vista, não só para tentar perceber como nós funcionamos perante o sentimento do transcendente, do divino, como também para explorar as relações que existem entre vários sistemas de crenças, o modo como as sociedades se erguem e desaparecem. É também um romance que se preocupa muito com a linguagem.
PB - Prossegue os seus temas de eleição?
DS - Todos os meus romances fazem parte de um mesmo universo autoral, cujos temas basilares são o fantástico, o oculto, a história. O romance “Batalha” inscreve-se nesse universo, mas, por ter animais como personagens principais, foge um pouco à linha dos romances anteriores. Há uma grande alegoria que vai buscar material às mitologias maçónicas e alquímicas, e também à tradição mágica portuguesa e às nossas lendas populares.
PB - Porquê animais? Possibilita ir-se mais longe?
DS - Falar pela voz dos animais é uma boa forma de falar sobre os nossos próprios assuntos e as nossas próprias preocupações. Garante um distanciamento que nos faz observar as coisas de um modo muito mais isento. E isso é importante para se chegar a conclusões pertinentes e importantes. Neste caso em particular, o distanciamento resultante de falar do fenómeno religioso a partir da voz dos animais permitiu introduzir a minha própria voz, que, no que diz respeito à crença, está bastante distante destes assuntos do fenómeno religioso. Foi uma forma que encontrei de reunir essas duas vozes.
PB - Como funcionam as duas vozes?
DS - Apesar de escrever sobre estes temas, em que o fantástico se entrosa com o oculto, o hermetismo, o mitológico, não tenho crenças no sobrenatural, nem no religioso, nem na vida após a morte. Enquanto indivíduo, sou ateu. Mas a minha voz autoral dirige-se para estes assuntos, gosto de falar deles. O ponto de vista dos animais no livro “Batalha” é um ponto de vista distante, um pouco como se fosse o meu.
PB - Criar deuses e religiões é algo muito humano…
DS - Do ponto de vista científico será legítimo questionarmos se os animais têm religião? Bom, o certo é que está provado pela neurociência que os animais têm superstições, criam rotinas e vícios. Nesse sentido estão em sintonia connosco. Agora, para darem o passo além e acreditarem numa religião, seria preciso que os animais tivessem consciência da sua própria mortalidade, coisa que poderão não ter. Aquilo que separa uma religião de outra crença partilhada é que uma religião promete a salvação após a morte.
PB - O entrosamento da ficção com a história obriga a uma grande pesquisa?
DS - Sim. A pesquisa é feita toda no início. Proponho-me a escrever sobre determinado assunto, tento ler tudo o que encontrar sobre ele e depois começo a organizar a história. É delineada em esqueleto, num organigrama rigoroso, que é seguido à risca na fase da escrita. É raro desviar-me desse esqueleto, embora haja sempre espaço para o improviso.
PB - O género fantástico nem sempre é bem visto. Os prémios que o David ganha tornam-no um representante desta literatura?
DS – Antes de mais, infelizmente o mercado do fantástico, nos últimos dez anos, tem sido abanado por alguns fenómenos de mediatismo, cá e lá fora, em áreas que não passam pela literatura. E esse mediatismo cria algumas modas. As modas têm um lado bom, que é introduzir algumas pessoas a géneros que não conhecem, mas têm o reverso que é fazer com que todos os produtos desse género tenham de ser iguais, o que rouba diversidade e espontaneidade. No entanto, não olho para mim como sendo representante de nada. Faço o meu trabalho o melhor que consigo e tento fazer obras que não me envergonhem quando as for revisitar. O género fantástico tem uma vantagem: se as coisas forem bem feitas, os livros dificilmente se deixam datar. Para mim é muito importante criar um livro que perdure no tempo, que conserve a frescura.
PB - Além do romance, tem outras áreas literárias em que investe, não é?
