Começando com um prólogo teatral, passado nos nossos dias, com o actor inglês Derek Jacobi sozinho no palco, à guisa de Grilo Falante, enunciando ao público as razões pelas quais o dramaturgo inglês William Shakespeare não pôde ter sido o verdadeiro autor dos seus trabalhos, o filme Anonymous de Roland Emmerich é desonesto desde o início. Na verdade, o filme, com mais de duas horas de duração, mais parece um trailer a posteriori, apenas realizado para justificar a projecção do prólogo e do epílogo de Jacobi. De outra forma, qual é a justificação desses segmentos numa obra cinematográfica de ficção? A única justificação possível é a de que servem unicamente para provocar a opinião do público e granjear publicidade para o filme: adivinha-se que quanto mais polémico for o discurso, mais espectadores o filme terá e, nesse sentido de estratégia de mercearia de bairro, é um truque tão natural quanto outro qualquer. Porém, não deixa de ser desonesto em virtude disso: é uma estratégia que não deixa o filme respirar, nem oferece espaço ao espectador para retirar da história as suas próprias conclusões. Anonymous não é, pois, diferente de qualquer panfleto de propaganda eleitoral: o filme escolheu o seu candidato para autor das obras de Shakespeare, na figura de Edward de Vere, 17º conde de Oxford, e tudo faz para que os espectadores votem nele. Ora, eu não voto.
Enquanto filme, no mínimo enquanto espectáculo, Anonymous tem alguns méritos -- a cenografia, guarda-roupa e fotografia são de qualidade, assim como o trabalho superlativo da maioria dos actores (em principal Rhys Ifans como o mirífico Edward de Vere e Edward Hogg como o gebo Robert Cecil) --, mas não são suficientes para ofuscar a amargura de um argumento desastrado. O problema de Anonymous é que tem tudo para ser um filme interessante, mas recusa-se a ser um filme, de todo, apresentando-se como um panfleto de propaganda eleitoral, como já referi. No final do tempo de antena, depois de mostrada a arenga da praxe, pejada de intrigas palacianas, à la "Código da Vinci" quinhentista, e alguns complexos de Édipo, lá aparece Jacobi novamente, no seu melhor como porta-voz de campanha, a resumir com paternalismo as razões pelas quais se deve votar no candidato apresentado, não vá o espectador enganar-se e ir para casa sem a cartilha bem aprendida. Dá sempre jeito ter um senhor de cabelos brancos e com aspecto de cavalheiro respeitável para papaguear umas barbaridades, quando o objectivo é que elas pareçam credíveis.
Sobre o filme, pouco ou nada mais há que comentar, porque, com efeito, o filme verdadeiro, aquele que, de facto, o realizador está ansioso por nos mostrar, é composto pelo prólogo e pelo epílogo. E esse transmite algumas mensagens perigosas, mas que, enfim, devem estar sintonizadas com o tempo em que vivemos, no qual ter talento não interessa nada. A tónica colocada nas origens iletradas de Shakespeare, insistindo que ele não poderia ter escrito os seus trabalhos porque o pai não sabia ler, e porque as suas filhas também não, parece retirado a papel-químico dos discursos de Marcelo Caetano, delfim de António de Oliveira Salazar, que defendia a ideia de que a inteligência e o talento eram faculdades que apenas se refinavam «no seio de uma família» (à laia de lamarckismo revisto pelo Estado Novo). Ou seja: na visão de Emmerich, Shakespeare não tinha nada de ser escritor e deveria ter sido fabricante de luvas como o pai; tal como, na lógica de Caetano, ao filho de um sapateiro só era permitido ser sapateiro. Anonymous tem, como se vê, a finura do feitor de castas: a cada um, de acordo com o seu berço.
Mas há mais: numa observação totalmente contemporânea sobre a vida de indivíduos que já morreram há mais de três séculos, Jacobi ainda refere que Shakespeare não poderia ter escrito os seus trabalhos porque só tinha o ensino primário (no original, grammar school). É um argumento tão anacrónico que nem sequer merece uma refutação séria. Prefiro deixar o esclarecimento de que a maioria dos indivíduos da sociedade quinhentista isabelina não teriam muitos anos de estudo, nem sequer os nobres, dos quais se resgatou a personagem Edward de Vere: a função da nobreza não era saber ler nem escrever, mas saber guerrear. Para ler e filosofar havia o clero e para governar havia o rei (ou a rainha). Como é que, por um lado, Anonymous faz questão de ostentar o desprezo cabal dos nobres pela literatura (não esquecer que é esse desprezo que está na base da teoria da conspiração que serve de esqueleto ao filme) e, por outro, defender que um campónio, que tinha um pai analfabeto, ainda por cima, também seria incapaz de escrever? Então, quem é que escrevia naquele país? É verdadeiramente espantoso como uma sociedade tão tacanha como a retratada no filme foi capaz de servir de parteira a um dramaturgo tão genial, viesse ele de que classe social viesse. É um mundo muito feio, o de Emmerich e John Orloff (argumentista).
Anacrónico, preconceituoso e panfletário podiam ser boas designações para Anonymous, mas não são. Não são, porque Anonymous não existe enquanto filme: só existe enquanto tempo de antena de campanha eleitoral, na projecção do prólogo e do epílogo. As duas horas e dez minutos que estão no meio são apenas a música de baile que os mestres-de-picadeiro escolheram para dourar a pílula.
Vale a pena ver este teaser em que Emmerich expõe as suas dez razões para que Shakespeare não possa ter escrito os seus trabalhos -- em síntese, é o discurso de Jacobi em Anonymous, mas com a desvantagem de ser Emmerich a soliloquar, em vez de ser um actor profissional: http://www.imdb.com/video/imdb/vi1157013017
Mesmo assim, no que diz respeito a candidatos alternativos para a autoria das obras de Shakespeare, Edward de Vere, deixa um pouco a desejar, como se pode ler em Brief Lives, do cronista seiscentista John Aubrey. De Vere cometeu uma falha imperdoável junto da rainha Elizabeth I, quando a ela foi apresentado: o conde estava tão nervoso por conhecê-la que, ao realizar os salamaleques da praxe, descuidou-se em alto e bom som. O episódio foi um escândalo e Edward de Vere andou exilado cerca de sete anos, sem sequer olhar na direcção de Inglaterra. Ao retornar, foi ter com Elizabeth I, como era mandatório, e ela disse-lhe: «Caro Senhor, já me esqueci do seu peido [sic]». A ser verídica a tese oxfordiana, quem sabe se sem esse tirocínio forçado pela Europa, De Vere não teria sido capaz de inspirar-se na alta cultura florentina para escrever. Nesse caso, devemos agradecer não à providência, mas à flatulência, uma das maiores obras literárias mundiais.
No fim do epílogo de Anonymous, depois de Jacobi ter cumprido o papel de advogado do Diabo e desaparecer atrás da cortina, vemos os espectadores esclarecidos a levantarem-se dos seus lugares. A caminho das urnas, portanto, prontos a assinarem de cruz como o pai de Shakespeare.
Enquanto filme, no mínimo enquanto espectáculo, Anonymous tem alguns méritos -- a cenografia, guarda-roupa e fotografia são de qualidade, assim como o trabalho superlativo da maioria dos actores (em principal Rhys Ifans como o mirífico Edward de Vere e Edward Hogg como o gebo Robert Cecil) --, mas não são suficientes para ofuscar a amargura de um argumento desastrado. O problema de Anonymous é que tem tudo para ser um filme interessante, mas recusa-se a ser um filme, de todo, apresentando-se como um panfleto de propaganda eleitoral, como já referi. No final do tempo de antena, depois de mostrada a arenga da praxe, pejada de intrigas palacianas, à la "Código da Vinci" quinhentista, e alguns complexos de Édipo, lá aparece Jacobi novamente, no seu melhor como porta-voz de campanha, a resumir com paternalismo as razões pelas quais se deve votar no candidato apresentado, não vá o espectador enganar-se e ir para casa sem a cartilha bem aprendida. Dá sempre jeito ter um senhor de cabelos brancos e com aspecto de cavalheiro respeitável para papaguear umas barbaridades, quando o objectivo é que elas pareçam credíveis.