DS - Na essência, sou um escritor e trabalho com linguagens literárias. O romance, o conto, o ensaio e a escrita de banda desenhada são linguagens que pertencem ao espectro das linguagens narrativas. Mesmo a banda desenhada, que é narrativa antes de ser visual. Nesse sentido, o trabalho que desenvolvo em cada linguagem é enriquecedor porque vai alimentar formas de fazer coisas noutras áreas.»
Este assunto foi analisado pelo historiador norte-americano Robert Darnton no livro The Great Cat Massacre, and Other Episodes in French Cultural History (1984), onde se conclui que o caso, embora revestido de um certo sentimento de reprovação da parte dos desgraçados jornaleiros contra o patrão endinheirado, consistiu mais num acontecimento simbólico que numa proto-rebelião, à guisa de Revolução Francesa avant la lettre. Pese o truísmo de que os servos sempre desprezaram, em menor ou maior grau, os amos, os protestos sociais do Ancien Régime mantiveram-se sempre ao nível do "simbólico", pois a consciência de que seria possível a criação de outro sistema político, igualitário, era inexistente. Com efeito, o próprio Darnton, em The Great Cat Massacre, avança com a ideia de que a grande satisfação das classes mais desfavorecidas da Idade Moderna consistiu na humilhação das classes superiores, mas não na abolição destas. O desenvolvimento do massacre dos gatos na Rue Séverin só foi possível porque a tortura e morte ritual de gatos era já uma prática predominante; em principal, nas festas de São João Baptista, em que os infelizes felinos eram incinerados vivos em fogueiras quasi-inquisitoriais. Para tal, concorreram, de certeza, as crenças populares nas supostas aptidões dos gatos para fazerem mal ou as suas alegadas associações a práticas de bruxaria. Com base em diversos elementos causadores, interligados com religião e superstição, o gato foi seleccionado com especificidade como sendo um animal expiatório - e quando o senhor Séverin, mais a esposa, pediram aos empregados Jerome (Contat) e Léveillé que se livrassem dos gatos vadios que não os deixavam dormir com os seus miados incessantes, os dois aprendizes de tipógrafo decidiram realizar a tarefa ao estilo das copies que animavam os seus dias na oficina.
Carnavalescas, as copies eram arremedos de boçais peças teatrais com happenings, improvisadas com ruído e gargalhadas pelos tipógrafos e representadas, posteriormente, em repetidas vezes (daí chamarem-se copies) na oficina durante as horas de trabalho. Serviam, de igual maneira, como uma espécie de mnemónicas da própria cultura da compagnonnage tipográfica, que também estava sujeita a práticas de iniciação, promoção e julgamento: apesar de trabalhar com a palavra impressa, a "ordem" dos aprendizes e tipógrafos jornaleiros possuía uma distintiva cultura oral, associada à desordem, ao escárnio e à fête, manifestada em partidas e brigas nas tabernas e nas ruas.
Ora, foi o encontro da cultura oral dos tipógrafos jornaleiros (que, mais do que sentirem fidelidade para com a sua "classe social", mantiveram fortíssimos laços de fidelidade entre a sua classe profissional - à semelhança dos restantes ofícios da cidade), a cultura das brincadeiras ruidosas das copies, com a cultural popular predominante, aprovadora da morte festiva e cerimonial de gatos, que permitiu o Grande Massacre dos Gatos: o enforcamento destes foi, pois, inspirado nos julgamentos ritualísticos ensaiados nas copies.
Adstringido no espaço e no tempo, o Grande Massacre dos Gatos não manifestou nenhum descontentamento social generalizado, nem nasceu no seio de uma rebelião. Foi um fenómeno sub-cultural, complexo, é certo, mas simbólico em vez de ser político.
O mais cómico é que, no melhor estilo truculento das copies, foi Contat quem subiu durante noites seguidas ao telhado dos aposentos do patrão e se pôs a imitar um gato, para não o deixar dormir.
Imagem: First Stage of Cruelty, William Hogarth (1751). Primeira gravura de uma tetralogia que demonstra, em registo satírico, a violência popular (e não só) de um típico bairro do Norte de Londres: St. Giles.