Sobre o filme, pouco ou nada mais há que comentar, porque, com efeito, o filme verdadeiro, aquele que, de facto, o realizador está ansioso por nos mostrar, é composto pelo prólogo e pelo epílogo. E esse transmite algumas mensagens perigosas, mas que, enfim, devem estar sintonizadas com o tempo em que vivemos, no qual ter talento não interessa nada. A tónica colocada nas origens iletradas de Shakespeare, insistindo que ele não poderia ter escrito os seus trabalhos porque o pai não sabia ler, e porque as suas filhas também não, parece retirado a papel-químico dos discursos de Marcelo Caetano, delfim de António de Oliveira Salazar, que defendia a ideia de que a inteligência e o talento eram faculdades que apenas se refinavam «no seio de uma família» (à laia de lamarckismo revisto pelo Estado Novo). Ou seja: na visão de Emmerich, Shakespeare não tinha nada de ser escritor e deveria ter sido fabricante de luvas como o pai; tal como, na lógica de Caetano, ao filho de um sapateiro só era permitido ser sapateiro. Anonymous tem, como se vê, a finura do feitor de castas: a cada um, de acordo com o seu berço.
Mas há mais: numa observação totalmente contemporânea sobre a vida de indivíduos que já morreram há mais de três séculos, Jacobi ainda refere que Shakespeare não poderia ter escrito os seus trabalhos porque só tinha o ensino primário (no original, grammar school). É um argumento tão anacrónico que nem sequer merece uma refutação séria. Prefiro deixar o esclarecimento de que a maioria dos indivíduos da sociedade quinhentista isabelina não teriam muitos anos de estudo, nem sequer os nobres, dos quais se resgatou a personagem Edward de Vere: a função da nobreza não era saber ler nem escrever, mas saber guerrear. Para ler e filosofar havia o clero e para governar havia o rei (ou a rainha). Como é que, por um lado, Anonymous faz questão de ostentar o desprezo cabal dos nobres pela literatura (não esquecer que é esse desprezo que está na base da teoria da conspiração que serve de esqueleto ao filme) e, por outro, defender que um campónio, que tinha um pai analfabeto, ainda por cima, também seria incapaz de escrever? Então, quem é que escrevia naquele país? É verdadeiramente espantoso como uma sociedade tão tacanha como a retratada no filme foi capaz de servir de parteira a um dramaturgo tão genial, viesse ele de que classe social viesse. É um mundo muito feio, o de Emmerich e John Orloff (argumentista).
Anacrónico, preconceituoso e panfletário podiam ser boas designações para Anonymous, mas não são. Não são, porque Anonymous não existe enquanto filme: só existe enquanto tempo de antena de campanha eleitoral, na projecção do prólogo e do epílogo. As duas horas e dez minutos que estão no meio são apenas a música de baile que os mestres-de-picadeiro escolheram para dourar a pílula.
Vale a pena ver este teaser em que Emmerich expõe as suas dez razões para que Shakespeare não possa ter escrito os seus trabalhos -- em síntese, é o discurso de Jacobi em Anonymous, mas com a desvantagem de ser Emmerich a soliloquar, em vez de ser um actor profissional: http://www.imdb.com/video/imdb/vi1157013017
Mesmo assim, no que diz respeito a candidatos alternativos para a autoria das obras de Shakespeare, Edward de Vere, deixa um pouco a desejar, como se pode ler em Brief Lives, do cronista seiscentista John Aubrey. De Vere cometeu uma falha imperdoável junto da rainha Elizabeth I, quando a ela foi apresentado: o conde estava tão nervoso por conhecê-la que, ao realizar os salamaleques da praxe, descuidou-se em alto e bom som. O episódio foi um escândalo e Edward de Vere andou exilado cerca de sete anos, sem sequer olhar na direcção de Inglaterra. Ao retornar, foi ter com Elizabeth I, como era mandatório, e ela disse-lhe: «Caro Senhor, já me esqueci do seu peido [sic]». A ser verídica a tese oxfordiana, quem sabe se sem esse tirocínio forçado pela Europa, De Vere não teria sido capaz de inspirar-se na alta cultura florentina para escrever. Nesse caso, devemos agradecer não à providência, mas à flatulência, uma das maiores obras literárias mundiais.
No fim do epílogo de Anonymous, depois de Jacobi ter cumprido o papel de advogado do Diabo e desaparecer atrás da cortina, vemos os espectadores esclarecidos a levantarem-se dos seus lugares. A caminho das urnas, portanto, prontos a assinarem de cruz como o pai de Shakespeare.